Capítulo I - "What do you say?"

Perguntas-me. Manuscrito, com falha da tinta na primeira palavra. Terá secado a caneta, na espera entre o ponto da anterior frase e a coragem que procuraste - e encontraste? Ou a coragem foi para o que está antes desse ponto e, depois, ficaste a avaliar se prossegias ou se recomeçavas a carta? E onde foste buscá-la, essa coragem? A que palavras ou imagens das muitas que trocamos ao sabor da correria dos dias, tantos dias? Ou a que memória dos nossos encontros e conversas? Todas as tuas missivas me deixam com interrogações. Tal como os silêncios ocasionais. Verdade: esta "relação epistolar" tem-se construído, passo a passo, e tem respondido a algumas questões; mas levanta sempre mais umas. Almejas vê-la crescer, e que te digo? Baralho-me toda. Releio vinte vezes as tuas linhas e escalpelizo-as até à exaustão. Releio as anteriores e diversas epístolas. Releio as minhas palavras e notas dispersas. Reconstruindo o percurso da história que cresceu, pontuada de tanto mais do que simples palavras: pensamentos, sorrisos, sensações e sentimentos, partilha de cenas da vida de todos os dias. E no fim das novas notícias de quotidiano, escreves-me a saudade crescente, com pontos de interrogação sobre planos de viagem e destinos, assumindo também em crescendo a necessidade de me ler, ouvir, rever. Certo é que sei bem, também, o sabor dessa saudade e o peso dessa necessidade. Sei reconhecer, também, que todas as novas questões e perguntas por responder só são relevantes porque quero descobrir, quero saber, sim, almejo também ver-nos crescer.

E por isso, na volta do correio, com outras linhas, como sempre, de permeio, I say yes, sem no entanto te citar o que tão bem expressa o que me ecoa dentro. Porque... Yes, digo-te eu, "But I being poor, have only my dreams; I have spread my dreams under your feet; Tread softly; for you tread on my dreams." (W.B. Yeats). Segue ainda a história.

O plano

Quem pode realmente planear a vida, que é feita de inesperados? Já várias vezes tive que pôr na gaveta os planos de vida que um dia desenhei, pensava que com a duração da tinta da china, quando afinal duraram menos que esboços de carvão. E já consegui aprender, embora um pouco à martelada, que não preciso de outro imediatamente pronto para substituir cada um que falha. Preciso apenas e só, de cada vez, de uma folha de papel branco e vontade de desenhar. Custa olhar o tempo passar e nada se consubstanciar nessa folha - indiscutível e penosa verdade, mas é pior, muito pior, ter de andar mais tarde a apagar, a remendar, tudo sem resultado satisfatório, e tudo porque se insistiu em usar a tinta da china, e se desenhou com base naquilo que estava mais à mão, e não naquilo que realmente se queria alcançar. O plano só pode ser continuar a acreditar que um dia acerto no objecto e na perspectiva, que nessa altura terei a folha lisa e limpa e, então, valerá a pena desenhar - ainda assim, sempre a carvão. O problema é que essa resistência à tinta é um medo mascarado de prudência, sentido numa hesitação. Talvez porque guardo os planos falhados na gaveta em vez de os deitar no lixo, e a gaveta está cheia de desilusão. Ainda assim, vi-me hoje capaz de ultrapassar essa hesitação e arriscar juntar um traço ao esboço que já vejo crescer no papel, ao mesmo tempo que penso que é melhor somar mais um plano falhado à gaveta do que manter-me frente a uma folha vazia, sem coragem de pegar na caneta.

Microcosmo

A perfeição não existe e sabemos que temos de viver com a imperfeição do mundo, com a nossa imperfeição e com a imperfeição dos outros. Sabemos que temos de viver no meio de tanto erro e desacerto, e aprendemos, embora a custo, a ceder, a conciliar e a perdoar. Algumas coisas mais a custo que outras, mas temos de ir fazendo esse caminho, sob pena de não sobrevivermos. O custo em si tanto pode ser engolir o orgulho, como chorar umas lágrimas de desilusão, desistir de alguma coisa a favor de um bem maior, ou arcar com um prejuízo financeiro a bem das boas relações. Entre tanto mais. No entanto, é difícil evitar uma reminiscência qualquer que nos quer fazer crêr que, no fim disto tudo, há um equilíbrio. Achamos sempre que o custo de uma concessão nos será compensado na vida pelo lucro da concessão de outro. Ou que as lágrimas que choramos nos serão compensadas por uma felicidade maior no futuro. Ou que os euros que imoralente pagamos por outros nos serão compensados pelo apreço do reconhecimento de termos sido honrados. Ou que o perdão que concedemos a alguém que nos feriu nos trará a paz da consciência (e o céu, já agora). Mas não, desenganemo-nos. Não há nenhuma ordem nem equilíbrio cósmicos no mundo. O certo é que cabe mais a uns que outros a quota do custo e - pior -  o mais certo é que haja sempre alguém que consegue somar-nos custos exorbitantes. Depois de suportar alguns, perdões, lágrimas e euros, chega um momento em que simplesmente achamos que "não merecemos mais". Lá está: na tal lógica do equilíbrio, da compensação a que ingenuamente nos achamos no direito. Mas esse momento chega, e chega mesmo, e quando chega faz-se pagar com juros, não só sobre o novo custo, mas também sobre todo o saldo acumulado. Saiam da frente, que alguém chegou a esse momento comigo e vou eu fazer pelas minhas mãos o equilíbrio micro-cósmico que mereço. 

Soltaram-se

As palavras ganham vida quando se materializam na voz ou nas letras. Só são nossas até esse momento de liberdade, e uma vez largadas não nos voltam nem nos respeitam. Porque as palavras têm uma forma subtil de tingir sentidos distintos, por vezes muito diferentes dos que lhes quisemos imprimir. Eu uso as palavras com propriedade, em todas as línguas que falo. Procuro as palavras certas sempre, procuro as que transmitem exactamente o que pretendo, tal como vou procurar no dicionário uma que oiço ou leio e não entendo. Mas se nem um dicionário nos dá de cada uma um único e inequívoco sentido ou definição, como podem dois seres humanos retirar o mesmo sumo de cada palavra que cai ao chão? E que sentido fará para alguém que tanto gosta de uma metáfora preocupar-se com o sentido literal das sílabas com que a grafa? Mas as minhas palavras fixam-se num sentido, metafórico ou não, quando lhes dou forma num texto mais ou menos cabal. Ganham vida e dão-me vida, porque tornam o que sinto e penso real. Transpõem-me para um articulado onde me reconheço, plasmada no momento, onde por vezes regresso, para relembrar, reafirmar ou contestar. E até quando me releio já sem sentir ou pensar o mesmo, extraio delas exactamente o que lhes dei - chego a re-sentir, a re-pensar, a saborear as mesmas emoções e a recapitular as mesmas lógicas que me guiavam no momento. Sou certeira com elas - para mim, não faço ideia se acerto o alvo com os outros. Penso muitas vezes que as palavras que escolho com tanto cuidado serão lidas em linhas diferentes do mesmo ou outro dicionário. E, da mesma forma, penso muitas vezes se lerei bem as que não me pertencem. Provavelmente, nem todos terão o mesmo zelo com elas, as palavras; nem todos lhes darão o mesmo peso, nem terão o mesmo rigor quando as libertam. E depois dizem que sou dura nas palavras, porque não esbanjo nem profano as que me são mais sagradas; e ao lê-las nos outros, se penso faltar propriedade na escolha, digo-os levianos, julgo-as profanadas. Porque a mais bela palavra é vazia se mal empregue; e esvaziar uma palavra é usá-la sem sentir; e dizê-la ou escrevê-la assim é mentir. Confude-me por vezes, mas conforta-me contudo, que me leiam as palavras que só sei escrever assim, e ainda me digam que sou doce, destilando dos meus significantes rigorosos um mel que diz que habita em mim.

Recompensa



Implica a ideia de reconhecimento por algo de bom que se fez, ou algo que se fez bem, a ideia de retribuição e de prémio. É oposto de castigo mas associa-se também à demora, à espera, como se o simples facto de se esperar por algo merecesse uma recompensa, talvez porque a espera quase sempre sabe a castigo. "En la lengua de Cervantes, el que no espera, desespera". Surpreendente, pois o mais popular é oposto: "quem espera, desespera" - e também se diz em Espanhol. Verdade: em Português também dizemos em positivo, nos dias em que não carregamos o xaile da desgraça, que "quem espera sempre alcança", reforçando a ideia da recompensa. Espera-se por dentro da janela que a chuva passe, olhando para fora e sofrendo a demora em poder sair. Desespera-se, talvez, ao fim de um tempo, mas enquanto se espera com esperança, não nos desesperamos - sabemos que a saída será a desejada recompensa. Dir-te-ei, numa próxima contenda, que "el que no mira, no suspira" e é suspirando à vista do que se espera, esperando com esperança, que aguentamos o passar do tempo. Mas digo-te também que, se a esperança é um bom pequeno almoço, é também uma muito má ceia. Saberás, melhor que eu, que também se diz "en la lengua de Cervantes". Eu que me sinto mais parte de outra língua, gosto de me lembrar que "good things come to those who wait", mas sei que essa coisa de me deitar com uma ceia de esperança nunca me cai muito bem, por muita que possa ser a esperança, porque a mim sempre me faltou a paciência que, essa sim, é que merece recompensa.

* Foto minha

Sem Vermelho


Margaridas e laranjas, que esta terra é alegria e alimento, e ainda sofre pelo mal que lhe fizeram sob a enganadora bandeira da liberdade. Mas sim, concedo: dano colateral da necessária luta pela liberdade de mentes e palavras. Uns pagaram um preço mais elevado que outros, uns pagaram pelos pecados dos outros e, no fim, herdamos todos um rectângulo de terra que não vale nada, mas podemos dizê-lo à boca cheia. Uma terra onde a liberdade, afinal, não trouxe a prosperidade. Trouxe foi legitimidade ao abuso que sorveu tudo o que pode dos frutos, sem voltar a deitar a semente à terra. Que desperdício.


* Da foto, ver aqui

Esquina


A vida é uma surpresa constante, feita de ângulos inesperados, alinhamentos desconcertantes,  vértices de viragem. Vieste aqui mostrar-me que o amor existe, e só depois de partires aprendi a lição. Quero acreditar que foi também debaixo dos teus olhos atrás das núvens que vi a esquina do tempo que me sopras que dobre sem medo. Quero acreditar que foi no eco dos teus passos protectores que ganhei a coragem de sorrir às núvens, porque olhei para cima e vi o azul por trás delas. Quero acreditar que aqui tinha de vir beber a pureza de ti, de mim, para que ouvisse o teu sopro no meu ouvido sussurrando que vai correr tudo bem. Quero acreditar que quiseste que fosse aqui que despontasse a primeira raíz da árvore que - quero acreditar - sabes que me trará o fruto do amor.

* Da foto, ver aqui

De regresso, até já

E pronto, lá vou eu para o meu sacrifício Pascal, de malas aviadas, lanche para o caminho, e com uns quilómetros pela frente, aturar uma tribo a que pertenço mas não é a minha, a bem da felicidade do meu miúdo. A euforia da expectativa é tal que, sabendo que o vou buscar ao colégio umas horas depois do almoço, me disse que quando acabasse de comer ia esperar por mim na portaria. Anda em contagem decrescente de dias há duas semanas, já fez planos para o que vai fazer, escolheu criteriosamente que brinquedos levar. Sei que ele adora lá ir e assim não me importo de aturar aquela tribo allien, porque ali tenho raízes profundas e ali moram memórias doces - pese embora se recordem com a tristeza da saudade. E assim, enquanto ele constrói as suas memórias felizes, e eu recordo as minhas, aquele lugar é, para ele como para mim, um lugar onde queremos sempre voltar - e fazêmo-lo juntos.

"the werewolf, somebody like you and me"


"(...) Cryin' nobody know, nobody know, 'body knows
How I loved the man, as I teared off his clothes
Cryin' nobody know, nobody knows my pain
When I see that it's risen, that full moon again (...)
";

Nunca podemos fugir da nossa natureza, mesmo que não queiramos render-nos. Podemos, quanto muito, aprender a reconhecer os sinais da vertigem e fugir, procurar o isolamento onde possamos não magoar ninguém além de nós próprios. Não nos muda, mas esse medo e essa dor de ser como somos,  define-nos tanto ou mais que as garras que nos nascem em noites de lua cheia. "All through the night, until the light of day, and we're doomed  to play".

Quero

Quero a tranquilidade do mar, a cadência das ondas num embalo, o ar fresco que me deixa respirar e o sabor a sal que me pacifica dentro. Quero a paz do azul matizado de cinza ao longe, na melancolia pacífica da eterna distância. Quero o eco do silêncio submarino, o enigma de tudo por explorar. Quero o toque suave da água e a leveza da brisa, quero a paz em calmaria. Mas quero o turbilhão do inferno, o estremecimento de um abanão, braços e boca que me tiram o ar de dentro, os pés do chão, os gritos da garganta. Quero o vermelho tingido de sangue que ferve, na paixão tumultuosa de uma presença inadiável. Quero o ensurdecedor rugir de posse, a certeza que desbrava tudo. Quero o toque que vinca a pele e a fúria do tornado, quero a guerra com valentia.

Um amor, por muito que seja, por mais puro e doce que se afirme, se é só mar, simplesmente não me chega. Quero mais, quero tudo, tudo o que sei que existe. Quero uma dose de paixão desenfreada para outra de amor puro. Paixão sem amor do outro lado já quase me matou, mas amor sem paixão de qualquer lado não me deixa viver. Quero os extremos, à imagem e semelhança do que sou. Quero a loucura de continuar a sentir que mais louca seria se aceitasse menos que a plenitude. Quero a seda fria e suave para adormecer e quero o cobertor quente e áspero para não desvanecer. Lentamente me consumo e mato com o veneno desta dualidade. Quero desesperançadamente acordar em liberdade.

Realidade Infantil

Curtas de um fim de semana de Mãe.

"Não seja implicativo!" (depois de meia hora a fazer-me a paciência em água). "Não sou nada!" Amua e pausa de 10 segundos. Tom de desafio e indignação de novo: "Para já, nem sequer sei essa palavra. Mas não sou nada isso!" 

"Podemos jogar, Mãe, podemos?" (vinte vezes). "Sim , está bem, aqui está a moeda" (jogo parvo no centro comercial onde o levei a cortar o cabelo e que já jogamos antes, tendo eu, inabilmente, ganho o jogo dessa vez e, com isso, a medalha de uma birra de todo o tamanho). "Boa! Mas ó Mãe - desta vez não pode fazer batota. Tem de me deixar ganhar..." Lá ganhou e gabou-se ufanamente à custa do meu "unfair play". 

Às 07:45 da manhã: "Oh Mãe!... Porque é que interrompeu o meu sonho?! Estava a sonhar que estava a brincar 'nos paus'!" (é uma construção de madeira cheia de escadas, vigas e pontes que eles trepam simiamente). E eu no gozo: "Pois, mas não pôs nenhuma legenda cá fora para eu saber!" Risos. "Oh Mãe... (olhar paternalista) mas a Mãe sabe que eu nem sei escrever..." 

Portagens




"I don't want to hurt you
For no reason have I but fear
And I ain't guilty of the crimes you accuse me of
But I'm guilty of fear

(...)
It could be sweet
Like a long forgotten dream
And we don't need them to cast the fate we have
Love don't always shine thru


(...)
But the thoughts we try to deny
Take a toll upon our lives
We struggle on in depths of pride
Tangled up in single minds


Cos I don't wanna lose
What we had last time your leaving, this life ain't fair
You don't get something for nothing, turn back
Mmmm gotta try a little harder

(...)
It could be sweet"

Literal

Dei-lhe as respostas possíveis, tendo ressurgido a conversa da morte. Ele tem 5 anos, não é altura para grandes metafísicas. Mas tenho que ter cuidado em não contrariar o que o pai já lhe disse (e diz sempre demais), por isso tenho de ir tentando perceber o que ele já ouviu. Os dilemas, desta vez, eram o facto de ser ou não verdade que o "céu" é um sítio bom e se realmente "todos temos de morrer". Pois. O melhor é aligeirar a coisa, portanto digo-lhe que sim, que o "céu" é um sítio fantástico, onde estamos sempre felizes, e que sim, todos nós temos a nossa hora, que não podíamos viver até aos 200 anos, se não ficávamos tão velhinhos, tão velhinhos, que nem nos conseguíamos mexer. Ele começa logo a fazer filmes, com a ideia de sermos velhos de 200 anos, que não podíamos isto, e não podíamos aquilo, (e mal sabe ele que pouco podemos mesmo ainda antes dos 40), e sobre o que se passaria no "céu" para ser tão divertido. "Há escola?" "Podemos jogar à bola?" Não, acho que não há escola, e sim, podemos jogar. Remata com a pergunta: "mas com estes pés e com uma bola à séria?". (Oh shit.) Bem, não com estes pés, não precisamos deste corpo para nada, quando vamos para o "céu". "Então como é que chutamos a bola?" É que levamos o que temos por dentro do corpo, que é o sítio onde sentimos alegria e que nos faz sorrir, por isso fazemos as coisas todas de maneira diferente. "Pois. Mas só quando morremos". Sim. Pareceu satisfeito, mudou de assunto, e passadas umas horas quando o fui deitar li-lhe um livro como sempre. Desta vez, escolheu a história do Tarzan, que começa logo com a gorila Kala, que acabou de perder o filho, a ouvir um choro de um bebé a quem morreram os pais. (Is this twisted or what?) Estava eu a tentar passar aquilo depressa (e a pensar: a morte outra vez, God damn it!), e ele interrompe-me para perguntar: "Mãe?... A que horas é que a mãe vai morrer?"... 

Pronto, não consegui evitar escangalhar-me a rir. Levou à letra o todos termos "a nossa hora", achou que quer dizer que temos todos a morte agendada. A ideia não anda muito longe - essa hora é inevitável, está, de facto, agendada, não sabemos é para quando. De forma que, entre risos e mais disparates, lá lhe digo que ainda falta muito, muito tempo, e que não vale a pena ele pensar nisso. No meio da galhofa, acho que era isto que ele precisava de ouvir. Acho que o que mais o assusta é ter de se deparar com a experiência da morte na sua vida e espero que isso seja - mesmo -, daqui a muito, muito tempo. Acho que, pelo menos, a ideia não o atormentará mais por agora, mesmo que continue a explorar o conceito. E pelo menos enquanto depender de mim, a verdade vai-se explorando de permeio com risos e brincadeira. Sei que nem todos concordam, mas eu acho que é legítimo, é necessário, ser menos rigoroso e preciso na discussão das coisas mais crueis da vida, enquanto eles não têm de as enfrentar com a brutalidade do sentido literal. Mas ao mesmo tempo é preciso cuidado, porque eles levam as nossas metáforas e eufemismos ao pé da letra.

Um Caminho no Céu

Começo a pensar que talvez tenha prevertido o papel do blog, ao criar uma clivagem ainda mais marcada entre o que sou e deixo aqui, e o que revelo lá fora. Com o tempo, fui-me convencendo cada vez mais que o meu mais profundo, e talvez o meu melhor, só pudessem ter eco aqui. Numa primeira fase, exposto ao mundo que me foi encontrando e que eu fui procurando, mas depois de paragens e recomeços, também aqui cada vez mais resguardado, protegido, solitário. No fundo, talvez me tenha convencido que o que sou mesmo por dentro não tem espaço de existir, em plano nenhum, senão mesmo por dentro. Mas ao mesmo tempo continuo a sentir necessário encontrar-lhe uma porta de saída. Talvez já não de entrada. Sim, talvez seja essa a diferença.

Estão por aí espelhados os meus paradoxos e idiossincrasias. Estão por aí expressos os meus dilemas, o  relato das minhas expressões mudas de Mona Lisa nos frente-a-frentes da vida, enquanto por dentro fervem as palavras que depois aqui param. Tenho total consciência de que continuo sem qualquer vontade, ou mesmo capacidade, para me expor olhos nos olhos, continuo a precisar dos meus véus, pese embora a solidão a que me condenam, e apesar de saber que são razão de incompreensão. Mas, acontecimentos recentes, levam-me também a pensar que, afinal, mesmo para quem não sabe que o que está debaixo do meu véu se pode ler aqui, passa na transparência algo mais do que pensava, e algo que os leva a querer mesmo levantar o véu, devagar.

Como alguém me dizia recentemente, deixamos um rasto. E é verdade: deixamos marcas da nossa passagem que são pistas para o que temos dentro. Um olho atento, interessado, chega lá sem ler palavras. É como o fumo branco de um avião que rasga o céu azul, que assinala a sua passagem e onde podemos discernir em que direcção passou. Alguns procurarão no horizonte, nessa direcção, saber-lhe a cor e a forma, interessam-se pela sua rota e destino. Outros não o farão. E afinal parece que há quem ache que o rasto que deixo na superfície do ar merece ser seguido. Afinal, deixo de mim um rasto que, não sendo tudo o que sou é de mim, e é caminho para quem realmente aqui quer chegar.


* Foto minha

Prólogo

Rumino para aqui a sucessão de acontecimentos recentes, sabendo que tenho algo de importante a destilar disto tudo, mas sem lá conseguir chegar com clareza. Volta e meia surgem uns pensamentos, umas frases, às vezes só para mim, às vezes em conversas com terceiros, e estupidamente deixo fugir, penso que devia escrevê-los, fazer uma colagem de frases soltas escritas a azul céu no meu bloco de capa preta. E juntar-lhes os textos, dos emails, das mensagens, pelo meio desta correnteza de coisas que me atravessa. Uma história, afinal, escreve-se assim. E é uma história que se está a escrever, com a suberba imaginação com que a realidade nos surpreende. Desde logo por começar com um encontro improvável de duas pessoas que não se conhecem nem vivem na mesma cidade. Cruzam-se por acaso, encetando a comunicação num impulso que ninguém entende. Em pouco tempo partem para um encontro a dois, encontro que demorou, até ao dia em que a história os colocou na mesma cidade. 

A primeira palavra de impacto: "adorable" - escreve-me ele sobre uma resposta minha. Digo-lhe que não sei o que teria de "adorable" - e acrescento: but that's such an adorable word! Ele confirma: que sim, adorable is indeed a nice word and should therefore be used with no fear! Depois, já na mesma cidade, já na língua mãe que tem sonoridades diferentes para um e outro, um café estende-se para um jantar, horas de conversa fluida a confirmar uma pessoa, para além de muito interessante, extremamente agradável. Uma simpatia, confidenciava eu a medo. Uma companhia simplesmente encantadora, escreve-me ele logo depois. Confirma no dia seguinte ao vivo e vai escrevendo, vou respondendo, vão-se somando as palavras com os dias. Depois a partida. Adorei conhecer-te. Gostaria muito de te rever. Depois a presença possível na distância. Boa noite, querida. Um belo dia para você, querida. Beijos de novo de Paris. Vão chegando, palavras, imagens e beijos, em diversos suportes, enquanto avança a história, e hoje chegam manuscritos em papel pesado, num envelope com selo e carimbo de outra cidade, mas são estes os beijos que agora me deixam com a sensação de que a história cresceu e já tem um passado. E um futuro tem de ter, seja ele qual for, porque este texto não está acabado.

Com propriedade musical



Pode ser cada dia, se fizermos do anterior o último.


Adenda

Os meus colegas despediram-se de mim com beijos e abraços e todos com um positivo "até amanhã".

Conduzi meia hora a chorar e a rir ao mesmo tempo, mas sem que uma coisa fosse razão da outra, tipo filme muito mau. Vou ter saudades deles, pronto.

Sigo


E esta verdade nunca fez tanto sentido como hoje. É, afinal, o último dia daqueles "a doer" de que falei há tempos, uma saída esperada e desejada, ainda que envolta, como qualquer partida, na tristeza das despedidas. E tem o peso do erro, pois foi mais um projecto em que acreditei, pelo qual lutei, e que tive que acabar por admitir que tem falhas sem emenda possível, que não tem  futuro.

Mas, ao fim de quase um ano, desta partida junto os abraços sentidos de quem viajou comigo e me quer guardar por perto, junto como preciosos tesouros as palavras que me dizem e escrevem, a tristeza das suas próprias despedidas, os elogios que, mais do que massajar o ego, me dão a serenidade do sentido de dever cumprido. Colegas que se tornaram amigos e me consideram, e me respeitam, e que se pudessem me seguiriam. E mais ainda, de forma inesperada, de um cliente, obviamente satisfeito, que além de palavras de apreço, como as de outros tantos, me abre uma oportunidade sobre o horizonte.

Salto daqui com rede, porque já tinha a decisão tomada há muito e já tenho um novo projecto. É certo que não é o meu ideal, não é nada que antecipasse no meu futuro profissional há alguns anos atrás. Mas é um projecto, um desafio, e uma entrada possível. Para andar para a frente, anything goes. Naturalmente, no entanto, é bom sentir que tenho essa rede, mas também hipótese de voos mais altos. Como me dizia esse cliente, "believe me, all things happen for a reason". E desta vez acredito mesmo, e acredito que será uma boa razão.   

Imagem daqui.

Paradoxal

Acho que quase todos os seres humanos são seres paradoxados. Há os que o assumem, e os que o escondem. Há quem reconheça em si as várias, múltiplas facetas, e as tente compreender e fazer conviver pacificamente, e quem as recuse e "mate" algumas partes de si a bem da aparente normalidade. Como se pudéssemos programar a mente e a alma, não sendo mais do que simples máquinas produzidas em série e obedecendo apenas a um rígido padrão. 

Na verdade, por sofrer de uma incapacidade crónica de aceitação de dogmas, a que se juntou uma certa falta de fé em várias coisas, e que reconheço que me leva à insatisfação e ao inconformismo também crónicos, passei toda a vida a sentir o impacto de ser “diferente”, como me classificam carinhosamente amigos de longa data que nunca entenderam algumas das minhas opções (e que também, na verdade, nunca tentei explicar). Nesta sociedade padronizada, fui "o caso à parte". Mas não é que seja corajosa ou alguma outra coisa admirável. É rebeldia, da mais pura, e até, por vezes, uma forma de arrogância. Porque a minha história prova que eu nem sempre soube decidir o que era melhor para mim. O que sei geralmente é por onde não quero ir, e com isso armo-me de valentia e saio da caixa, sigo para outra, e acho que não devo satisfações a ninguém a não ser a mim própria.

Ao longo de muitos anos rebelei-me contra as tentativas de “normalização”. Mas, mais tarde, acabei a fazer comigo própria esse papel, dando por mim numa vida que não me dizia nada. Soltei-me de novo, mas subsistiram vícios de lógica e de comportamento. Foi um longo caminho de conflito permanente entre razão e emoção, espartilhada numa caixa de auto-controlo forçado, perdendo a espontaneidade, para me tentar adaptar pensando, a certa altura, que isso era crescer. Cada vez mais racional, à medida que todos os erros resultantes das minhas decisões emocionais me eram apontados como exemplo do mal que me fazia, mas a enredar-me em erros racionais muito mais perigosos. Hoje, luto ainda a pôr em prática a distinção entre emoção e impulsividade, porque sei, em teoria, que nem sempre decidir com o coração é uma fragilidade e um erro. Comecei por seguir o coração sem pensar, depois deixei de o ouvir, e agora tento segui-lo também com o sustento da racionalidade, com ponderação, sem a tal impulsividade.

Mas é uma subtileza que ainda muitas vezes me tira o sono e me mergulha em dilemas complicados, porque logo que se mete a racionalidade na equação deturpa-se o som da voz emotiva. E a essa voz não podemos negar existência nem a podemos amordaçar - ou revolta-se um dia. Um ser humano não é uma máquina, não é uma inteligência isolada, nem é um ser que tem de caber numa caixa standard. É fundamentalmente um ser de emoção e consciência e, por isso, também, um ser de dúvidas, paradoxos e dilemas, de erros e, eventualmente, alguns passos certos. Um ser que evolui, que tem de evoluír, muito para lá dos limites de qualquer caixa. Mas custa. Não quero matar nenhuma parte de mim, mas custa mesmo fazer todas as partes conviver pacificamente, e às vezes, paradoxalmente, custa sentir que não se cabe em caixa nenhuma.

"The only means of strengthening one's intellect is to make up one's mind about nothing -- to let the mind be a thoroughfare for all thoughts." (John Keats)

No coração é quase igual, mas a batalha campal faz mais baixas, sobretudo quando luta com o intelecto.


Versão revista passados mais uns largos meses de guerra, de uma época que não era escrita aqui, e que, como sempre, se repete.

Felizes daqueles

Desconfio sempre das pessoas que acham que haver quem passe pior é quanto baste para mais ninguém se poder queixar. O "passar pior", naturalmente, é uma coisa relativa e subjectiva, como o são os problemas, por serem de cada um e cada um ter escalas de valor e sofrimento próprias. Não fica bem dizer "com o mal dos outros posso eu bem", não fica, mas porque é que ficará melhor se o mal dos outros é de natureza mais metafísica em comparação à natureza mais material dos problemas próprios? Acho, por um lado, uma tremenda injustiça e surpreendente que alguém conclúa que não faltar comida na mesa e conforto material significa uma vida feliz q.b. e "contenta-te". Parece que tenho de me sentir algo ridícula por achar que aquilo que não tem preço por ser de graça faz muito mais falta do que, por exemplo na infância, o bife do lombo e a colecção de brinquedos caros. Deixo-me ser ridícula, pois seja, que acho simplesmente redutor concluir que a felicidade humana se mede pela satisfação de necessidades físicas e económicas. Naturalmente, estando satisfeitas essas, todas as outras se podem apreciar melhor. Mas se as outras falham, as primeiras não chegam para definir ninguém como feliz. Aliás, há provas por aí de que as pessoas aguentam melhor as dificuldades práticas da vida quando não lhes falta amor, e já o oposto nunca vi acontecer, muitas vezes tendo até desfechos trágicos.

Uma vida de dificuldades económicas, de trabalho no duro, que se invoca como se de um estalo na cara se tratasse a quem não passou pelo mesmo e se queixa de outras faltas, mesmo admitindo que se conhece de facto o que viveu o outro, é de uma enorme arrogância e presunção, no mínimo. Porque uma vida assim, por si só, não faz de ninguém melhor que os outros, e usá-la como justificativo para que os outros não tenham o direito de se queixar, quando isso é na verdade uma queixa,  isso sim, é ridículo. Aliás, se alguém se arroga superioridade por ter tido ou ter uma vida difícil, segundo os seus critérios, e acha que tudo o que os outros perseguem de metafísico é irrelevante por comparação, para mim só pode ser uma pessoa pequenina e infeliz, que ainda por cima acha que ter uma vida miserável e infeliz é normal e superior, e que no fundo acha que ninguém merece ser feliz.

O conceito de pessoa feliz é abrangente e próprio. Mas para mim, sobre tudo o resto, o mais importante que temos a fazer nesta vida é não desistir de lá chegar. Com esforço, com determinação, com sofrimento. E seja o que for que se procura, se o caminho não é fácil, se é sofrido, se é problemático e azarado, é legítima a queixa, o desânimo ocasional, as lágrimas quando calha. É verdadeiro o sofrimento. E avança-se é assumindo-o como tal, vivendo-o, aprendendo com ele, reconhecendo que ainda não estamos lá, e tentando não perder de vista que a meta que se procura é ser feliz. Nessa meta, uns verão um valor material, uma conquista profissional ou intelectual, ou uma família feita de amor. Talvez conforme o que falta, ou não tendo nada, conforme dita a sua essência. Cada um é como cada qual, a cada um a sua verdade, a cada qual o seu tipo de felicidade.

Rede Estatística



Não tenho dúvidas hoje que, a partir de certa altura na vida, só se salta com fé, e a partir de certa altura na vida, a fé é uma improbabilidade matemática. Ainda assim, hoje o dia fecha a renovar-me a esperança de que, por alguma razão, no verso da improbabilidade, pode haver uma possibilidade.

Probabilística

A convicção é, aparentemente, que não podemos ser, decidir, amar, se não com a escolha de uma das faces da lua - emoção ou razão. E a vida parece que nos empurra à condenação do lado emocional como raiz das maiores dores, fazendo do racional o escudo de protecção.

Já passei pela paixão louca, contra tudo, contra todos, contra a própria razão, numa entrega surda e pura, de coração. No falhanço, destilei que daí resulta, inevitavelmente, a culpa de não ter ouvido “a voz da razão”. Havia, sim, coisas que “já sabia” e que ignorei, convicta de que um amor assim tão forte podia tudo. Podia nada. Também já passei pela construção racional de uma relação, convicta de que chegava a trégua mansa que sabia bem, sem borboletas na barriga. Na falha, acabei a destilar que, afinal, devia ter ouvido “a voz do coração”. Também havia coisas que “já sentia” e que fiz irrelevantes face à lógica sensata de uma coisa tão direitinha que só podia ser amor. Mas não, também não. Um aborrecimento, uma modorra, não pode ser amor.

Hoje estou presa numa terrível mas insofismável condição: não volto a alimentar relações sem verdadeira paixão, mas no início de uma paixão, dificilmente me liberto das premissas, seguras embora viciadas, da voz da razão. Somar racionalidade à realidade resulta em solidão, porque a realidade é que é extremamente difícil encontrar a pessoa certa e, ainda, haver paixão recíproca. Assim, mesmo quando se desenha uma possibilidade no coração, no meu perfeito “juízo” compenso com uma racional oposição. Tenho pena de não conseguir fugir a isso, porque tenho vontade de acreditar, de sentir, de correr o risco. Mas recordo inevitavelmente que cada erro que se faz na busca dessa quimera custa muito, tanto, demasiado, e um  instinto de sobrevivência atira-me com a estatística: é sempre um salto sem rede, ou sobre uma rede esburacada, e é imensa a probabilidade de acabar no chão estatelada.

Teatros

Volta não volta, vejo-me nestes dilemas de consciência, não sei se de falta, se de excesso. Tenho uma noção absurdamente clara dos meus limites, dos meus vícios, dos meus medos. Tenho uma noção claramente amarga do que esperar dos outros e da vida. A conjugação das duas coisas projecta-me em futuros espartilhados, raciocínios viciados e fugas, num guião de tragédia anunciada. Onde ainda por cima sou tão espectadora como personagem.


Nebulosa

Quero convencer-me que é o turbilhão das poeiras agitadas pela explosão de um novo começo. O brilho é difuso, o movimento é um pouco angustiante. Mas tenho de acreditar que é só uma nebulosa, um bocadinho de universo a nascer, a deixar estrelas a brilhar quando assentar a poeira. Como qualquer nascimento, envolve dor e medo, o romper de algo novo é sempre um processo brutal. Mas, na verdade, visto de fora, também é um espectáculo fenomenal.