Partilhar

Ouvi uma coisa que me surpreendeu, por ser dita por uma psicóloga ou psiquiatra, nem sei bem, que dizia que, mas do que estar nos momentos maus, o que cimenta os relacionamentos é o estar nos momentos bons, sendo-se capaz de partilhar, sem ciúme ou inveja, as alegrias do outro.

Dá que pensar. Acho que não há verdadeiro relacionamento sem partilha de momentos maus. Quando fugimos dos outros nesses momentos, mesmo que com a desculpa de não queremos impingir as nossas dores e problemas àqueles de quem gostamos, na verdade isso significa que achamos que esses outros não são ajuda. No fundo, é humano procurar alívio para o sofrimento, e só varia a forma como o procuramos e a panaceia que consideramos eficaz e disponível (que às vezes se revela um tremendo engano, pois também há muitas com efeitos secundários nefastos, e outras que são apenas muletas auto-destrutivas). Numa fase mais madura, tende-se a procurar apoio, ajuda, um ouvido amigo ou uma mão de amparo. E se achamos, a tempos, que a melhor forma de nos curarmos é o isolamento, para mim isso é sinal de que não achamos que os que temos à nossa volta estão realmente lá para nós.

Claro que podemos precisar de momentos de solidão. Eu preciso muito deles de vez em quando, mas apenas para poder reflectir, desmontar interiormente o que me atormenta com o input que os outros vão dando, ou conseguir ouvir a minha voz sem o barulho das luzes. Mas isso não é isolamento – é reflexão.

Já quanto aos momentos bons, concordo que não há nada melhor do que dividir uma alegria com alguém que nos é querido e nos quer bem. Tem-me feito muita falta, nos últimos tempos, poder partilhar a comemoração de vitórias e de momentos felizes, mais até do que os dias maus e as tristezas. Mas partilhar esses momentos não é o que cimenta um relacionamento. Se o partilhamos com alguém é porque acreditamos no relacionamento e se, ao invés de se alegrar por nós, alguém tem ciúme ou inveja, simplesmente não há é afecto verdadeiro.

A forma como partilhamos os bons e maus momentos, para mim é espelho, de duas faces - e não cimento. Nos maus, de nós revela em quem realmente confiamos e que achamos que está do nosso lado; dos outros, revela com quem realmente podemos contar. Nos bons, revela quem são aqueles a quem queremos bem; e os que gostam de nós, porque se alegram com a nossa alegria, sem ciúme ou inveja. Portanto, ambos revelam um monte de coisas: quem acreditamos que gosta de nós, quem gosta realmente de nós, quem na verdade não gosta e quem, no fundo, já sabemos que não gosta (pois não os procuramos nos maus e, perversamente, também somos capazes de querer mostrar momentos bons a alguns desses, para provar alguma coisa ou exactamente porque sabemos que os vamos encher de ciúme e inveja - não é bonito, e não é partilha, mas quem é que nunca o fez?...).

O cimento é algo anterior à partilha. É aquilo que nos leva a escolher alguém para partilhar, e sobretudo aquilo que permite partilhar com o mesmo alguém os dois tipos de momento. Se alguém não divide connosco as tristezas, porque raio haverá de querer partilhar alegrias? – talvez queiram apenas beber daí o “hype” em que essas situações nos lançam, ou são simplesmente hipócritas. E se alguém só quer saber das tristezas, talvez, no fundo, só queira mesmo saber-nos mal, sentir-se bem pela comparação ou por uma certa "utilidade", e por isso não se interessa realmente pela nossa felicidade.

E nós? Para quantos corremos com igual vontade e à vontade, consoante carregamos tristezas ou alegrias? Essa escolha também nos espelha. E muito.

Desenho

Eu sou uma mulher complexa, mas descomplexada. Geralmente profunda e séria, reflexiva e introspectiva. Mas com sentido de humor, gregária, e com vontade de me divertir, com animação e algumas futilidades. É, por vezes, a fuga possível do peso do meu interior.

Sou eclética, nos gostos e nas pessoas que escolho, o que leva a que muitos me apelidem de "estranha" ou, quando ao menos até gostam de mim, de "especial". Escolho essências, nas coisas e nas pessoas. Quero ser escolhida também assim. Acarinho os poucos que me aceitam por inteiro, aqueles que não me vêm "estranhezas", mas sim alguma coisa de diferente, que são capazes de aceitar. Dos outros, guardo uma prudente distância.

Por fora, sou quase sempre aparentemente pacífica e serena, tanto mais serena quanto mais inquieta. Mascaro-me com um sorriso de acessibilidade e simpatia, além de um discurso solto e leve. Mas também sou frontal, às vezes até mesmo um pouco crua, e posso até parecer fria e insensível quando preciso da distância de protecção. Na verdade, é a outra máscara: indiferença e frieza aparente. Sei que baralho muita gente. É que mesmo muitos que pensam conhecer-me bem, não me arranham sequer a superfície.

Sou paradoxal, em variadíssimos aspectos, desde logo pela dialéctica interior permanente entre os princípios da minha educação extremamente religiosa e conservadora, e a minha natureza de espírito livre, liberal, e agnóstico. Integrei e pratico muitos dos princípios da educação que recebi, que reconheço válidos, mas recusei outros tantos a que não reconheço sentido. Paradoxal, também, por ter tanto de cerebral como de emotiva. Seguindo ora a cabeça, ora o coração, ora tentando forçar uma lógica na emoção, ora tentando fazer de um pensamento um sentimento.

Faço muitos erros pelo caminho, por vezes nem eu me entendo, e sou muitas vezes incompreendida, sobretudo pelo meu círculo natural mais próximo, gente presa em dogmas, preconceitos e puritanismos hipócritas. Por isso vou redefinindo o círculo. Embora já muitas vezes me tenha sentido só, sei que não estaria em paz comigo mesma se aceitasse compactuar com o que não me define, apenas para ser "aceite" e ter companhia. Quase sempre, durmo em paz com a minha consciência.

Sou como sou. Intensa e inteira. Não sei dar-me pela metade, nem receber a prestações. Por isso resguardo-me, protejo-me, cada vez mais à medida que somo desilusões, incompreensões e outras experiências. Mas não me transfiguro. Dos outros, quanto muito fujo, retraio-me e desapareço toda, subo o muro e fecho o portão. De mim, vivo uns tempos numa outra bolha qualquer, fecho-me algures atrás de uma alegre confusão. Para mim, depois volto à origem, realinho-me, arrumo, e continuo.

Define-me sobretudo “eclética” e “paradoxal”. Uma "definição" destas define apenas o indefinível, o indefinido. E, no entanto, estranhamente, sinto-me hoje perfeitamente desenhada, desde logo porque me consigo escrever assim.

Ondas curtas

Há um monte de tralha que me enche o espaço, me confunde, me baralha. São peças soltas de vida vivida em alta velocidade e baixa densidade. Largadas por ali, sem ordem, sem lógica, sem sequência ou consequência. Pergunto-me até se com alguma utilidade. Debaixo da confusão estou eu, ou o que resta de mim. Parece que me evaporei numa leveza que me era estranha, e esvoacei por aí pegando e largando as coisas, mas acumulando os restos até chegar a esta desordem.

Tenho de fazer de novo o caminho. Limpar a casa, arejar, redescobrir a serenidade de ser apenas eu própria, na raíz, de volta à base. Sinto-me um pouco perdida, ou talvez diluída, por esse tanto de vida que quase me tragou. Preciso de me condensar de novo, destilando-me, na busca dessa essência que lá esteve sempre mas foi volátil, e depois quase se afogou. Agora sinto que é altura de ligar à terra e re-sintonizar, ouvir atenta a letra da minha canção. Sei que há música no ar. Estou em afinação.

Vitória!

Está a fazer um ano que uma onda varreu a minha a vida. Primeiro, uma onda de mar, que me surpreendeu na areia absorta na leitura, e que me levou a escrever sobre o que é para nós realmente fundamental ou supérfluo. Depois, uma onda de choque, que me tirou o chão, sem aviso e sem piedade. Vi-me de repente a perder a estabilidade profissional que segurava, ciente da dificuldade dos tempos que já então se atravessavam, presa pelas minhas responsabilidades maternas. Queria dar o salto. Estava farta do que fazia, do meu chefe, do meu trabalho, mas achava que o que ganhava dali é que era o fundamental, o que tinha de preservar para assegurar a sobrevivência do meu filho, e a satisfação pessoal é que era o supérfluo, aquilo que podia, e devia, dispensar, compensada por alguns pares de sapatos extra. O risco do salto era demasiado avassalador, mas também o foi a constatação de que já não era uma escolha minha, que já estava em pleno voo. Restava apenas escolher onde aterrar.

Não foi fácil sentir o impacto em cascata que este acontecimento teve sobre mim. Não só no domínio profissional, mas também no pessoal - nas amizades, na família, na rotina do dia a dia, e até na auto-estima. Os primeiros meses, passei-os “en la vida locca”, como me acusou alguém mais tarde. Admito alguns excessos. Aquele cortar de amarras assusta, mas também liberta. E, de repente, tinha tempo para tudo aquilo que antes deixava para trás. Foquei-me nos positivos: o tempo extra, e de maior qualidade, com o meu filho, com os meus amigos e comigo própria. Os livros que conseguia ler, a quantidade de saídas à noite que tinha energia para aguentar, os almoços e cafés com todos os que passava antes meses sem ver. E um certo pico de aparente auto-estima, essa tal sensação de liberdade que se confunde, às vezes, com o sentimento de uma certa impunidade, que me levou a entrar de cabeça em relacionamentos inconsequentes. Mas que tinham o balão de ar quente de que precisava naquele momento, para não admitir que me sentia sozinha, um pouco perdida, e muito mais carente do que o que gostaria de reconhecer. E mesmo sentindo também o impacto negativo de outras coisas que tinha perdido, a tristeza de ver amizades que pensei intocáveis abanarem com nova distância física, e sabendo que algures por ali me estava também a perder, agarrei-me sempre à convicção quase autista de que, no fundo, aquele acidente de percurso era antes uma fantástica oportunidade e que me tinha tornado mais forte, mais confiante e mais liberta.

E na verdade, visto à distância, até foi. Depois de um montanha russa vertiginosa, e de me ter sentido presa em loops a desafiar a gravidade e a lei da vida, esta era mesmo essa oportunidade de me redireccionar e satisfazer profissionalmente, além de ser também a oportunidade de me testar, nos limites, e perceber claramente, por fim, que sou o que sou, independentemente do muito que possa rodar e mudar na minha vida, independentemente do muito que me permita ou obrigue viver de forma diferente.

Confesso que custou, com o tempo a passar, recusar ofertas financeiramente atractivas, mas que eu sabia que eram mais do mesmo, e também essas começarem a rarear. Também sentia a falta de outros pequenos luxos e devaneios que podia antes fazer. Mas persisti, quase até ao limite que fixei o mais longínquo possível. Mais um pouco e teria sido obrigada a aceitar esse “mais do mesmo”. Mas de repente surgiu a oferta por que esperava e, mesmo obrigando-me a mais uma readaptação, e mesmo não me oferecendo à partida garantias de estabilidade nem o retorno financeiro desejado (e merecido!), avancei, arrisquei, investi. Trabalho que nem uma louca, tive dias e dias seguidos de autênticas maratonas, tive os meus frios na barriga em face dos primeiros grandes desafios, aquela pequena dúvida, pequena fraqueza, de pensar que talvez não estivesse à altura, que talvez não fosse capaz. Mas comecei a superar os desafios, um por um, e a encher-me de orgulho por ir à luta e vencer, e de confiança para continuar a ganhar. A reconstruir a rotina, a redefinir espaços e tempos, e a ver-me surgir, no fim desse processo, de novo eu mesma, um pouco mais cansada, mas um pouco mais feliz. E ao fim destes primeiros longos meses, finalmente, vejo compensados os meus esforços, e com praticamente a mesma estabilidade que tinha há um ano atrás.

Agora, há que cantar vitória, claro, mas falta reequilibrar tudo o resto, tudo isso que deixei para trás ou em stand-by para poder focar-me neste investimento - desde a falta de férias e tempo para o meu filho, até ao ginásio e aos amigos. É um bocado perverso, mas sinto que nunca chego para viver tudo ao mesmo tempo. Talvez a vida seja mesmo assim: um eterno compromisso, um eterno alternar de focus, que acaba sempre por fazer alguma coisa ficar para trás, para mais à frente lá termos de voltar e compensar. Menos mal quando se lá volta com uma medalha ao peito, porque também sei que quando se quer chegar a tudo ao mesmo tempo, no fim não sobra é nada, nem sequer de nós próprios. Custou essa lição, mas acho que agora aprendi.

Compensada

De emprego novo recente, para além de andar numa vida louca de trabalho intenso, não tenho férias este ano. Faço-as dos fins de semana, que aproveito da melhor forma possível. Primeiro, a visitar o meu filho, que tive de mandar com os avós, e tentar enfiar naqueles curtos dois dias tudo o que não cabe em mim de uma semana inteira de ausência. Mesmo sem querermos, acabamos por sofrer o impacto da lei das compensações. Com ele, não é tanto os brinquedos e as tralhas todas que quer comprar, mas os mimos, os abraços e as histórias ao deitar. Agora que está com o pai de férias, esse curtos dois dias são para aproveitar de outra forma. E este fim de semana lá fui, rumo ao sul e ao sol, com mais três amigas.

Com montes de trânsito à mistura, e alguns desaires pelo caminho, acabei por me divertir, gozar a praia sem pás e ancinhos, sem chuvas de areia e sem horas, gozar as noites (e também uma de descanso a compensar a outra de animação), a companhia e as conversas de tudo e mais alguma coisa. De nós as quatro, duas com namorado em Lisboa, e duas sem namoros no horizonte. Somos as mesmas, independentemente do que vai passando na nossa vida. Mas, e talvez seja esse um dos grandes desafios de todas as relações, há momentos em que simplesmente não nos alinhamos da mesma forma. Sobressaem em nós coisas diferentes, que não é que não sejam nossas, que não estejam lá sempre, mas assomam com maior ou menor intensidade conforme o que vamos vivendo. Talvez, digo eu, conforme o que nos falta ou o que ganhamos. É bom quando, ainda assim, a amizade subsiste. Aliás, acho que assim se pode fortalecer. Mas não deixou de ser curioso notar que, apesar de nos termos divertido todas, é claríssima a distinção entre o que priveligiam umas e outras, em vários aspectos, nessa coisa da compensação.

E hoje, depois de um telefonema cheio de lágrimas durante o fim de semana, fui compensar o meu filho ao fim do dia, que já está cheio de saudades e só quer é saber quantos dias faltam para voltar para casa da mãe. Dizia-me que tem saudades minhas e que já não quer ficar com o pai assim tanto tempo. Tentei lembrar-lhe que agora é a vez do pai e quando lhe disse que depois tinha saudades dele, como diz tantas vezes quando está comigo, respondeu que não, que "é só às vezes", e que "agora" tem saudades da mãe. Percebi-lhe tão bem a angústia de não poder ter os dois ao mesmo tempo, e de não querer ter saudades de nenhum dos dois no mesmo momento. A necessidade de equilíbrio, no fundo, a necessidade de compensar. Se a nós custa tanto com outras tantas coisas, como é que não há de lhe custar a ele?

Muda-se o verbo

Não sei como realmente cheguei a esta conclusão, mas dei por mim, de repente, a admitir que algo me fugia definitivamente da compreensão. E, ao contrário do que é em mim habitual, percebi que simplesmente desistia, entregava os pontos. Achei que o caminho da felicidade, esse conceito abstracto a que aceitamos reconhecer existência mesmo sem lhe conhecer o sabor, é simplesmente uma forma de disfarçar o quanto nos custa caminhar. Porque custa - custa sim senhor. Custa saber que a vida passa, que cada amanhecer é menos um dia de juventude, um dia mais perto do fim, e que a cada dia pouco mais felizes somos que no dia anterior, que não há passes de mágica que nos tornem felizes de um dia para o outro (embora ganhar o Euromilhões pudesse ajudar).

Todos temos os nossos momentos de felicidade, e fases em que esses momentos se multiplicam mais profusamente ao longos dos dias, enchendo-nos da convicção de que somos felizes. Mas apenas estamos felizes. É momentâneo e efémero. Dura até começarem a rarear os momentos bons, até se entrar nos ciclos de dias em que se somam mais tristezas ou outras dores, dias em que achamos que somos infelizes. Mas, na verdade, apenas estamos.

No fundo, somos todos um bocadinho bipolares. Ninguém consegue estar sempre feliz, nem ninguém sobrevive a uma pernanente infelicidade. E ninguém atura alguém que está sempre radiante mesmo que o mundo expluda, ou alguém que está sempre deprimido mesmo que a vida sorria.

O que mais atormenta a maioria das pessoas é essa necessidade auto-imposta de se poderem dizer pessoas felizes. E o maior problema é que há sempre qualquer coisa, às vezes maior outras menor, que atrapalha esse objectivo. Se sofrer num dado momento, poderei dizer, ainda assim, que sou feliz?

Poderei, se redefinir o conceito e não o deixar incluir aquilo que não tenho. Poderei, se aprender a sofrer com o que seja, sem deixar que isso contamine as coisas boas da vida. Poderei, se perceber que o que me pode fazer uma pessoa feliz não tem de ser o que faz os outros felizes. Poderei, se aceitar que não tenho de ter o amor da minha vida para ser feliz. Encontrar esse amor, que parece ser o caminho mais fácil, que mais consensualmente é aceite como o ponto chave da felicidade humana, acaba por ser o mais duro e interminável dos caminhos, instituindo a infelicidade permanente, de forma ditatorial.

Por isso desisti. De entender e de procurar por aí. Tentei ser feliz com tudo o resto: o meu filho, o meu trabalho, os meus amigos, livros, música e escrita, e um novo conceito de amor, mas em versão “light”, digamos. É que se a felicidade se alcança pelo amor, mas se o amor nos foge a vida toda, então só resta mesmo encontrar-lhe alternativas. E ou redefinir amor, ou redefinir felicidade.

Não me orgulho, mas tenho escolhido conforme o que me permite dizer a cada momento que estou feliz.  Mas no fim, também não posso dizer que sou feliz. Só que sempre custa menos fazer o caminho assim: estando de momento em momento, apesar de não ser em tempo algum.

Onde está a força?

À medida que vamos vivendo e ganhando experiência, dizemos que ganhamos calo. Não é por acaso. De facto, na grande maioria dos casos, a experiência da vida vai-nos endurecendo. O tempo, os erros, o que sofremos, ensina-nos mecanismos de protecção e pode endurecer até a expressão. Vamos aprendendo a proteger-nos mais, a confiar menos, a duvidar de tudo, e a contrariar as tendências naturais que mais vezes nos põem em perigo. Mas, na ilusão de nos tornar mais fortes, hoje acho que, à medida que nos cobrimos de uma camada de pele mais grossa, cada vez mais impenetrável, tornamo-nos é muito mais fracos, muito mais vulneráveis e, sobretudo, muito mais sozinhos.

As características pessoais de maior “sensibilidade” são, actualmente, vistas como uma fragilidade. E quem as tem, sabe que sofre por causa delas. Quem não desiste de confiar nos outros, mesmo depois de muitas desilusões, é sempre visto como um fraco e as suas lágrimas são vistas como o óbvio castigo da sua “insensatez”. Quem acredita que tem uma responsabilidade quando lida com os sentimentos dos outros, e por isso se expõe e se dá ao trabalho de escolher o caminho mais complicado e difícil para si, por forma a evitar magoar os outros, acaba sempre por ser visto com o tal do “O” na testa. Infelizmente, quase sempre, neste último caso, os tais “outros” acabam por dar razão a essa visão, porque quase nunca reconhecem o esforço e a nobreza da intenção.

Mas onde eu queria chegar é que, por mais que apuremos o instinto para cair menos vezes nas esparrelas da vida, e por mais que nos custe ter de aceitar o gozo dos amigos e do “bem te disse”, há coisas em nós que não devemos mesmo tentar mudar. Há coisas de nós que nunca conseguiremos mudar e, se andarmos a lutar contra isso, não aprendemos a viver com elas. Se sou uma tonta sentimental, por mais que queira mascarar-me com a frieza e a dureza do que diz por aí que é sensato nos dias que correm, acabarei sempre por sofrer duplamente: uma vez por ter de me obrigar a ser o que não sou, e outra vez por ter de, em consciência, me perdoar pelo que fui.

O mundo e a vida não são perfeitos, tal como nós. Mas não é força deixarmo-nos corromper para fingir que nos dói menos o efeito de tanta imperfeição. E mesmo não podendo mudar o mundo, podemos continuar a querer que seja melhor, podemos continuar a querer ser melhores para o mundo, começando por assumir que sensibilidade não é necessariamente insensatez. O que é insensato, quase insano, é deixar que nos esterelizem o pensamento, nos espartilhem o sentimento e nos isolem debaixo de um calo.

A arrumar as malas

Aqui sinto-me em casa. Regressada a casa. Hoje sento-me aqui a olhar para a tela branca, como paredes vazias que antes se vestiram de muitas letras que sabia de cor, e quase nem sei por onde começar, do tanto que as quero vestir de novo. Muita coisa me leva a voltar. Algumas coisas boas, outras nem por isso. E pelo meio algumas renitências, resistências e desistências. Assim é a vida e assim somos nós. Estes seis meses passaram depressa, mas parece que deixaram o tempo da minha partida tão distante, tão longe, que parece ser outra vida. E no entanto, apesar do muito que passou, é para aqui que volto, é a mim que quero voltar. Tentei fugir-lhe, mas tenho uma essência a que não posso escapar. Sou Princesa, e não importa o que mais junte ao epíteto que me marcou, essa Princesa que aqui se destilou é o que sou na verdade. Resta-me o consolo de uma frase de Clarice Lispector, uma novidade que tenho vindo a descobrir: "Sou sempre eu mesma, mas com certeza não serei a mesma para sempre".

Vai ter de ser devagarinho, pouco a pouco, mas sinto as palavras debaixo da pele, nas pontas dos dedos nas teclas, quase como quando temos uma coisa a transbordar de dentro que queremos dizer e nos fica presa na garganta, seja pela atrapalhação que causa, seja porque falta a coragem ou a oportunidade. Pois dizem que as oportunidades fazem-se, e aqui estou eu a fazê-la: a reabrir o que pensei que não abria mais, não relia, não continuava. Não há dúvida que, às vezes, é mesmo preciso voltar atrás. Há umas cartas que nos calham na vida que nos obrigam a regressar à casa de partida. Mas já se jogou um bocado, já se sabe um pouco mais, e mesmo que com algum atraso, esse passo atrás é também um novo primeiro passo que se pode dar com maior sabedoria.

E agora um sopro de coragem e, mais ou menos atrapalhada, lanço-me ao meu próprio desafio. Tenho saudades de mim.

A regressar


Parece que voltei. É: parece mesmo.

Para já, a primeira missão é redefinir o nick e perceber o porquê do regresso. Ou vice-versa, talvez.