Encontro - Um Pequeno Conto


Era uma noite escura, com um céu carregado de núvens densas e vagarosas, a encobrir as estrelas que não tinham força para fazer derramar a sua luz sobre a estrada. Chovia aquela chuva miudinha, insidiosa, que nem chega a ser fria, nem água pura, que invade até o oxigénio do ar e contamina tudo com uma humidade peganhenta.

De vez em quando, um clarão de luz, como se fosse uma ideia luminosa carregada de uma raiva eléctrica, atravessava o céu e podia mais que as núvens, derramando uma fracção de luz mentirosa, enganadora, inconstante, que apenas deixava vislumbrar o caminho por um breve instante.

Logo no segundo seguinte havia sombra e tudo eram sombras, cores pardas e sons abafados, pelas núvens, e pelo chuvisco, e pela noite. Uns segundos, e o rugido da fúria a tomar conta do lugar, primeiro mais lento e distante, ecoando ao longe, depois mais presente e furioso e dilacerante. E depois mais distante.

No caminho ecoavam passos pequeninos. Eram passos difíceis e inseguros, que o caminho era de terra feita lama, do mesmo breu da noite, invisível de tão indistinto o caminho e o céu e tudo à volta. Os pés afundavam-se apesar do pouco peso do corpo, e quanto mais o cansaço, e quanto mais a humidade, mais os pés se afundavam. A alma pesava-lhe também de tão nublada. As recordações, as dúvidas dilacerantes, as incertezas de outros passos, as lágrimas já choradas, a sua história enfim, era mais peso que o corpo esbelto, quase magro demais, frágil e cansado, e ainda assim a opôr-se à intempéride para avançar. Ele estava no fim do caminho e ela pertencia àquele destino.

Cada avanço era mais penoso que o anterior e não se vislumbrava o destino, nem se avistava a sombra que ela esperava ver de mão estendida à sua procura, vinda em seu auxílio. “Onde andarás?” – perguntava-se ela. O desânimo consumia a força que a seguir consumia a vontade. E a cada passo, mais um bocadinho de lama do caminho se colava e se impregnava naqueles pés delicados mas feitos de barro, do barro da estrada, desesperados pelo avanço mas que na lama se afundavam. Também chovia dentro dela aquela chuva miudinha, húmida e peganhenta. Também disparavam dentro da sua cabeça rasgos de luz mentirosa que por momentos a enganavam na certeza do caminho e no vislumbre fugaz daquela sombra que não existia. E a desilusão e a mágoa e o arrependimento rugiam tão alto como os trovões.

Então levantou-se o vento. Fresco, surpeendente, vindo não se sabia de onde, de que ponto cardeal e de que altura. Soprou de mansinho e depois ganhou pujança e fez-se dono do lugar. Alvoraçou-a. Espantou as sombras da paisagem, secou-lhe a humidade da roupa e do corpo e dos longos cabelos. Deixou de chover e o ar limpava-se. Mais passos, cansados mas agora com a leveza da esperança, a tornarem-se mais seguros, a espinha dorsal a reencontrar a sua posição natural. O briho das estrelas já chegava e o caminho tornou-se mais claro, tanto que nem era preciso fixar os olhos no chão para ver e seguir em frente. A lama foi secando e tornando a progressão mais fácil, porque a lama seca se solta do que antes emparedou e faz-se em pó com apenas um toque.

De repente, os seus olhos encontraram o céu. O vento dela e de um ponto cardeal indefinido, que tinha subido também acima do lugar, dispersara as núvens. Com espanto, viu uma lua redonda, brilhante, dourada, prenhe. Pensou que de promessas e de sonhos. Ali assim, ao alcance da vista que se desocupara de perscutar cada centímetro do caminho que agora se fazia de cor, já sem pensar na sombra da mão de ajuda porque ansiava. Pensou como era mais fácil fazer o caminho assim. Inspirou o ar agora respirável e deixou-se em contemplação por momentos, estendendo a mão esguia como que a tocar o astro e a sentir a sua força.

Ao voltar a olhar para a frente viu-se na chegada. Sem saber como tinha chegado e o que era feito do seu cansaço e desespero. Olhou de novo a lua e, então, concedeu-se um sorriso. E toda ela irradiou com a força dos raios da luz que contemplava e que a enchiam. Ela era lua. Brilhante, dourada e prenhe, da força das promessas e dos sonhos realizados. Subitamente dentro do abraço da sombra que procurara e que a tinha também buscado no caminho. Cumprindo-se o destino.

“Chegamos”, dito em simultâneo num beijo. “Andemos”, dito no primeiro passo a dois do novo caminho.

6 comentários:

Anónimo disse...

Bela hitória. Afinal há aí muita escrita escondida...

CB disse...

John Doe,
Obrigada. Há sim, mas impartilhável. Esta é apenas um conto, misto de história e sonho.

Anónimo disse...

Tudo é partilhável. Depende do momento, do local e do companheiro de partilha.

CB disse...

Teoricamente terás razão. Na prática, algumas coisas nunca encontram todos esses requisitos reunidos.

LBJ disse...

Este conto tem de ti cada palavra em gota.

O caminho faz-se caminhando, disse que já venceu guerras, não o receies se o tiveres que fazer sozinha porque no teu intimo sabes que não estás só.

Quem encontrarás à chegada ainda é um conto que não está escrito e a esperança do escritor é o conto por escrever.

Beijos

CB disse...

LBJ,
É verdade que tem muito de mim, e puseste-o de uma forma muito bonita. Porque a história ainda não está toda escrita é que o abraço é dentro de uma sombra. A chegada é a parte do sonho no conto, que talvez possa escrever um dia de outra forma.
Um beijo