Vou ali, já venho



Depois de duas vezes adiada a partida, hoje também fecho a minha mala para ir para longe uma semana. Resolvi pegar no passaporte, um monte de livros, outro de biquinis, protector solar e repelente de insectos (que repelir outras coisas é-me natural) e partir para outras paragens, mais calmas e prazenteiras, solarengas e longe, bem longe disto tudo. Vou a África, não a um dos meus destinos de sonho que são um bocado mais fora de mão, e pouco propícios para o trabalho de casa que levo, mas ainda assim África, de praias, palmeiras, tempo lento e descontraído. Preciso mesmo desse respiro para voltar então para o recomeço da minha vida em força, com as ideias arrumadas e o corpo descansado (além de bronzeado, o que me vai dar um certo gozo no regresso, já que sofro geralmente de ser a eterna “branquela”). Preciso mesmo de uma fuga destes espaços e destes tempos, para poder mergulhar em mim mais fundo e não me deixar fugir. Preciso de sacudir a poeira da minha alma que se tingiu de escuro nestes dias. Preciso de inspirar profundamente e expirar convictamente, largando o peso no ar. Preciso de ir deixar em solo infértil, onde tão cedo não vou voltar, e que não vou regar, cheiros, memórias e imagens, restos de sonhos e ilusões, sobras de amor e de ódio que agora se misturam em mim e me agoniam. Preciso de ir buscar a paz, a força, a leveza da alma e do coração limpos, leves e arejados.

Trago fotografias. Ou não. Se calhar não é um tempo para recordar.

Fechar a mala



Mesmo quando é numa despedida para uma ausência curta, custa sempre fechar-lhe a mala. Há que deixá-lo ir, largá-lo na rotina das idas e vindas que a vida lhe impôs, e sorrir de volta, seja lá como fôr. Tento pôr-lhe dentro da mala mais do que posso. Sei que a encho de coisas inúteis e coisas demais. Acaricio as roupas que escolho e dobro, na ilusão de que ele me possa sentir as mãos quando outro alguém o vestir. É uma ilusão idiota. Sei que não vou lá dentro, não vou com ele. E quando fecho a mala sinto-me fechada do lado de fora, de fora desses espaços e desses dias dele sem mim.

E sobram-me dias de mim sem ele. Dias de que preciso, em que aproveito a liberdade e o silêncio ou a agitação dos meus dias de mulher, mas dias que vivo nunca me deixando de sentir mãe em vazio. São, desta vez, dias que me impus e lhe imponho, porque são dias que agora me são vitais. Desta feita, sou eu que o fecho de fora deste bocadinho de vida que vou viver mais longe, e desta vez não sinto culpa, ou remorso. Mas sei que sentirei saudade.

Das coisas simples que me fazem sentir bem # 3




Um livro para desbravar.

Assim daqueles que às primeiras páginas já tenho pressa de acabar, mas que sei que chego ao fim com vontade de mais capítulos. Gosto muito de ler, e leio muita coisa variada, de muitos autores diferentes. Tanto gosto de uma escrita mais densa, como de uma escrita mais leve, tanto gosto de thrillers, policiais ou, de preferência, de espionagem, como de romances, e tanto leio prosa como poesia. Alguns livros leio e esqueço incólumes na prateleira, outros entranham-se em mim e deixo-os de cantos dobrados e frases sublinhadas, em locais que sei de cor na minha estante, tão marcados quanto me marcam a mim.
Agora leio “A Espuma dos Dias” de Boris Vian. Não é uma "novidade", é de 1946, mas que descoberta fabulosa, em todos os sentidos... Vou a meio e já sei que será daqueles que não vou esquecer, e que tenho a certeza que hei de querer reler.

Lá chegarei



Pacifico-me, entendendo que não quero mesmo baixar os braços. Sereno, debitando palavras que me fogem como um sorriso involuntário que se desenha nos meus lábios. Levanto a cabeça, com a convicção, talvez idiota, que já estou no caminho.

Não sei qual é o meu caminho, mas não é desistir. Começo a sentir nítidos os contornos de brumas que vagueiam por mim em sonhos. E sinto um fervilhar qualquer que me deixa na antecipação de que está a começar. O futuro, está a começar.

Equilíbrios



Há alturas em que me sinto em guerra comigo própria. Sinto que sou prisma colorido de muitas faces e muitos brilhos, e que o conjunto não é uma forma harmoniosa, mas antes um obtuso objecto que quer rolar mas tropeça nas arestas e nos vértices, nunca se fixando numa côr definida. Sinto que tenho de escolher quais as faces do prisma que se podem ver, que podem brilhar, e que há sempre umas quantas que terão de ficar ocultas, porque o objecto tem de assentar em algum dos lados.

Senti muito isto em relação à minha dicotomia mulher/mãe aqui há um ano e pouco atrás. Foi um dos meus maiores desafios dos últimos tempos, arranjar um equilíbrio para o prisma de forma a que, tanto a face da mulher como a face da mãe, pudessem brilhar e ver a luz do sol, criando no conjunto uma paleta de côres harmoniosas. E agora, por força das circunstâncias, sinto de novo esse equilíbrio perigado, lutando entre uma enorme vontade de partir pelo mundo fora e uma inegociável necessidade de caminhar com o meu filho.

Queria fazer a mala e levantar amarras, partir à aventura, recomeçar a vida toda num outro lugar, encontrar o meu lugar. Mas ele prende-me aqui e não consigo sequer articular a hipótese de partir sem ele. Isso seria enterrar no chão uma das faces mais importantes do meu prisma e sei que seria desvirtuar-me, no sentido em que seria tornar-me incompleta, seria tornar mais pobre a paleta de côres que o meu prisma produz. Sei que não seria capaz, como uma amigdalite me faz claramente recordar, ao embalá-lo no colo uma noite inteira, sofrendo a agonia de o ver sofrer, correndo com ele para o pediatra com a instintiva mas inquestionável certeza de que ele estava mesmo doente. E estava.

Nas noites sobressaltadas a seguir, noites de ausência dele que ficou com o pai, mesmo sabendo-o medicado e a melhorar, sofro a distância e sinto o prisma desiquilibrado. Como poderia ir para mais longe ainda, e por muito mais tempo do que os 4 dias ou uma semana no máximo que ele passa com o pai a cada quinze dias?...

Não posso. Mas queria. Queria ir. E esse ímpeto de movimento negado ao prisma, desiquilibra-o perigosamente, e escurece assustadoramente a luz que me atravessa.

Curiosidade



Coisa estranha a forma como alguns crescem em nós. Nunca tinha percebido como era possível. Sempre foi para mim uma coisa basicamente instintiva, e ainda mais com homens – gosto ou não gosto, simpatizo ou não simpatizo, confio ou não confio, atrai ou não atrai (e nesta vertente então, é mesmo instintivo e imediato). Depois normalmente o primeiro impacto vai-se consolidando e pode crescer, às vezes mais e às vezes menos, mas sobretudo se fôr positivo. Aí é como uma semente - se confio, confio cada vez mais, se gosto, gosto cada vez mais. Salvo, claro está, as desilusões que se tem pelo caminho. Se é negativo, normalmente acaba em simples indiferença porque me afasto diplomaticamente, detesto fazer fretes de politicamente correcto.

E no entanto, de repente dou conta de que, aos poucos, há mesmo quem ganhe espaço dentro de mim, quem se vá construindo em mim do quase nada e vá ganhando outros contornos, ganhando aos poucos a simpatia, o gosto, a confiança, e até a própria atracção, num crescer simultâneo das várias vertentes, e polarizado-se em algumas delas. Torna-se mais igual, deixa de ser um ser tão estranho e diferente que mais parece de outra espécie, no sentido em que vai sendo mais conhecido, mais compreendido. E sendo essa descoberta positiva, agradável, acaba por causar vontade de conhecer mais, de descobrir o resto, e acaba até por levar a dar atenção a aspectos que antes nem se olhavam, a somar identificações e compatibilidades dentro das diferenças que subsistem. Sei agora que é possível alguém passar de uma indiferença a uma vontade de presença, de um conhecido a um amigo, e até de uma resoluta falta de atracção a um curioso interesse de quase desejo. Esta curiosidade pode ser semente.

Mas... diz um popular ditado que “curiosity killed the cat” e, num plano um pouco mais elevado, dizia Nietzche que “quando nos vemos obrigados a mudar de opinião a respeito de um indivíduo, fazemos com que pague caro o trabalho que nos deu.” E isto preocupa-me e deixa-me a pensar...

Confiança rima com perdão



Muito se fala sobre confiança nos outros, sobre a sua importância num relacionamento e sobre a forma como se gere o processo. Nos extremos, há quem confie cegamente e quem seja incapaz de confiar. Pelo meio, combinações infinitas de fórmulas próprias, umas mais bem sucedidas que outras. Penso que em geral todos concordam que ambos os extremos são caminhos quase certos de sofrimento. A diferença é que quando se é capaz de confiar, sempre há a hipótese de um dia acertar em alguém que não nos decepcione e não nos torne miseravelmente infelizes. Desconfiar sempre não traz tantas lágrimas e desilusões pelo caminho, é mais "seguro", mas nunca abrirá a porta à surpresa da felicidade, o que acaba por ser um sofrimento morno, mas perpétuo.

E no meio? Como chegar a uma das tais combinações? Confiança é mais do que um processo mental, é também um processo emotivo. Nada mais explosivo que a articulação de razão e emoção, por isso tantas fórmulas pelo meio causam enorme devastação. Do que não há dúvida, penso eu, é que é um “processo”. E do que não tenho dúvida agora é que o “processo” de confiar nos outros começa com a confiança em nós mesmos.

É diferente no amor e na amizade. Eu sou patologicamente desconfiada mas, quase bipolar como sou, há certas pessoas que conseguem rebentar-me com os muros e defesas, e nessas confio mesmo, construindo o processo na emoção. Mas também com elas aprendo depois, seja pela desilusão seja pelo retorno positivo, a construir com a razão. Assim se aprende, por exemplo, a voltar atrás, a ir buscar alguém que nos é especial de volta. No fundo, aprende-se a perdoar, porque se confia que aquela pessoa é, no seu todo, maior do que a pequenez dos seus erros. É da nossa condição humana errar, e quando gostamos de alguém que erra, de certa forma sentimo-nos traídos, e custa perdoar. Mas tal como a confiança, o perdão só se consegue dar aos outros quando o sabemos dar a nós próprios. Perdoar é renovar a confiança. Estende-se a mão das duas maneiras, e só depois se pode continuar de mão na mão, ou separar caminhos, mas sempre verdadeiramente em paz.

Os amigos em quem confio são pouquísimos, mas existem. E acarinho-os porque me fazem tão bem, porque me fazem sentir humana, me ensinam a confiar em mim própria e a perdoar os meus próprios erros, e porque me desafiam a preserverar nessa luta de acreditar que às vezes vale a pena – tanto o impulso emotivo como a consciente e racional escolha de confiar e perdoar. Essas amizades são talvez o que me levará, um dia, a arriscar outra vez a confiar com Amor.

Tempus fugit



Chego a meio de uma semana em que não tive de ir trabalhar a sentir-me exausta. Não parei um segundo, todos os dias tenho coisas na Agenda, algumas nem consigo fazer no dia em que planeei, e ainda tenho mesmo de coordenar agendas para marcar encontros com amigos – devia poder dizer que qualquer dia serve, mas são já tantas as coisas marcadas que não tenho essa liberdade. Ainda assim, vou vendo os amigos.

Nunca me tinha apercebido da imensidão de coisas que deixava de fazer antes, da quantidade de pequenas coisas que adiava sitemicamente por estarem sempre a ser relegadas para o fundo da inesgotável lista das prioridades, e também, por outro lado, o prazer que pode ser fazer algumas coisas que fazia antes a correr, mas fazê-las agora com tempo, na descontracção de quem não está a contar minutos. E hoje ainda vou fazer um demorado mas (espero eu) compensador risotto para o jantar, e receber uma amiga com calma.

Mas tudo o que é de dentro não se pacifica só com o tempo a escorrer. Tem-me atormentado o sono, impedido de me deitar a horas decentes, e de dormir sossegada. Tudo assoma no final da correria do dia, quando o miúdo dorme, a casa está tranquila, e eu não me encaixo nessa tranquilidade. Não me pacifica o sono, e não me pacifica o tempo. Pesa, enormemente, o tempo a passar. A fugir, alucinante. É isso que cansa. E sinto que preciso de parar o relógio um bocadino, só um bocadinho, para recuperar a distância que me fugiu e retomar o ritmo da passada.

Sísifo – o herói absurdo



Sísifo é um personagem, não é só o o título do famoso poema de Torga. Sísifo-personagem é a metáfora do esforço inútil e incessante do homem que vive uma vida sem sentido mas que o procura eternamente.

Albert Camus (filósofo e escritor francês que ganhou um Nobel) utilizou a metáfora de Sísifo para sustentar a sua “filosofia do absurdo” segundo a qual as nossas vidas são insignificantes e não valem mais do que o valor do que criamos. Como o homem em geral nos dias de hoje não cria nada de valor, vivendo num mundo estéril e desumanizado que aceita, diz Camus que a alternativa a ser-se Sísifo é o suicídio. Porque Sísifo-personagem foi cruelmente castigado pelos Deuses devido às suas virtudes, condenado à cegueira no fundo de um vale, de onde só pode sair se escarpar uma perigosa falésia e ainda por cima empurrando o enorme peso de um pedregulho. E Sísifo não desiste, escala a falésia vezes sem conta apenas para rebolar de novo até ao fundo sempre que está prestes a alcançar o topo.

Para Camus, Sísifo é o expoente daquilo que chama o “homem absurdo” ou o homem com uma “sensibilidade absurda”. Este é o homem perpetuamente consciente da inutilidade e futilidade da sua vida, que ainda assim não desiste de a transformar em algo maior. Os Sísifos de hoje serão aqueles que desejam e procuram claridade e sentido num mundo e numa condição que não oferece nenhuma das duas coisas. Na metáfora, Sísifo um dia chega ao topo, e antes de voltar a caír na sua repetitiva e eterna desgraça, quer olhar à volta e experimentar a sensação de liberdade. Mas é cego. Não verá o que se espraia à sua volta com os olhos. Verá apenas com a alma, e mesmo que por um breve instante apenas, sentir-se-á grandioso e feliz. E isso fá-lo-á recomeçar, preferir a dureza da sua caminhada ao suicídio, à morte. Por isso, Sísifo é o tal herói absurdo.

O poema de Miguel Torga anda por aí. Já quase toda a gente o conhece e, no entanto, quase todos o citam e gostam dele pela primeira estrofe. Mas tem mais, muito mais. A primeira estrofe é positiva, a exortação à coragem, palavras que parecem de esperança, apenas com as ressalvas do “se puderes” e a adjectivação do caminho como “duro”. Mas a segunda estrofe é essencialmente um aviso, é a constatação das agruras inevitáveis e do perigo da loucura – são fatalísticas as “ilusões sucessivas” e o “logro da aventura” – porque Sísifo sempre cai de novo e sempre tem de recomeçar, e mesmo no breve instante em que alcança o topo, não pode olhar à volta porque é cego. As duas últimas linhas são fortíssimas – seremos loucos se nos reconhecermos na loucura, e a loucura é parar, é achar que nos conhecemos. Porque aqui parar é mesmo morrer, e morrer às nossas próprias mãos.

Recomeça...
Se puderes,
Sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,
Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomar
E vendo
Acordado,
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças.

Por muito que custe, por muito que às vezes não veja onde vou buscar a força, por muito o desespero da consciência da inutilidade do esforço, anseio por esse breve instante de libertação no topo do penhasco, de alguma profundeza minha acredito que chego lá, e a cada queda recuso-me a parar. Sísifo, na interpretação própria que faço dele à luz do que entendo da teoria de Camus, é irmão para mim, somos da mesma natureza, embora eu seja mais fraca e tenha os meus momentos de dúvida. Mas somos ambos absurdos.

Lá onde doi



Há uma expressão da BD da Mafalda que sempre me foi especial, porque acho que retrata tão bem o que às vezes sentimos: “uma pedrinha na alma”. Serve para aqueles momentos em que qualquer coisa toca uma nota especial na nossa alma, nos entristece e nos comove, fazendo sentir um pequeno peso no peito.

Outras vezes, o que nos invade é tão maior, o que nos faz sentir de dentro e o peso que lhe sentimos é tão grande, que nem substituindo “pedrinha” por “pedregulho” faz a expressão alcançar essa realidade. Para mim, a viver uma dessas outras vezes, é tão avassalador que chego a sentir que me matou a alma e secou o coração.

Cheia de zanga e de raiva, não quero deixar-me sentir a dor. Não quero derramar lágrimas para não dar a ninguém essa “satisfação”. No fundo, não quero dar parte de fraca. Racionalizo as coisas por forma a que chame outros nomes ao que sinto e não quero admitir. Fiz isso assim, tal e qual, num instinto de sobrevivência. Ou enlouquecia. Mas cresceu dentro de mim uma vaga imensa de dor. De tanto querer fugir-lhe e negar-lhe a existência, deixei-a crescer. E de repente, uma pequena coisa, que põe ao que não queria admitir sentir o nome que lhe compete, que me desarma pela forma improvável como acontece, rebenta o dique que pensei indestrutível, e por momentos, penosos momentos, verti essa dor violentamente, sacudindo-me o corpo e implodindo-me a alma. E só depois a escrevi.

Não há como medir uma dor de dentro, tal como não há como medir o Amor. Porque não cabem na alma, são muito maiores que nós. E levam tudo de nós, levaram-me a mim para lá, dentro, lá onde doi.

Verdade




De Carlos Drummond de Andrade:

A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.


Acho que por isso é tão difícil ver a verdade de quem amamos. E por isso duas pessoas podem ver duas verdades sobre a mesma realidade. Vemos o que queremos ver, escolhemos a verdade que queremos aceitar, e muitas vezes conformamo-nos com meias verdades, recusamos a parte da verdade que nos fere, porque é muito mais difícil aceitá-la. Quando não lhe podemos fugir, ou quando não nos contentamos com menos do que toda a verdade, há sempre alguém que nos critica, porque estamos a olhar para o que não devíamos, por estarmos a dar relevância ao que não é importante. Porque para muitos o importante é pintar tudo de côres bonitas e harmoniosas, mascarar os escuros e os imperfeitos. O meu maior problema é não ser míope e ser eternamente inconformada - não gosto de metades.

Gelou



Não sei se choro, se rio. Não quero verter mais lágrimas que não mas mereces. Mas isto não tem piada nenhuma. É duro, duríssimo, constantar o que dei de mim, o quão especial te fiz, o quanto te desculpei, julgando-te um homem que não és.

Não sei se devo sentir-me maior ou menor. Senti-me maior quando te fiz especial para mim, senti-me maior mesmo na forma como sofri por ti. Mas da mesma forma que fazer alguém especial para nós nos faz melhores e maiores, ser para alguém muito menos do que valemos também nos faz menores e piores. Isso não consigo evitar sentir, e isso não te desculpo. Não te perdoo que tenhas feito de mim o que não sou, que me tenhas feito sentir igual a quem desprezo, e que tenhas feito do que te dei algo tão baixo. Não te perdoo que deixes numa das coisas mais especiais da minha vida uma marca tão suja que chega a repugnar-me. Marcaste-me também agora da pior maneira possível. E levo essa mancha comigo.

Também sinto alívio, se queres saber. Rasga-me por dentro, fere-me a alma, vêr-te pelo que és. Mas percebo que tenho muito menos culpa do que a que andei a carregar tanto tempo. Percebo, claramente, que não me mereces, nem nunca mereceste. Foste para mim excepção em tudo, e com isso te fiz excepcional. Mas não o és. O homem que achei vislumbrar em ti não existe. A mulher que não soubeste ver em mim não te pertence nunca mais.

Quando digerir isto tudo, quando puder rir, digo-te apenas que me és tão estranho como eu te sou desconhecida, e assim quero permanecer. E digo-te que a vida dá muitas voltas, mas pelo que és nunca terás da vida mais do que tens, e eu, eu sei que terei muito mais e muito melhor que tu. Por mais feia que seja a vingança e o rancor, direi então que quem ri por último ri melhor.

Trânsito sentimental



Todos os dias sentimos um monte de coisas. Experimentamos uma panóplia vasta de emoções, muitas das quais nem percebemos, não ligamos, porque são coisas menores, sem importância, que sentimos tanta vez que já não marca, ou a que nos habituamos a não dar valor. Mas há dias em que sentimos coisas especiais, mais intensas e mais vivas, talvez por serem pouco usuais. No fim, são essas as coisas que marcam o dia, e por isso há tantos dias que não nos marcam. Apenas passam.

Se fôssemos a assentar numa lista tudo o que sentimos a cada momento de um dia, não só nos surpreenderia o tamanho da lista como a velocidade com que passamos de sentimento para sentimento. Podemos irritar-nos no trânsito, vociferar uns impropérios contra um qualquer idiota desconhecido, e a seguir sentirmos paz com a música que toca no rádio. Podemos sentir alegria com um abraço de um amigo, e a seguir sentir inveja pelo que nos conta. Podemos sentir satisfação por uma coisa qualquer que acabamos, e a seguir sentir tristeza com uma notícia má. Podemos sentir ao longo do dia, geralmente em pequenas doses quase inofensivas, quase todos os sentimentos que existem. Felizmente, não é comum ser assim. Felizmente, há em geral um sentimento dominante, que no meu caso tende a acordar comigo e raramente se corrompe por completo à medida que tudo o resto passa. E esse sentimento domina porque damos a quase tudo luz vermelha, e apenas a certas coisas luz verde. No fundo, regulamo-nos inconscientemente, num complicado sistema de semáforos e prioridades, que supostamente põe ordem no nossa mapa rodoviário interno.

Hoje senti duas coisas fortes, uma a seguir à outra, e não consigo decidir a qual dar luz verde para se estender para lá deste dia, a qual dar a prioridade. Aaaah, o poder das revelações... Aquele milisegundo em que coisas que nos atormentaram, que nos contorcemos em incríveis ginásticas mentais para entender sempre nos fugindo o sentido, se tornam claras, límpidas, transparentes. Pode ser bom, sentido como uma vitória, uma conquista, uma pacificação. Mas às vezes é duro e frio o sentir destas revelações. Não é à toa que se diz “a verdade nua e crua”. Para mim foi uma revolução, e um enorme engarrafamento cresceu-me no coração.

Excertos de mim # 4 - O que não quero voltar a escrever



“Alguns dias passam bons, com muitas coisas a encher a vida, mas ainda assim fica aquela sensação de que falta qualquer coisa, que nada faz verdadeiramente sentido. Sinto que me esvazio em razões de ser que são só números, objectivos, necessidades práticas. Sinto que me falta um bocado, falta um bocado de mim, e falta-me um bocado de vida. Tenho vontade de muito mais, vontade de largar muitas coisas e me lançar à conquista e à descoberta, dessa vida que me fugiu, dessa parte de mim que adormeci.

Sei que tenho muita coisa. Sei que, materialmente, não me falta nada. Sei que faço o que faço e vivo como vivo porque foi assim que a vida me obrigou a ganhar a vida. Sei que não me devia queixar e sei que prezo o conforto que compro com outro desconforto.

Mas creio que há mais para além do que vivo, do que sinto, do que tenho. Creio que há mais de mim. E isto que vivo, sinto e tenho hoje não chega. Isto não chega, não me chega. Ou eu não chego lá.”

Mas chegarei.

Primeiro o verbo



Olho para esta página que quero encher e luto por encontrar o fio à meada dos meus pensamentos e sentires que se entrelaçaram e enovelaram, numa massa disforme e indistinta, mas de côr intensa e tamanho enorme. Quero puxar a ponta do fio e devagarinho desembaraçar a confusão de fios que são o mesmo fio em nós e voltas sobre si. Procuro o princípio, o primeiro verbo e o seu modo perfeito.

A página branca é oportunidade e desafio. Duas pontas. Não serve. A página branca é uma promessa de futuro, incerto e desconhecido, que não será uma página branca nesse futuro, será página tingida de linhas, os fios arrumados em palavras e frases direitinhas.

É isso que é agora a minha vida: uma página branca onde tenho de arrumar o fio do novelo que quero escrever. De repente, o tal tsunami de que aqui falei, apesar de ter trazido momentos de angústia, empurrou-me para a frente, fez-me voltar a página. De facto, estou agora capaz de, e capacitada para, fazer coisas que há muito adiava. Nos próximos meses, substitúo o escritório pela Universidade. Faço duas coisas de uma assentada: livro-me de um trabalho que não me realizava, onde não estava satisfeita profissionalmente, ainda me pagam para isso, e volto a estudar para resolver o handicap do meu background académico. Escrevi aqui há meses que queria ir fazer uma pós-graduação mas que não via como conciliar mais uma exigência na minha vida já tão atribulada. Eis que o destino me resolve o problema, pondo-me no bolso o que chamo de “mini-lotaria” e libertando-me o tempo. Não é a melhor forma de o fazer, mas é uma forma de o fazer, e sei que tenho de aproveitar a oportunidade. É agora ou nunca e este investimento em mim vai também permitir-me redireccionar a minha carreira profissional para uma área que sei que me satisfará muito mais. Paga é menos, em geral, e foi mesmo esse o factor essencial para me manter tanto tempo onde estava.

Mas agora, que o tsunami me fez perspectivar a relevância de algumas coisas, sinto-me tranquila na aceitação de que dinheiro nenhum no mundo paga o sentimento de realização pessoal, de orgulho no trabalho que produzimos, desde que as coisas básicas estejam asseguradas, naturalmente.

Está verdadeiramente tudo em branco, tudo em aberto. E eu senti-me crescer com isto, como uma bola de neve que foi ganhando tamanho dentro de mim. Cresceram as minhas vontades, as minhas certezas, as minhas verdades. Ainda estão um bocado desorganizadas, ainda não as encaixei perfeitamente num novo esquema mental, em gavetas arrumadas. Mas sinto-as. Também tenho medo, sim, sobretudo porque embarco nesta aventura de destino incerto com o meu filho. Mas também para ele sobra para já mais tempo, e sobra uma mãe mais feliz e disponível para embarcar nas suas intermináveis e inenarráveis produções cinematográficas. O resto virá. E tenho consciência de que nada nos faltará e sei que, infelizmente não é assim para todos os que apanham com estes tsunamis privados.

Quero olhar para esta página branca como uma benção, a segunda oportunidade que muita gente não tem na vida. Quero escrevê-la toda de linhas que, no fim, façam mais sentido do que as linhas que deixei em páginas anteriores de mim. E de repente dei comigo já a fazer o caminho, com os dias preenchidos de milhares de coisas de que ando a tratar, e a começar a ver traduzidos em factos concretos, papeis e carimbos, o princípio do que era até há um mês atrás apenas um sonho, um desejo, que impassivelmente me resignava a não prosseguir, que julgava não poder realizar.

O verbo é mesmo começar. O modo é o presente, primeira pessoa do singular – eu começo.

PS: De pura ironia, é que a empresa de onde saí bloqueou ontem o acesso aos blogues.  Sem isso é que eu não tinha lá sobrevivido!...

Dúvidas



Uma boa garrafa de vinho depois, uma conversa de duas amigas que não se encontravam há muito tempo leva a conclusões surpreendentes. É uma amiga daquelas que, por mais que passem os anos e nos afastemos fisicamente, cada uma a seguir o seu caminho, por mais namorados e separações, casamentos e divórcios, por mais encontros falhados, quando nos reencontramos é como se nos tivessemos visto ontem. Fomos melhores amigas nos últimos três anos de liceu, e o que cimentamos nesses anos é tão forte que sobrevive a nós próprias, nas nossas individuais transmutações.

Recuperamos num instante os pedaços de vida uma da outra que não couberam nos emails, e ao fim de uma hora já acabamos as frases pela outra. Foi óptimo. Soube-me mesmo bem. E se tivesse mais vinho em casa, teria ido bem para lá das 3 e meia da manhã. Mas no fim, depois de ouvir o meu relato sobre a história do que vivi, e do que não vivi, com o homem por quem me apaixonei tontamente, pergunta-me simplesmente, com ar incrédulo: “E tu achas mesmo que isso não tem volta?!”

E lá fico, a abanar a cabeça que não, não tem, e o coração ligeiramente embriagado a encher-se de coragem para me fazer ouvir por dentro “terá?”... Mas agora estou sóbria e dou por mim a pensar nisto e a ter que escrever este post.

Integridade


Começo a ficar paranóica sobre a reserva de identidade no blog. Sei que tenho aqui a minha vida quase toda e tanto sobre mim que pouco mais falta do que o meu nome, morada e número de telefone. Só partilhei a existência do blogue com 4 pessoas, as 4 pessoas que não tenho dúvida de que são mesmo minhas amigas, e sei que apenas duas delas realmente o lêem e acompanham. Muitas outras pessoas com quem me relaciono sabem da sua existência, mas não sabem como encontrá-lo. E não quero que o encontrem, porque não me sinto confortável com tamanha exposição.

Por isso, fiquei perplexa quando, há uns meses, um amigo que vejo de vez em quando passou um jantar a fazer conversa à volta do tema “Princesa”. Na altura ocorreu-me que pudesse ter descoberto o blog, mas depois descartei a ideia. Mais recentemente, fui jantar a casa dele na altura em que publiquei um texto entitulado “Agridoce” e que me dá ele ao jantar? Um prato de peixe com ananás bem condimentado. Pergunta se está bom, eu respondo que é... original, mas sim, está bom, e ele faz uma piada sobre aquilo ser... agridoce.

Coincidências, pensei. Não é pessoa de andar pelos blogs, e que interesse poderia ter no meu? Além de que, se o descobrisse, ou me dizia, ou ficava bem calado para eu não perceber. É lógico, não? Mas agora, dá-me de presente de anos um CD. “Chill&Tango”...

Não sei se estou paranóica, mas é muita coincidência. Por isso não sei se essa pessoa vai ler isto, mas se lêr, é para que saiba que não gosto. Apesar de isto ser um espaço público, este também é um espaço de introspeção e intimidade, que por isso protejo com um nick. Se essa pessoa sabe que sou eu, peço-lhe que respeite por favor a minha privacidade, e não insulte a minha inteligência. Se fosse a situação inversa, talvez contasse que tinha descoberto o blogue, ou talvez simplesmente reservasse isso para mim, por respeito e para não causar constrangimentos. Mas não leria mais o blogue e certamente não o iria usar para fazer piadinhas desconfortáveis. Não é bonito.

Espero que isto seja tudo apenas coincidência, que a minha paranóia desproporcionou. Espero mesmo.

No limbo



Acordei na preguiça de quem não tem horas. Sem planos, compromissos, vontades ou determinações. Normalmente, tenho tudo isso. Mas hoje não. Hoje o tempo não conta, não tenho pressa de viver o dia.

Há muitas coisas para fazer, mas não tenho nenhuma vontade de as fazer. Não tenho nenhum sentido de urgência, nem sequer de ordem, o que é altamente incaracterístico. Estou a pairar. A pairar sem rumo e sem preocupação de definir destino. A retemperar forças, porque sei que tenho de meter mãos à obra em tanta e tanta coisa. Mas hoje não.

Estranha serenidade que de repente me deu. Depois de um dia tão mau, de tanta tristeza que ontem senti, de tanta perda e vazio. Dormi muito mal e hoje não encontrei nem enchi nada, mas a tristeza deu lugar à serenidade. Não é nada que se aproxime de alegria, mas também não é tristeza. Não é desânimo, mas também não é esperança. É simplesmente um limbo. Mas respiro fundo.

3 de Outubro



Este é, verdadeiramente, o primeiro dia do resto da minha vida. Marca-se hoje o último dia de um ano de vida, e o primeiro de mais outro. Devia ser um dia de vitória. Um dia de dizer que ao longo deste último ano somei mais isto e mais aquilo à minha vida. Que cresci mais estes centímetros, mas já não de corpo. Que andei mais estes metros ou aqueles quilómetros. O balanço, neste dia, quer-se positivo. E querem-se promessas de novos centímetros, metros e quilómetros, com a confiança de que estamos mais perto do que estávamos um ano antes.

Mas hoje chego a este dia, que sempre foi para mim um dia que não gosto de festejar, a fazer um balanço ingrato. Não me vou pôr a listar tudo o que perdi, tudo o que não alcancei, tudo o que me fugiu, ou tudo o que chorei. Estou já suficientemente deprimida pela simples constatação de ter a partir de hoje um ano mais – e um ano menos. Pesa-me que seja um ano a mais de tempo vivido, tal como me angustia que seja um ano a menos do tempo que tenho para viver.

Também não me vou pôr a listar tudo o que somei, que claro que somei. Porque o que ganhei, e conquistei, e encontrei, e todos os sorrisos e gargalhadas que dei e recebi, não apagam a memória das coisas más, não as diminuem nem, sobretudo, mascaram o sabor azedo que se impõe a este ano que chega ao fim.

Não me apetece celebrar a vitória de ter sobrevivido, porque chego aqui, a este momento, demasiado cansada, demasiado desiludida e demasiado mutilada, ao mesmo tempo que entendo que lutei por chegar a uma meta que afinal é uma nova linha de partida, em todos os sentidos. Foge-me o tempo e foge-me a vontade. Sinto que me foge a vida.

Não quero parabéns. Não faz mesmo sentido nenhum. Não fiz mais que sobreviver, do que andar simplesmente, mecanicamente, pondo um pé à frente do outro. Não tenho mérito especial por me ter desviado de uns ocasionais golpes de pancada e encaixado outros que suportei, enquanto os hematomas passavam de negros e lilazes a sombras amareladas. Não tenho orgulho dos momentos de fraqueza em que quase desisti. Também não tenho orgulho dos rompantes de força e determinação que me fizeram levantar do chão e continuar. É apenas instinto.

Hoje queria apenas enrolar-me num colo. Encharcar um outro ombro com o carpir de todas as mágoas e desgostos, sem recriminações. Hoje não me apetece o esforço de mostrar ser mais forte. Queria apenas uma mão pela cabeça e em segredo uma promessa de que vai correr tudo bem. Hoje acho que tenho o direito de ser menina pequena. Hoje é o único dia em que posso chorar. Tento fazer o luto. Enterrar este ano numa cova funda, num canto esquecido do cemitério das memórias. E tem de ser rápido, porque o tempo não pára e a nova etapa já começou, quer eu queira quer não. E tenho de sobreviver a mais uma. Não posso parar. Amanhã sou mais crescida. Agora, vou ver o mar.

Epílogo



Já está. Finalmente acabou a espera. A onda bateu e vamos ver o que leva. A espera custou, mas também me preparou. E agora é altura de meter mãos à obra. É um novo ciclo, que espero e acredito que vai ser melhor. E vai ser um novo ciclo total.

Eu estou de pé. E sei que tenho comigo uns quantos de pedra e cal. Obrigada.