A vida continua


Foi-se o ano, as 4 estações, os tais 12 meses contados de empreitada e por aí fora. Foram-se os dias e foram-se uma série de outras coisas. Essas foram, não interessam mais, ficaram para trás. O que fica? Depois de muito pensar, acho que fica um misto de memórias alegres e tristes, uma vaga cronologia de batalhas e guerras ganhas e perdidas. Algumas poucas coisas permanecem, transitam, vão comigo a mais um ano, não sei por quantos mais anos. Coisas em mim, que se foram definindo ou redefinindo, e outras almas que cruzaram o meu caminho e ainda por aqui continuam numa qualquer missão.

Fiz um monte de asneiras, desde o primeirinho dia do ano. Fiz algumas loucuras até, estive quase mesmo à beira da loucura. Andei numa verdadeira montanha russa, alternando altos e baixos, lentas subidas expectantes e rápidas descidas alucinantes. Também acertei em algumas coisas, percebi mistérios que me escapavam, mesmo que só depois de muito bater com a cabeça nas paredes. Mas vivi, intensamente e o melhor que pude, o melhor que soube. Sei que sou melhor mãe, sei que sou mais resolvida, sei que sou mais livre. Sei que sou também ainda mais exigente, ainda mais duvidosa e até ainda um pouco perdida.

Experimentei ao longo do ano muitas coisas. Aliás, até me disseram que estou numa “fase experimental”. É um facto. Até no amor, experimentei um pouco de tudo. Fez-me melhor? Nem por isso. Mas fez-me mais qualquer coisa. Por exemplo, fez-me encher de côr, desde o guarda-roupa aos meus sorrisos e memórias. Deste ano tenho memórias coloridas, numa diversificada paleta que não deixa de fora quase nenhum tom.

Paguei caro os meus erros, e sei que continuarei a pagar alguns por mais uns tempos. Mas conforta-me o que acertei e uma frase que me citaram, que o Lobo Antunes cita (imagine-se...) e que para mim resume muito bem a lição principal que aprendi em 2009: “tudo o que a vida nos pode dar é um certo conhecimento dela que, normalmente, chega demasiado tarde”.

O que fiz em 2009 foi aceitar sofrer as consequências de escolher e viver, mesmo que errando, sabendo que erramos sempre alguma coisa. O que quero para 2010 é poder continuar a fazer o mesmo, de preferência com menos erros para sofrer, e que os que faça, que farei, que ao menos sejam coloridas experiências. Deste ano foi-se quase tudo mas resto eu. E no final do próximo quero apenas chegar um pouco menos à deriva, e ainda um pouco mais eu. Sei que parto sem rumo, mas com uma imensa vontade de partir, de continuar a experimentar, de continuar a crescer, de viver apaixonadamente todos os instantes. Só assim vale a pena viver, de facto.

Um bom ano para todos os que por aqui vão passando.

Um dia, talvez



Um dia vou ter um Natal só meu em algum lugar longínquo. Onde as chamas de uma lareira de facto me aqueçam, e onde um abraço especial não me deixe a saudade de todos os que faltam.

Um dia vou ter um Natal que seja um dia feliz, apenas por ser mais um dia, tão feliz como os demais, apenas por ser mais uma noite, em que sei ter atracado segura na paz do derradeiro cais.

Sombras do Futuro



Um segundo a mais, ou um segundo a menos, e todo o curso de uma história, de uma vida, se modifica. Uma volta para a esquerda, em vez da volta para a direita, a decisão de milisegundo que tomamos sem pensar e sem saber o que acarreta. Fazemo-lo todos os dias, a toda a hora, e raras vezes nos apercebemos do que mudamos na nossa história por optarmos inconscientemente por isto ou por aquilo, por cada segundo que nos atrasamos ou adiantamos no curso programado dos nossos dias.

Mas também acontece sabermos que estamos prestes a dobrar uma esquina de destino. Acontece às vezes suster a respiração sem saber se estugamos o passo ou se arrepiamos caminho. Se nos lançamos no que quer que esteja do outro lado da esquina ou se lhe fugimos ao avistar as sombras que projecta.

Todos os futuros não são mais do que sombras projectadas retrospectivamente. Sombras de alguma coisa que ainda não é mas que se esboça lentamente à frente do caminho. Como todas as sombras, as do futuro não trazem os contornos precisos e reais dos originais ainda inexistentes que projectam, não trazem o detalhe, o pormenor, e não trazem para o aqui e agora aquilo que não existe ainda se não em mera sombra projectada.

Cada dobrar do tempo é um sol a iluminar uma nova realidade que se vê sem sombras. É uma descoberta, uma surpresa, que pode ser boa ou má. Reconhecendo o momento, é preciso saber bem, muito bem, se se está realmente disposto a, e capaz de, lidar com esse futuro feito hoje, independentemente do que traga, independentemente de não corresponder às sombras que projectou no momento do primeiro passo. Ou do primeiro beijo.

Eterno instante



Toda uma vida pode mudar num instante. E cabem muitos instantes em cada dia da vida.

Quantos anos, meses, semanas ou dias cabem numa eternidade? Para onde levamos o momento, o segundo, o repente que se sente eterno? E como se mede essa pequena-grande eternidade? Pelo que dura, ou pelo tempo que perdura depois de já não ser?

Promessas, planos e projecções, todos construídos na base de uma frágil linha de tempo que realmente não sabemos existir. Que pensamos não ter fim, num momento, e às vezes acaba logo ali.

Queria saber quanto de mim cabe na tua eternidade. Quanto de ti em momentos caminhará comigo eternamente. Quanto durará esse eterno em cliques de segundos, enquanto é, depois de já não ser.

Que prazo terás para mim e que limites que não vemos tornam finita a linha do tempo que projectamos indefinida, para lá do horizonte visível do eterno instante?

Os meus Gatos #2



O frio, as mantas e os dias tristes, fazem-me sempre recordar os meus gatos com mais saudade. Já escrevi sobre o primeiro, e hoje é tempo da história do segundo. Depois de ter perdido o Ludwig e decidir que não queria outro animal, o meu então ainda marido, um dia leva-me de surpresa a ver uma ninhada de persas para eu escolher um. Eu nem queria entrar, mas lá acabei por não resistir e fui sentar-me num canto. A ninhada era de quatro gatos, e ao fim de uns minutos tinha um cotumiço preto, de olhos côr de cobre e uma espécie de barba com as pontas brancas, a trepar-me pelas pernas e a brincar comigo. Se outra pessoa se aproximava, fugia logo. Levei-o para casa, pois...

Quando o larguei em casa, ele todo assustado, enfiou-se debaixo de um armário da casa de jantar e não saía dali nem por mais uma. Como não sabia do que ele gostava, pus à frente do armário uma série de pratinhos com várias iguarias. À noite, tinha amigos a jantar e a meio da refeição salta-me para o colo, depois de ter limpo os pratos todos, e a querer devorar tudo o que estava na mesa. Chamei-lhe Obelix...

Embora não fosse tão inteligente como o primeiro, era também meu, aliás, eu é que era dele, que ele é que me escolheu, e era muito carinhoso. Dormia sempre comigo, em cima dos meus pés, depois de um certo tempo de festas e ron-rons deitado na minha barriga. E isto foi depois de lhe ensinar que gatos não são bem gente, porque os primeiros dias queria dormir ao meu lado, com a cabeça na almofada e tudo.

Era cómico, mais brincalhão que o Ludwig, mas miava mais. Às vezes os miados dele pareciam sons humanos – sobretudo se levava um raspanete e o fechava longe de mim de castigo. É irreproduzível na escrita, mas era mesmo incrível. Parecia uma criança a choramingar, como quem diz “eu não fiz por mal, eu sou pequenino...”.

Este, perdi-o com o divórcio, cerca de um ano depois, uma vingançazinha mesquinha. Soube que o desgraçado do animal sentiu imenso a minha falta, caiu-lhe o pelo quase todo com uma coisa nervosa. Mas sei que recuperou. Eu é que ainda hoje tenho saudades dele.

Poeta é poeta





O mundo é grande e cabe
nesta janela sobre o mar.
O mar é grande e cabe
na cama e no colchão de amar.
O amor é grande e cabe
no breve espaço de beijar.

De Carlos Drummond de Andrade

Balelas Astrológicas?



Leitura de mim num site qualquer de astrologia:

For Princesa, relating is like breathing--not that it's as easy, but that it's just as necessary. In fact, she needs healthy and ongoing heart-ties with several close friends, as well as a primary relationship. Princesa wants to be fully and gracefully partnered, with fairness, courtesy, reciprocity and balance, as well as romance. She has a world of attention to offer in return. Shared appreciation of the arts and other aesthetic experiences are great pluses here. So is a firm decision by both partners that Princesa's needs are just as important as her partner's needs--not more so and not less so. Therefore, Princesa would do well to learn some conflict resolution skills, and not settle for merely the appearance of the harmony that she so cherishes and is quite capable of establishing.”

OK. Não é assim para todos? Quem é que pode viver sem amigos, sem ninguém no coração? Quem é que não procura uma relação equilibrada e tudo o mais que aqui se lê? Quem é que acha que as necessidades de um devem ser mais importantes do que as do outro? Quem é que não procura uma vida harmoniosa???

Pronto, está bem... A primeira e a última frases dão-me que pensar... Sobretudo a última, porque eu já há muito que não tolero o status quo apenas a bem da aparente harmonia, mas quando chego à conclusão de que não tolero mais, geralmente parto a loiça toda, e é-me mesmo difícil gerir o conflito. Fujo a sete pés, prefiro ignorar e deixar tudo para trás.

E eu que não quero acreditar nestas coisas esotéricas...

Becos



Não consigo escrever. Todos os caminhos que percorro são becos sem saída.
Sem saída de mim.

Por fim



Sobrevivo. Amachucada, com uns nós por desatar, umas tristezas na alma e mais uns milímetros de carapaça que, espero, me proteja melhor no futuro. Podia escrever um texto só de chavões sobre tempo e esperança. Nao tenho nenhum dos dois. Podia escrever um texto sobre o desejo de voltar a acreditar no amor. Mas não tenho nenhum. Podia escrever um texto sobre como vale sempre a pena tentar, mas não acredito. Podia fazer um texto sobre como é sempre bom dar de nós, mas não é. Podia fazer um texto para fazer os outros sorrirem, mas não tenho sorrisos para dar.

Nesta curta viagem fui passageira renitente, depois fui passageira interessada e mais tarde rendida, conquistada. Fiei-me nos anúncios escritos em vários placards e confiei que ía na direcção certa, em direcção ao destino onde queria chegar. Mas afinal, fico-me por um apeadeiro no meio do nada, quando percebo que não vou na direcção certa, ou que comprei o bilhete errado. E fico ainda mais longe do meu destino almejado. Fico de novo no charco das desilusões, das demasiado sucessivas repetições, onde afundo de cada vez um pouco mais de fé, um pouco mais de esperança, um pouco mais de amor. Até não ter mais nada, nem mesmo a ilusão de que qualquer maré me trará de volta o que aqui deixo. Até não ter mais nada, se não a memória de ser enganada, usada, desrespeitada. Salto fora num inóspito apeadeiro, porque assim não podia continuar a viagem. Mas sobrevivo.

Natal



Escrevo sobre o Natal, por causa do desafio da Fábrica de Letras. Mas não inscrevo o meu post, porque eu não gosto do Natal de 25 de Dezembro. O Natal passou a ser sinónimo de tudo menos do seu espírito original. Para lá das festividades religiosas, que já poucos vivem a sério, devia ser tempo de paz, de reconciliação, de comunhão – dar e receber, num voto de perpetuar esses bons sentimentos em acções ao longo do ano, ao longo da vida.

Há quem ande com um sorriso parvo na cara, só porque é Natal. Como se a aproximação do dia 25 de Dezembro, patenteada pelas montras e iluminárias da cidade (e desses infernais micro cosmos chamados de centros comerciais) lhes desse autorização para sorrir, e fingir por uns quantos dias que são felizes e contentes. Como se isso apenas justificasse fazer aquele telefonema, ou vá enviar aquela SMS, que cartões à séria quase ninguém envia, aos amigos e familiares com quem não se fala o resto do ano, porque nem se pensa neles.

Oferecem-se “lembranças”, porque é da praxe, e não porque apetece dar. E escolhem-se os presentes seguindo os dítames da febre consumista alimentada pelo marketing asqueroso da época (que cada vez começa mais cedo), e até por exibicionismo. Ou com requintes de malvadez, ou como forma de redenção dos “pecados” do ano todo.

Continua a falar-se na festa da família, mas quais são hoje as famílias que são, de facto, “família”? Muitas só se vêm no Natal, e não porque lhes apetece especialmente, simplesmente porque tem de ser. É assim como os casamentos, baptizados e funerais: é uma chatice, mas é um dever, e à excepção dos funerais, sempre se come bem.

Para mim, é apenas uma farsa montada para fazer dinheiro a uns poucos, esvaziando os bolsos da grande maioria. Quem eu quero perto, amigos e familiares, eu mantenho perto o ano inteiro. E prefiro mil vezes um telefonema numa altura improvável do ano de alguém que, simplesmente, pensou em mim, do que as parvoíces das SMS que circulam por aí, enviadas em série para todos os contactos da agenda telefónica. Se durante o ano, noutro dia qualquer, me apetecer dar um presente a alguém, é provável ouvir “mas é Natal?!”. Pois eu gosto de dar quando me apetece dar, e não quando é suposto porque é Natal. E por muito que goste de embrulhos bonitos, gosto muito mais de receber pequenos presentes de real lembrança ao longo do ano, do que um enorme embrulho de uma coisa qualquer só porque é dia 25 de Dezembro.

Revolta-me o consumismo da época e a hipocrisia. Não suporto a música natalícia. Detesto a correria das compras de última hora e das várias visitas, jantares e almoços, a marcar o ponto com as várias “famílias”. Detesto receber presentes que sei que não foram escolhidos “por mim”, e destesto, sobretudo, que no dia seguinte tudo volte ao “normal”, restando apenas aquele ar deprimente de fim de festa, com inevitáveis rastos de sujidade e desordem por limpar e arrumar.

Eu faço os meus pequenos Natais ao longo do ano, com aqueles que considero “família”, às vezes um de cada vez. No dia 25 de Dezembro, faço greve, e entrego-me à saudade daqueles poucos especiais com quem, em cada dia do ano, já não posso fazer os meus Natais.

Faço excepções dando presentes a alguns, mas escolho invariavelmente coisas da Unicef, e faço a excepção de sorrir para o meu filho, que na sua inocência infantil, ainda vive este dia com um brilho de fascínio nos olhos à vista dos presentes coloridos, e que é feliz com cada coisa que descobre dentro dos embrulhos, abertos com dedos lambuzados de açúcar e canela. Eu já nem me lembro do sabor desses dedos melados e muito menos da inocência e da alegria do momento. Nesta altura, lembro-me sempre mais de que quase todos esquecemos que há muito quem não possa ter Natal, em dia nenhum das suas vidas.

Brisa do mar





Confidente do meu coração
Me sinto capaz de uma nova ilusão
Que também passará,
Como ondas na beira de um cais
Juras, Promessas, Canções
Mas por onde andarás
Pra ser feliz não há uma lei
Não há, porém, sempre é bom
Viver a vida atento ao que diz
No fundo do peito o seu coração
E saber entender
Os segredos que ele ensinar
Mensagens subtis
Como a brisa do mar.


De Chico Buarque

Ultimatum


Muito bem. Assumi o risco, abri-te a porta. Tu foste entrando. Devagar, fui-te deixando puxar as pontas do meu emaranhado próprio e único, talvez um pouco assustador, eu sei. Não tiveste medo e disse-te: Toma. Dou-te. Está tudo aí. Grandezas e miudezas, grandiosidades e pequenezas, bons e maus, claros e escuros, sopros e ventanias, sussurros e gritos, certezas e dúvidas, alegrias e angústias. Mas espera... tens de puxar os fios todos. É que enredada no emaranhado por desfazer eu sei viver. Solta dele, um dia, talvez seja mais feliz. Mas a meio não. Se só puxas uns quantos fios, conforme o que te agrada ou te convem, eu puxo de volta. E sabes?... Pôr-te os fios todos na mão, até os que me custam mais, que me prendem mais, é acto de fé, e de coragem. É despir-me. É dar-me. Sim eu sei... É o tudo ou nada. É corpo “e” alma que te dou. É um dar que não me faz sentido quantificar. Não é muito nem pouco. É dar, simplesmente.

Toma. Dou-te. Aqui está. Sou eu. Toda de mim. Vê bem agora se me queres assim, toda, ou larga os fios que te sabe bem puxar. Fazes-me mal assim. Tenho frio.

Insónia



Umas horas perdida entre a vontade do descanso e o desassossego. Sei que quando me foge o sono, é porque ando a fugir. Mesmo sem eu querer, nessas horas passo na minha cabeça o filme dos acontecimentos em que procuro sentidos. Às vezes segundos. Segundos sentidos. Como se ao recordar revivesse e fosse mais tranquila essa segunda ou terceira, ou quarta vez.

Parte-se em cada missão na vida, desejavelmente, ciente dos riscos, e dos obstáculos ou dificuldades. Escolhe-se e, portanto, aceita-se o desafio. Claro que, após sucessivas desilusões ou provas falhadas, se parte com cada vez maiores cautelas. Mas é só à partida, como um caminho exploratório. Depois vai-se andando, e vai-se ganhando equilíbrio e momentum, e chega a um ponto em que não dá para voltar atrás. É nesse momento que é preciso sentir confiança e tranquilidade.

Começa-se por tentar deixar tudo fluir. Dar tempo ao tempo, e todos os demais chavões por essa linha. Mas o certo é que, por mais que se vão encaixando certas coisas em parâmetros de “normalidade”, seja lá o que isso fôr, esse exercício em si é prova de que essas coisas nos incomodam. Pequeninas pedras, pequenos tropeções. Então, se se quer seguir o caminho, a sério, com empenho, o que é que se faz? Tenta-se tirar as pedras do caminho, recorrendo à sinceridade e frontalidade de as apontar e à cooperação para arranjar formas de as remover.

Num relacionamento, faz-se com conversa franca. Tenta-se, pelo menos. Mas é o diabo quando se fica com a sensação que, de alma aberta, palavras sinceras e sentimentos despidos, se falou num código que não é comum. Parece que não, no momento, pelas respostas, argumentos, tentativas de solução da engenharia de remoção das pedras. E depois... uma palavra ou um gesto e afinal percebe-se que as pedras que nos incomodam continuam lá.

Já é demais sabido que homens e mulheres falam línguas diferentes. E vivem os relacionamentos com prioridades em planos diferentes. Mas quando o que damos de nós em sinceridade e frontalidade é ignorado, ou não compreendido, quando se sente que as atitudes e comportamentos não acompanham as palavras que ouvimos, e se pressente que o esforço de conciliação de vontades não é reciprocado, algo vai mal, algo vai muito mal no país do pai natal.

Das coisas simples que me fazem sentir bem # 4



Estrear qualquer coisa.
Sejam uns sapatos, uma peça de roupa, um acessório, tanto faz. Tem é de ser novinho, novinho. Mas se é lingerie, e tem de ser uma coisa sexy, ainda melhor - é aquela sensação de “tenho um segredo”... Gasto um dinheirão nestas pequenas coisas, mas tem sido sempre bem empregue. E quando se recebe no email assim uma ofertazinha de 20% de desconto...
Como é que uma mulher pode resistir?...

Ordem



Tem que se começar por algum lado, e resistir à tentação de brincar demais com os novelos, sob risco de se ficar enredado. Curioso que a vida às vezes nos surpreende, dando respostas inesperadas a perguntas que não chegamos a verbalizar. E pega-se nessas pontas, e vai-se puxando.

Dangerous Lines



“Os olhos cansados, ausentes, fixavam-se no infinito. Além, muito além, da linha visível do horizonte. Era também uma linha que flutuava naquele espírito, desassossegadamente, repelindo o sono. Era a linha que não sabia se queria cruzar.”

Há um limite para tudo, todos temos os nossos próprios limites. Limitamo-nos ou definimo-nos? Essas fronteiras que fixamos, seja por que razão fôr, são mais relevantes pelo que nos impedem de fazer ou, pelo contrário, pelo que nos fazem ser? São talvez limitativas, se são linhas que impomos inflexíveis. Mas quando são escolhas, serão então mais definidoras? Linhas que apenas nos desenham?

E onde arrumamos os princípios? Diria que são uma dessas fronteiras essenciais. E podem ser tão limitativos quanto definidores. São talvez, em mim, das fronteiras menos flexíveis, mais guardadas e defendidas. São, possivelmente, as linhas que mais batalhei para definir e que, por isso mesmo, mais me definem. E são também as linhas que mais me custa cruzar, ou redefinir.

Se são hoje as mesmas as fronteiras de mim? Não... nem por sombras. Subtilmente em geral, às vezes num repente de uma clarividência chocante, essas linhas movem-se, ajustam-se, podem esbater-se suavemente ou, pelo contrário, adensar-se em sulcos profundos.

“Ao saber-se hesitante na escolha, perguntava-se repetidamente porquê. Via as razões de ser, do seu ser, na escolha de não passar para o lado de lá. Cheirava a perigo. Mas o perigo também atrai. E via o que não queria perder do outro lado. Porquê?... Via nessa interrogação assim, também, que as razões do seu medo eram as razões da sua vontade. E via negar-se um querer, para não se perder. Porquê?... Porquê?...”

Nos porquês que se levantam sobre essas fronteiras, esquecemo-nos muitas vezes de uma coisa importante. É que esses porquês são, em si, andar perigosamente, num equilíbrio periclitante, sobre a linha da própria fronteira.

Será?...



Grande Vinicius de Moraes... Cada coisa que escreveu, com mais alegria ou tristeza, com mais humor ou mais seriedade, é sempre uma perfeita maravilha, e melhora com voz. Por acaso esta versão consta do CD que comprei acidentalmente e com que o descobri. Uma descoberta fatídica, mas ainda assim, uma grande descoberta.

Mas agora, àparte o humor, e numa perspectiva feminina, leio e oiço cada frase de uma forma diferente. E fico a pensar... será?... Abaixo o texto original, que ele não segue exactamente na versão declamada do vídeo.

"Para viver um grande amor, preciso é muita concentração e muito siso, muita seriedade e pouco riso — para viver um grande amor.
Para viver um grande amor, mister é ser um homem de uma só mulher; pois ser de muitas, poxa! é de colher... — não tem nenhum valor.
Para viver um grande amor, primeiro é preciso sagrar-se cavalheiro e ser de sua dama por inteiro — seja lá como for. Há que fazer do corpo uma morada onde clausure-se a mulher amada e postar-se de fora com uma espada — para viver um grande amor.

Para viver um grande amor, vos digo, é preciso atenção como o "velho amigo", que porque é só vos quer sempre consigo para iludir o grande amor. É preciso muitíssimo cuidado com quem quer que não esteja apaixonado, pois quem não está, está sempre preparado pra chatear o grande amor.
Para viver um amor, na realidade, há que compenetrar-se da verdade de que não existe amor sem fidelidade — para viver um grande amor. Pois quem trai seu amor por vanidade é um desconhecedor da liberdade, dessa imensa, indizível liberdade que traz um só amor.
Para viver um grande amor, il faut além de fiel, ser bem conhecedor de arte culinária e de judô — para viver um grande amor.

Para viver um grande amor perfeito, não basta ser apenas bom sujeito; é preciso também ter muito peito — peito de remador. É preciso olhar sempre a bem-amada como a sua primeira namorada e sua viúva também, amortalhada no seu finado amor.
É muito necessário ter em vista um crédito de rosas no florista — muito mais, muito mais que na modista! — para aprazer ao grande amor. Pois do que o grande amor quer saber mesmo, é de amor, é de amor, de amor a esmo; depois, um tutuzinho com torresmo conta ponto a favor...
Conta ponto saber fazer coisinhas: ovos mexidos, camarões, sopinhas, molhos, strogonoffs — comidinhas para depois do amor. E o que há de melhor que ir pra cozinha e preparar com amor uma galinha com uma rica e gostosa farofinha, para o seu grande amor?

Para viver um grande amor é muito, muito importante viver sempre junto e até ser, se possível, um só defunto — pra não morrer de dor. É preciso um cuidado permanente não só com o corpo mas também com a mente, pois qualquer "baixo" seu, a amada sente — e esfria um pouco o amor. Há que ser bem cortês sem cortesia; doce e conciliador sem covardia; saber ganhar dinheiro com poesia — para viver um grande amor.
É preciso saber tomar uísque (com o mau bebedor nunca se arrisque!) e ser impermeável ao diz-que-diz-que — que não quer nada com o amor.
Mas tudo isso não adianta nada, se nesta selva oscura e desvairada não se souber achar a bem-amada — para viver um grande amor."

Mais do Tempo



E pronto, é isso. Ainda não sei se é Príncipe, mas é, definitivamente, uma espécie de sapo diferente. E assim são, sem sombra de dúvidas, tempos diferentes, e o tempo a correr de forma diferente.

Isso continua a ser a minha angústia, a minha dúvida, porque as vidas que levamos nos obrigam a uma certa distância. Por causa da minha “vertente mãe”, com disponibilidade mais reduzida e horários mais limitados em semanas alternadas. E por ele, os compromissos profissionais, viagens pré-marcadas, etc. Azar, é que têm calhado muitas dessas coisas nos dias da minha “vertente mulher”.

Ou seja, a gestão dos nossos dois tempos traduziu-se em poucas horas partilhadas presencialmente, e quase todas concentradas na mesma semana. Ele aponta que houve coincidências azaradas. Promete-me que não costuma ter a vida assim tão ocupada, e reiteira que se vai “organizar melhor”. Tenta compensar com SMS’s e telefonemas, espalhados ao longo do dia, e ainda não falhou um bom dia. Almoçamos sempre que possível e até já virou a vida do avesso por uns minutos só para me dar um abraço. Há que dar-lhe crédito, ainda por cima porque eu não cobro.

Mas isto para mim é tortuoso. É assim um limbo. Mas afinal eu tenho namorado, ou não tenho? Partilha? Partilho? Como é isso de ter um namorado e estar sozinha?... É quase um namoro à distância.

É difícil, e demasiado perigoso, sobretudo numa fase tão inicial em que se quer tempo e espaço ocupados pelo outro, progressivamente, mas a ganhar balanço e não com interrupções abruptas que nos param a meio o mergulhar da descoberta e da entrega. É que nos espaços vazios de entretanto, crescem outras coisas. Dizia-me alguém que tudo seria melhor se o incluísse mais na minha vida. É verdade, mas isso pressupõe apresentá-lo ao meu filho, algo que acho ainda muito cedo para equacionar. E depois, isso é um caminho que também é preciso que ele queira fazer. E na realidade, não consigo perceber isso com SMS’s, telefonemas e Messenger. Há coisas que só serão claras com o passar do tempo e, sobretudo, com o passar do tempo juntos.

O futuro é sempre uma incógnita. A vida está cheia de surpresas, e eu que o diga, que tenho tido uma catadupa delas nos últimos tempos. Mas é complicado viver quase permanentemente na dúvida, e viver quase sempre num futuro projectado que se torna presente esporadicamente, e que voa demasiado depressa.

Os Poetas


Solitários pilares dos céus pesados,
Poetas nus em sangue, ó destroçados
Anunciadores do mundo
Que a presença das coisas devastou.
Gesto de forma em forma vagabundo
Que nunca num destino se acalmou


Sophia de Mello Breyner Andresen

Wake-Up Calls


"Daqui fala o tempo, este tempo que corre em 24 horas por dia e em sete dias por semana. Daqui fala o tempo que corre por fora, e por onde corres cada dia. Daqui fala o tempo que não se compadece com a tua lista de tarefas. Daqui fala o tempo em que és de cada vez uma das facetas que alternas.

Desengana-te se pensas que estico, que paro, ou que corro em duas pistas em simultâneo. Não penses que o tempo que te corre por dentro em momentos escapa do tempo que sou em segundos no relógio da vida. E não te iludas pensando que me agarras e me domas."

Acordo neste sobressalto. E agora?... Realmente como é que eu faço isto? Como é que integro mais um tempo de dentro, mais um tempo de presença, mais umas tarefas na lista, mais uma vontade, mais uma faceta de mim em alternância?

E depois liga a voz que me diz com calma que não oiça o tempo carrasco. Que me diz que não é uma “wake-up call”. Que me diz que acorde antes tranquila para deixar correr o tempo por aí, como ele quiser, que não importa. Que me diz que me deixe levar, pelos dias, pelas horas, até ser hora, e que por aí nos vamos encontrando, em novos tempos que vamos criando, e moldando os dias para que vá sendo também o nosso tempo entretanto.

Acordo a pensar que está a acontecer, independentemente do jogo do tempo, do que conto e do que vem de dentro. A vontade tem de comandar, e nesta nova faceta contarão os segundos de cada esperada presença. Até lá as tarefas realizam-se, a vida acontece, as outras facetas vivem o seu tempo e, devagarinho, deixo-me apenas “ser”. E tento aprender a integrar-me num todo, também com o tempo. É mais fácil bebendo da tranquila fé que me chega do outro lado da linha.

Metamorfose


Disserto aqui sobre o que fazer ao “(des)” do meu nick, que urge fazer desaparecer. Não só porque estou hoje onde não estava há um ano atrás, mas também, como me alerta um amigo, porque não poderei estar onde quero daqui a outro ano enquanto ali estiver o desafio da negatividade. No entanto, não quero simplesmente retirar o “(des)”, pois não gostava de ter de o voltar a instalar, e não sei o que me reserva a vida. O encantamento comporta também essa turtuosa ameaça de poder ser passageiro.

Passaram-me diversas alternativas pela cabeça, discuti algumas (obrigada mana, pela paciência!), e até disparatei com alguém ao ponto de chegar a pensar em combustíveis e inflamáveis, pelo que passaria a ser qualquer coisa como “Princesa Sem Chumbo 73”.

Princesa fica, que quero mesmo ser Princesa, e sou Princesa de muitas formas, e quero ser tratada como tal um dia pelo Príncipe que hei de encontrar (se não encontrei ainda...). Não quero usar o meu nome próprio, por isso também não quero usar outro nome próprio, que me sentiria enganadora. Assim, “Esmeralda”, a minha pedra preciosa favorita, ou “Clara”, em alusão a clareza, claridade e luz, não servem. Diz que tem de ser alguma coisa doce, que me reflicta de alguma forma, e lá percorremos as despensas e livros de receitas à procura de inspiração. Surge a baunilha, côr da pele em gelado, surge o praliné, muito doce e dourado, surge o merengue, branco, doce e leve, e quase me tento por “Princesa Merengada”.

Divagando também por outros caminhos, e em alusão a uma “private joke”, também me tentei com “Princesa Vesúvio”. Depois desisti, que ía ter muito que explicar... O que quero é ser Princesa que encante e que se encante, sempre e para sempre, mesmo que seja aos bocadinhos de cada vez. E acabo por quase resolver que passo simplesmente a “Princesa dos Encantos”. Mudava uma só letrinha e desapareciam os parêntises, mas fazia toda a diferença... Só que gostava, se possível, que tivesse a ver com destilar. Então, surge “Moscatel”, um doce destilado, dourado e enebriante, que ainda por cima é de Setúbal (e porque é que isso é relevante, agora não interessa nada). Quase, quase desisto, balanço com a hipótese dos encantos, mas depois decido-me e sou a partir de hoje, também como um acto de fé, a “Princesa Moscatel”.

PS: Depois descobri que é um "licoroso" e não exactamente um "destilado", mas isso agora também já não interessa nada!

É os olhos



Eu já aqui disse que gosto de gatos? E que há gatos que jogam bem? Pois... De vez em quando acerto em palavras e metáforas que nem imagino como vão fazer sentido tempos depois. Chamei-lhe gato, e andei a fazer de pantera, enquanto alguém me perguntava se ele me atraía e eu dizia “tem qualquer coisa, não sei bem o quê – talvez o olhar”. E é. Já percebi que é. São os olhos. De gato. Aquela côr meio indefinida entre avelã e verde azeitona, e o brilho, e... e... a intensidade? Custa-me, o que é raro, mas lá chego à palavra certa: magnetismo.

E depois... Eu já aqui disse que gosto de dançar? Eu já aqui disse que gosto de danças de par? Pois... E na dança me perco. É que o gato também dança, e em ritmos quentes. E eu já aqui disse como gosto de abraços? Aaah... pois é... Caibo tão bem dentro daquele abraço.

Mas mais que tudo, é os olhos. Como neles me vejo tão límpida e o que vejo brilhar neles. No segundo do reencontro, no momento da despedida. Na procura de mim e no fim de um beijo ou de um abraço. No frente a frente intencional de uma conversa e em silêncio, pressentidos e surpreendidos como que por magia. Na doçura de um sorriso terno e na quase malícia do desejo. Ao acordar para um olhar assim, sou eu que me sinto gata, que só quer aninhar-se naquele abraço e ali ficar. Sem tempo. Aqueles olhos prendem-me... Mas não gosto de estar presa, sei que acabo a querer fugir. E quase me sinto uma gata assustada, mas quero encontrar nos mesmos olhos o fim do medo.

Às vezes...



Mais do que as palavras que se ouvem, conta a intenção que as dita. Nem sempre é fácil descortiná-la, mas às vezes trespassa-nos com uma imensa claridade. Podemos preferir negar-lhe a visão, seja porque nos magoa, seja porque não é o que queríamos ver ou não é o que pensamos que íamos ver. Mas às vezes... também é capaz de nos estampar um sorriso e elevar na onda dos sentimentos próprios de uma surpresa feliz.

Mais do que um “gosto de ti”, que qualquer um pode dizer ou escrever sem verdade, falam palavras que se traduzem em “vejo-te e sinto-te, entendo-te”. Mais do que um ramo de rosas comprado à pressa na esquina, falam gestos que nos mostram que alguém nos leva em pensamentos pelos seus dias. Mais do que uma qualquer desculpa por alguma falha, vale a preocupação de que entendamos que não há intenção de falhar, e um pedido de desculpas preocupado que nos surpreende, porque até achamos que não houve falha nenhuma. Mais do que um “tenho saudades”, fala a prova de alguém que muda o impossível, e vai chegar ao fim do dia exausto, para ganhar o tempo de nos ver e poder dar um abraço. Com um sorriso tão genuino e um olhar tão ternurento, que chega a doer reconhecer que não se esperava, que se desenhava essa pessoa como algo muito menor, à imagem e semelhança dos pequenos seres que popularam o passado.

Sinto-me muito menor que ele nestas tremendas generosidades. Confortavelmente instalada atrás dos muros que ainda imponho, no egoísmo do meu castelo só para mim, e ele a bater suavemente à porta, mas determinado e a todas as horas do dia, feliz com a possibilidade de poder provar que é digno de entrar, ciente das defesas e das reservas, mas confiante de que as ultrapassa. Já entrou, mas ainda não sabe bem o quanto, que ainda tenho medo de lhe dizer que tem a chave. Mas vou tendo vontade. Sobretudo quando me diz que, aconteça o que acontecer, sabe que não se vai arrepender. E não é ingenuidade, que já não tem idade para isso. É... confiança, ou esperança, ou fé. Que parece ter que chegue para os dois. Às vezes... que coisa... até dá vontade de acreditar também.

Porque sou mesmo retorcida



Escrevia-me a minha mãe adoptada há uns tempos atrás: "Bem.... é sempre assim! Snif, snif... é como ir às compras contigo. Pedes opinião e eu dou e tu fazes o oposto! És uma rapariga de fortes convicções! Está dito!"

E eu respondi: "Coitadinha... :)... Tenho tanta peninha... Deve ser por isso que ninguém quer ir às compras comigo... Mas é que eu preciso desse desafio de opinião, para testar até que ponto estou realmente convicta, percebe?? É um bocado perverso, eu sei, mas eu sou assim!"

E sou mesmo... O blog também tem muitas vezes funcionado assim...

O amor não existe



A propósito do Facebook, alguém me disse que, supostamente, os tais 6 elos de ligação da famosa teoria do “Six Degrees of Separation” equivalem à “distância” entre um Europeu e algum esquimó. Pensei então que, se calhar, era no Polo Norte que me esperava o Amor, sentadinho num igloo qualquer, já a desintegrar-se de tão enregelado.

Até há pouco tempo, pensei que fosse suficientemente louquinha para, se soubesse que o amor que queria viver estava no Alasca, apesar de detestar o frio e mesmo de nariz gelado, ir ao encontro do destino nesse igloo. Mas hoje sei que não. Hoje percebi que não sou assim tão louca – percebi, fria e tristemente, que já não acredito no amor. Acho que a minha insatisfação crónica, e o meu “azar” crónico com os homens, são produto um do outro, resultam de procurar o que não existe, e assim se traduziram em experiências que me tornaram céptica. Não estou disposta a correr a distância, ou o risco, para procurar uma coisa que agora acho que é uma quimera. De uma forma irónica, tornei-me quase no mesmo dos que sempre condenei, e hoje só sou capaz de olhar para um possível relacionamento com a frieza de quem aceita incontestável o facto de que o amor não existe mesmo – o que existe é tesão, a que chamamos paixão, mas que também dura muito pouco – dizem que 7 meses em média. E é incontestável que todos passam, tal como nós passamos pelos outros, e até o “amor apaixonado”, que dizem que se pode seguir à paixão e será, talvez, o mais próximo do idealizado “grande amor”, dura em média 3 anos. Não existe “para sempre” em nenhuma história, e muito menos o “felizes para sempre”. E há certas coisas que não se justificam se não forem no pressuposto da eternidade.

Essa promessa eu não posso fazer a ninguém, nem aceito que ma façam, simplesmente porque não acredito. Por ora, é apenas isso que ainda me distingue do que não queria ser – mesmo chocada por me ouvir e chocando quem me ouve, sou honesta, claríssima, transparente, não prometo nem quero promessas, não embelezo nada dando nomes falsos às coisas, e só vou a jogo nessas condições. E mesmo assim, só se for por aqui, porque não vou ao Alasca, ou à Austrália, por isso – é que não se justifica mesmo.

E o certo é que, munida desta nova convicção, se torna tudo muito mais fácil, muito mais simples e descomplexado. E acho que é só porque cheguei a esta conclusão que estou a dar hipótese a que alguém entre na minha vida. Depois do choque de parte a parte, a realidade é que uma situação clara, sem ilusórias expectativas, acaba por ser muito mais confortável para que se expresse numa relação a dois aquilo que nos é mesmo intrínseco. Talvez seja antes este o caminho, talvez permita alicerçar as coisas até com maior solidez. Mas seja como for, e dure o que durar, é autêntico desde o princípio. Pode até acabar com lágrimas de desgosto e saudade, mas não acabará com culpas nem com recriminações, e deixará memórias felizes de momentos bons vividos intensamente e descomplexadamente. Se é amor? Certamente que agora não. Será um dia esse tal “amor apaixonado”? Quem sabe? E por quanto tempo? Uma incógnita. Mas não me importa. O que é agora, é bom. E assim se mantenha (mesmo que se só esses tais 7 meses).

Jogo de Sedução



Chegou de mansinho, de surpresa e em surdina. Não tinha nada de especial a não ser uns olhos penetrantes, luminosos e um movimento de aproximação felino. Ía e vinha, e a cada distância lá estava o olhar, ou a palavra, sempre certeiro, desafiador, inegável. Depois a aproximação sempre inesperada, de uma direcção diferente da de onde tinha vindo a última abordagem. Na presença, dissimuladamente, um toque ao de leve, uma palavra sussurada. Um sorriso de caçador que já marcou a presa, que sabe o que quer e que sabe que consegue. A rondar, a estudar, mais próximo a cada aproximação, a exibir o porte e a fixar os olhos na exigência de um olhar de volta. E conversa, muita e boa conversa.

Mas não sabia ele que o jogo não é sempre esse. Que o caçador vira presa no instante em que quem era presa percebe que tem o poder de negar com inteligência o que lhe querem caçar. Vira a mesa nesse instante e aqueles olhos agora não brilham de certeza de conquista. Brilham de desejo, e de súplica, por mais, por muito mais do que aquilo que a suposta presa vai dando. E a presa caça o caçador só quando lhe apetecer – e é só mais um bocadinho. Entretanto, também se diverte um bocado. Vai e vem num bailado mais felino do que o do gato, porque essa presa tem alma de pantera, já foi caçada noutra vida, e não quer ser presa outra vez. Agora sabe pôr as unhas de fora, afiar o olhar e mover-se com muito mais subtileza, enquanto o gato se esforça desesperadamente por merecer ser caçado. Pobre gatinho...

Para panteras assim, “it’s not winning or loosing - it’s how you play the game…”. Mas alguns gatos jogam bem.

Testes



Como tenho uma qualquer veia científica, provavelmente herdada do meu avô paterno que era investigador (engenheiro de origem), decidi pensar numa série de testes para alminha que resolveu engraçar-se por mim.

Confesso que, ao pensar nisto a princípio, dei por mim a sorrir maliciosamente e a dizer-me “ele esta nunca vai passar!”... Depois achei que é, e será sempre, demasiado cedo na minha vida para me transformar numa daquelas horríveis professoras velhas, chatas e azedas que tinha no liceu, e que faziam testes para lixar o pessoal. Enfim... a bem da justiça e das oportunidades, e essa treta toda, pus umas coisas mais rebuscadas de lado.

O danado tem-se safado. Por exemplo, já aguentou estoicamente quase 1 hora e meia de messenger em conversa séria, até dá boas respostas, e encaixou todas as minhas fugas às insinuações, ou melhor, declarações mais ousadas. Dessa vez, só nos últimos 10 minutos é que assumiu uma clara mudança de assunto, e pronto, até teve a sua graça. Noutra ocasião, também já resistiu à conversa da astrologia e saiu-se muito bem (esta adoro, é um bocadinho perversa – porque ficou sem saber até ao fim se eu era ou não uma maluquinha esotérica, que não sou nem por sombras, mas nem por isso se demoveu...). E em conversa mais aquecida, nunca passa o risco, fica lá sempre muito, muito perto, cada vez mais perto, mas não passa. E também reagiu muito bem a um travão que pus nesse registo, e a uma certa gestão de expectativas que fiz em relação ao nosso encontro. Inspirou-me confiança.

De repente fiquei a pensar se não fazemos sempre isto mais ou menos inconscientemente. Estes pequenos “testes”, geralmente perguntas aparentemente inofensivas, pequenas curiosidades, ou afirmações potencialmente chocantes, fazem-me lembrar um cross examining numa sala de tribunal. O único senão é que ninguém jura nada sobre coisa nenhuma, e não há polígrafo para confirmar a autenticidade das respostas. É uma questão de intuição e montagem, aos poucos, do puzzle do outro com aquilo que se vai sabendo, sendo que só ao fim de algum tempo é que se percebe o que se está a construir, e se há ou não peças que não encaixam em lado nenhum, e onde estão as peças em falta. Este puzzle tem-se montado num instante e já dá para perceber muita coisa, mas ainda há demasiadas peças soltas.

Não sei que puzzle é que ele construiu de mim e espanta-me, confesso, este entusiasmo tão galopante. Já percebi que ele apanhou muita coisa, assustadoramente mais do que pensei ter dado, mas a última foi chamar-me “cocktail explosivo”, num sentido muito positivo, e na sequência de uma conversa sobre razão vs emoção... Nem o facto de eu ser o montinho de paradoxos que aqui me conhecem parece que o afecta, antes pelo contrário. Imagino que também me deve ter submetido aos seus próprios testes, e a julgar pela “animação”, passei a todos... With flying colours, parece.

Mas o grande teste só mesmo ao vivo e a côres. Espero que sem tremores... Esse vai ser o primeiro polígrafo. Se passar, o veredicto do jurí pode levar menos tempo a sair.

Engatar ou cortejar?



As mulheres passam a vida a queixar-se que os homens, hoje em dia, são uns atadinhos, que não tomam iniciativas, que não sabem o que querem ou que têm medo de se assumir na conquista “activa” de uma mulher. Partilho dessa opinião, e também me tenho queixado do mesmo. Por outro lado, queixamo-nos dos tais homens-melga, que também não gostamos de insistências idiotas, sobretudo quando não estamos mesmo interessadas e eles não há maneira de perceberem.

E agora cai-me no colo um homem que sabe claramente o que quer, que assume frontalmente uma postura de conquista, e me faz um cerco cerrado. Ele é Face Book, ele é Messenger - e longas conversas, números de telefone trocados – e usados, e um convite para jantar com direito a dança a seguir, “até nascer o sol”.

E o que é que eu acho disto?... Acho piada. Gostei dele, conversamos imenso no dia em que nos conhecemos, através de uma amizade comum. Temos afinidades diversas, é certo, somos ambos pais divorciados e por isso entendemos bem essa dimensão especial das nossas vidas, e ele não se “assustou” com a minha vida complicada. É um homem maduro, inteligente, gosto da conversa dele e do sentido de humor. Mas...

Isto é rápido. Muito rápido! Jantar a dois assim sem mais nem menos assusta-me um bocado. Resolvi aceitar o convite, mas felizmente, por um acaso do destino, afinal não seremos só dois. E fiquei aliviada mas a pensar porque é que me havia de assustar com uma postura que é frontal, honesta, afinal aquilo que advogo que todos devemos ser uns com os outros. Desde que não haja leviandade na abordagem, o que é cedo para determinar, é assim que acho que devia ser. E também desde que não se torne demasiado “pavão”, que não há paciência para shows de vaidade nesta idade... mas o certo é que ainda não sei se a ideia dele é "engatar" ou "cortejar" - e são coisas muito diferentes.

Até agora nada me faz crêr que ele não seja boa pessoa (até porque as “referências” são muito positivas). Mas o certo é que me custa acreditar em pureza de motivos. É que neste novo caminho, ando sem ilusões de contos de fadas e princesas. Ando a escrever linhas novas sem poesia, e já não espero milagres. A questão é se me terei tornado demasiado céptica, ou antes absolutamente lúcida.

O sabor da dança



Numa cara de pele de chocolate preto, brilham uns olhos escuros que não se sabe onde vão buscar a luz que emanam. Brilha um maravilhoso sorriso branco, perfeito, rasgado como só os mais puros podem suportar. O corpo brilha da pele esticada sobre músculos rijos, em todos os contornos que parecem desenhados no embalo do som de uma kizomba. O corpo move-se de uma forma única, com uma segurança, uma altivez, que não é arrogância, é orgulho. Dança com leveza, num balanço incomparável porque é simplesmente a música a pulsar dentro do corpo sem resistência, a inundar a alma.

Estende-lhe a mão e convida-a para dançar. Ela hesita porque não conhece aquele ritmo e aqueles passos, não tem o balanço e a curvatura daqueles corpos escuros que observa na pista de dança, corpos opostos ao seu corpo, que é estreito e muito branco.

- Não sei dançar, desculpa.
- Não tem problema. Ninguém nasce ensinado. É muito simples. Vamos lá!

E lá foi. Lá foi ela. Ele contou os tempos do passo mais simples e disse-lhe que ouvisse a música e se deixasse levar. Ela ouviu, e sentiu, e deixou-se ir. Ao fim de duas danças já não contava passos. A música fluía também pelo seu corpo, numa cumplicidade crescente com o estranho sorridente. A atracção da noite foi aquele par de total contraste de branco e preto. Afinal também balança e se arredonda um corpo branco e esguio. Basta que deixe entrar e mandar a música, e é muito mais fácil com a ajuda de um corpo oposto que nasceu para aquele embalo. Experiência de chocolate puro, negro profundo, a envolver docemente um corpo de gelado de baunilha.

Inscrito no desafio da

Andando



Tenho para aqui um monte de linhas soltas a popular uma página desorganizada. Uma série de ideias, de pensamentos, coisas que me andam na cabeça a rodar e que ainda não consegui destilar. Apetece-me escrever, mas não sei por onde começar.

Partir e voltar tem duas chegadas e dois destinos, mas divide o tempo em três – antes da partida, na duração da viagem, e no regresso à base. Do primeiro tempo está tudo aqui, mais que escrito e destilado. Do segundo tempo, tenho as fotografias e as memórias, envoltas numa bruma estranha ao som de kizomba, e que não se encaixa na linearidade que habitualmente damos ao tempo. Parece que não fui eu que estive lá, parece quase que não foi real. E o terceiro tempo, que corre agora, ando ainda a aprender a contar, e tenho dificuldade de o apreender antes de se evaporar.Tanto o tempo em que estive lá como estes três dias desde que regressei me sabem a passado longínquo. Estranhamente, enquanto lá estive, parecia-me que o tempo não passava, e agora que voltei, acho que foge de mim como um louco, ou me empurra desvairadamente para um lugar estranho.

Ocorre-me que são novos caminhos, que não seguem os trilhos conhecidos e expectáveis dos mapas que já sabia de cor. Desembarquei do avião uma outra, por duas vezes, e a cada aterragem deparei-me com essas novas realidades. Sei que o mal destas linhas soltas aqui espalhadas, a razão porque não consigo articulá-las, é porque misturam esses três tempos, esses três eus em que me plasmei. Tenho de apagar umas quantas linhas que já não pertecem ao aqui e agora de mim e da minha vida. Quero separar umas outras para marcar a memória, e quero fazer as restantes crescer, com o passar dos dias, passando de linhas e parágrafos a textos consequentes, à medida que se define o meu novo contorno, num traço mais nítido, a cada passo em frente.

Voltei



Estou de volta, mas sinto-me de partida. Vou andando por aí e algumas linhas mais consequentes hei de escrever em breve. Levantei muita poeira nesta ida, e a aterragem da volta não foi suave. Está cá tudo na mesma, claro, nem esperava outra coisa. Mas sei que este respiro foi bom, muito bom, mesmo no inesperado que trouxe, ou talvez ainda mais por esse inesperado. E sinto-me cheia de força. Trouxe coisas novas na bagagem, algumas brutalmente esclarecedoras, mas deixei para trás umas quantas outras. Valeu a pena, valeu cada minuto e cada raio de sol, cada caminhada na areia e cada descoberta. E foi um privilégio o vislumbre de almas novas com quem me cruzei, que de uma forma tão simples, mas tão pura, me fizeram entender tanta coisa de mim e da vida. E de por onde quero ir.

Vou ali, já venho



Depois de duas vezes adiada a partida, hoje também fecho a minha mala para ir para longe uma semana. Resolvi pegar no passaporte, um monte de livros, outro de biquinis, protector solar e repelente de insectos (que repelir outras coisas é-me natural) e partir para outras paragens, mais calmas e prazenteiras, solarengas e longe, bem longe disto tudo. Vou a África, não a um dos meus destinos de sonho que são um bocado mais fora de mão, e pouco propícios para o trabalho de casa que levo, mas ainda assim África, de praias, palmeiras, tempo lento e descontraído. Preciso mesmo desse respiro para voltar então para o recomeço da minha vida em força, com as ideias arrumadas e o corpo descansado (além de bronzeado, o que me vai dar um certo gozo no regresso, já que sofro geralmente de ser a eterna “branquela”). Preciso mesmo de uma fuga destes espaços e destes tempos, para poder mergulhar em mim mais fundo e não me deixar fugir. Preciso de sacudir a poeira da minha alma que se tingiu de escuro nestes dias. Preciso de inspirar profundamente e expirar convictamente, largando o peso no ar. Preciso de ir deixar em solo infértil, onde tão cedo não vou voltar, e que não vou regar, cheiros, memórias e imagens, restos de sonhos e ilusões, sobras de amor e de ódio que agora se misturam em mim e me agoniam. Preciso de ir buscar a paz, a força, a leveza da alma e do coração limpos, leves e arejados.

Trago fotografias. Ou não. Se calhar não é um tempo para recordar.

Fechar a mala



Mesmo quando é numa despedida para uma ausência curta, custa sempre fechar-lhe a mala. Há que deixá-lo ir, largá-lo na rotina das idas e vindas que a vida lhe impôs, e sorrir de volta, seja lá como fôr. Tento pôr-lhe dentro da mala mais do que posso. Sei que a encho de coisas inúteis e coisas demais. Acaricio as roupas que escolho e dobro, na ilusão de que ele me possa sentir as mãos quando outro alguém o vestir. É uma ilusão idiota. Sei que não vou lá dentro, não vou com ele. E quando fecho a mala sinto-me fechada do lado de fora, de fora desses espaços e desses dias dele sem mim.

E sobram-me dias de mim sem ele. Dias de que preciso, em que aproveito a liberdade e o silêncio ou a agitação dos meus dias de mulher, mas dias que vivo nunca me deixando de sentir mãe em vazio. São, desta vez, dias que me impus e lhe imponho, porque são dias que agora me são vitais. Desta feita, sou eu que o fecho de fora deste bocadinho de vida que vou viver mais longe, e desta vez não sinto culpa, ou remorso. Mas sei que sentirei saudade.

Das coisas simples que me fazem sentir bem # 3




Um livro para desbravar.

Assim daqueles que às primeiras páginas já tenho pressa de acabar, mas que sei que chego ao fim com vontade de mais capítulos. Gosto muito de ler, e leio muita coisa variada, de muitos autores diferentes. Tanto gosto de uma escrita mais densa, como de uma escrita mais leve, tanto gosto de thrillers, policiais ou, de preferência, de espionagem, como de romances, e tanto leio prosa como poesia. Alguns livros leio e esqueço incólumes na prateleira, outros entranham-se em mim e deixo-os de cantos dobrados e frases sublinhadas, em locais que sei de cor na minha estante, tão marcados quanto me marcam a mim.
Agora leio “A Espuma dos Dias” de Boris Vian. Não é uma "novidade", é de 1946, mas que descoberta fabulosa, em todos os sentidos... Vou a meio e já sei que será daqueles que não vou esquecer, e que tenho a certeza que hei de querer reler.

Lá chegarei



Pacifico-me, entendendo que não quero mesmo baixar os braços. Sereno, debitando palavras que me fogem como um sorriso involuntário que se desenha nos meus lábios. Levanto a cabeça, com a convicção, talvez idiota, que já estou no caminho.

Não sei qual é o meu caminho, mas não é desistir. Começo a sentir nítidos os contornos de brumas que vagueiam por mim em sonhos. E sinto um fervilhar qualquer que me deixa na antecipação de que está a começar. O futuro, está a começar.

Equilíbrios



Há alturas em que me sinto em guerra comigo própria. Sinto que sou prisma colorido de muitas faces e muitos brilhos, e que o conjunto não é uma forma harmoniosa, mas antes um obtuso objecto que quer rolar mas tropeça nas arestas e nos vértices, nunca se fixando numa côr definida. Sinto que tenho de escolher quais as faces do prisma que se podem ver, que podem brilhar, e que há sempre umas quantas que terão de ficar ocultas, porque o objecto tem de assentar em algum dos lados.

Senti muito isto em relação à minha dicotomia mulher/mãe aqui há um ano e pouco atrás. Foi um dos meus maiores desafios dos últimos tempos, arranjar um equilíbrio para o prisma de forma a que, tanto a face da mulher como a face da mãe, pudessem brilhar e ver a luz do sol, criando no conjunto uma paleta de côres harmoniosas. E agora, por força das circunstâncias, sinto de novo esse equilíbrio perigado, lutando entre uma enorme vontade de partir pelo mundo fora e uma inegociável necessidade de caminhar com o meu filho.

Queria fazer a mala e levantar amarras, partir à aventura, recomeçar a vida toda num outro lugar, encontrar o meu lugar. Mas ele prende-me aqui e não consigo sequer articular a hipótese de partir sem ele. Isso seria enterrar no chão uma das faces mais importantes do meu prisma e sei que seria desvirtuar-me, no sentido em que seria tornar-me incompleta, seria tornar mais pobre a paleta de côres que o meu prisma produz. Sei que não seria capaz, como uma amigdalite me faz claramente recordar, ao embalá-lo no colo uma noite inteira, sofrendo a agonia de o ver sofrer, correndo com ele para o pediatra com a instintiva mas inquestionável certeza de que ele estava mesmo doente. E estava.

Nas noites sobressaltadas a seguir, noites de ausência dele que ficou com o pai, mesmo sabendo-o medicado e a melhorar, sofro a distância e sinto o prisma desiquilibrado. Como poderia ir para mais longe ainda, e por muito mais tempo do que os 4 dias ou uma semana no máximo que ele passa com o pai a cada quinze dias?...

Não posso. Mas queria. Queria ir. E esse ímpeto de movimento negado ao prisma, desiquilibra-o perigosamente, e escurece assustadoramente a luz que me atravessa.

Curiosidade



Coisa estranha a forma como alguns crescem em nós. Nunca tinha percebido como era possível. Sempre foi para mim uma coisa basicamente instintiva, e ainda mais com homens – gosto ou não gosto, simpatizo ou não simpatizo, confio ou não confio, atrai ou não atrai (e nesta vertente então, é mesmo instintivo e imediato). Depois normalmente o primeiro impacto vai-se consolidando e pode crescer, às vezes mais e às vezes menos, mas sobretudo se fôr positivo. Aí é como uma semente - se confio, confio cada vez mais, se gosto, gosto cada vez mais. Salvo, claro está, as desilusões que se tem pelo caminho. Se é negativo, normalmente acaba em simples indiferença porque me afasto diplomaticamente, detesto fazer fretes de politicamente correcto.

E no entanto, de repente dou conta de que, aos poucos, há mesmo quem ganhe espaço dentro de mim, quem se vá construindo em mim do quase nada e vá ganhando outros contornos, ganhando aos poucos a simpatia, o gosto, a confiança, e até a própria atracção, num crescer simultâneo das várias vertentes, e polarizado-se em algumas delas. Torna-se mais igual, deixa de ser um ser tão estranho e diferente que mais parece de outra espécie, no sentido em que vai sendo mais conhecido, mais compreendido. E sendo essa descoberta positiva, agradável, acaba por causar vontade de conhecer mais, de descobrir o resto, e acaba até por levar a dar atenção a aspectos que antes nem se olhavam, a somar identificações e compatibilidades dentro das diferenças que subsistem. Sei agora que é possível alguém passar de uma indiferença a uma vontade de presença, de um conhecido a um amigo, e até de uma resoluta falta de atracção a um curioso interesse de quase desejo. Esta curiosidade pode ser semente.

Mas... diz um popular ditado que “curiosity killed the cat” e, num plano um pouco mais elevado, dizia Nietzche que “quando nos vemos obrigados a mudar de opinião a respeito de um indivíduo, fazemos com que pague caro o trabalho que nos deu.” E isto preocupa-me e deixa-me a pensar...

Confiança rima com perdão



Muito se fala sobre confiança nos outros, sobre a sua importância num relacionamento e sobre a forma como se gere o processo. Nos extremos, há quem confie cegamente e quem seja incapaz de confiar. Pelo meio, combinações infinitas de fórmulas próprias, umas mais bem sucedidas que outras. Penso que em geral todos concordam que ambos os extremos são caminhos quase certos de sofrimento. A diferença é que quando se é capaz de confiar, sempre há a hipótese de um dia acertar em alguém que não nos decepcione e não nos torne miseravelmente infelizes. Desconfiar sempre não traz tantas lágrimas e desilusões pelo caminho, é mais "seguro", mas nunca abrirá a porta à surpresa da felicidade, o que acaba por ser um sofrimento morno, mas perpétuo.

E no meio? Como chegar a uma das tais combinações? Confiança é mais do que um processo mental, é também um processo emotivo. Nada mais explosivo que a articulação de razão e emoção, por isso tantas fórmulas pelo meio causam enorme devastação. Do que não há dúvida, penso eu, é que é um “processo”. E do que não tenho dúvida agora é que o “processo” de confiar nos outros começa com a confiança em nós mesmos.

É diferente no amor e na amizade. Eu sou patologicamente desconfiada mas, quase bipolar como sou, há certas pessoas que conseguem rebentar-me com os muros e defesas, e nessas confio mesmo, construindo o processo na emoção. Mas também com elas aprendo depois, seja pela desilusão seja pelo retorno positivo, a construir com a razão. Assim se aprende, por exemplo, a voltar atrás, a ir buscar alguém que nos é especial de volta. No fundo, aprende-se a perdoar, porque se confia que aquela pessoa é, no seu todo, maior do que a pequenez dos seus erros. É da nossa condição humana errar, e quando gostamos de alguém que erra, de certa forma sentimo-nos traídos, e custa perdoar. Mas tal como a confiança, o perdão só se consegue dar aos outros quando o sabemos dar a nós próprios. Perdoar é renovar a confiança. Estende-se a mão das duas maneiras, e só depois se pode continuar de mão na mão, ou separar caminhos, mas sempre verdadeiramente em paz.

Os amigos em quem confio são pouquísimos, mas existem. E acarinho-os porque me fazem tão bem, porque me fazem sentir humana, me ensinam a confiar em mim própria e a perdoar os meus próprios erros, e porque me desafiam a preserverar nessa luta de acreditar que às vezes vale a pena – tanto o impulso emotivo como a consciente e racional escolha de confiar e perdoar. Essas amizades são talvez o que me levará, um dia, a arriscar outra vez a confiar com Amor.

Tempus fugit



Chego a meio de uma semana em que não tive de ir trabalhar a sentir-me exausta. Não parei um segundo, todos os dias tenho coisas na Agenda, algumas nem consigo fazer no dia em que planeei, e ainda tenho mesmo de coordenar agendas para marcar encontros com amigos – devia poder dizer que qualquer dia serve, mas são já tantas as coisas marcadas que não tenho essa liberdade. Ainda assim, vou vendo os amigos.

Nunca me tinha apercebido da imensidão de coisas que deixava de fazer antes, da quantidade de pequenas coisas que adiava sitemicamente por estarem sempre a ser relegadas para o fundo da inesgotável lista das prioridades, e também, por outro lado, o prazer que pode ser fazer algumas coisas que fazia antes a correr, mas fazê-las agora com tempo, na descontracção de quem não está a contar minutos. E hoje ainda vou fazer um demorado mas (espero eu) compensador risotto para o jantar, e receber uma amiga com calma.

Mas tudo o que é de dentro não se pacifica só com o tempo a escorrer. Tem-me atormentado o sono, impedido de me deitar a horas decentes, e de dormir sossegada. Tudo assoma no final da correria do dia, quando o miúdo dorme, a casa está tranquila, e eu não me encaixo nessa tranquilidade. Não me pacifica o sono, e não me pacifica o tempo. Pesa, enormemente, o tempo a passar. A fugir, alucinante. É isso que cansa. E sinto que preciso de parar o relógio um bocadino, só um bocadinho, para recuperar a distância que me fugiu e retomar o ritmo da passada.

Sísifo – o herói absurdo



Sísifo é um personagem, não é só o o título do famoso poema de Torga. Sísifo-personagem é a metáfora do esforço inútil e incessante do homem que vive uma vida sem sentido mas que o procura eternamente.

Albert Camus (filósofo e escritor francês que ganhou um Nobel) utilizou a metáfora de Sísifo para sustentar a sua “filosofia do absurdo” segundo a qual as nossas vidas são insignificantes e não valem mais do que o valor do que criamos. Como o homem em geral nos dias de hoje não cria nada de valor, vivendo num mundo estéril e desumanizado que aceita, diz Camus que a alternativa a ser-se Sísifo é o suicídio. Porque Sísifo-personagem foi cruelmente castigado pelos Deuses devido às suas virtudes, condenado à cegueira no fundo de um vale, de onde só pode sair se escarpar uma perigosa falésia e ainda por cima empurrando o enorme peso de um pedregulho. E Sísifo não desiste, escala a falésia vezes sem conta apenas para rebolar de novo até ao fundo sempre que está prestes a alcançar o topo.

Para Camus, Sísifo é o expoente daquilo que chama o “homem absurdo” ou o homem com uma “sensibilidade absurda”. Este é o homem perpetuamente consciente da inutilidade e futilidade da sua vida, que ainda assim não desiste de a transformar em algo maior. Os Sísifos de hoje serão aqueles que desejam e procuram claridade e sentido num mundo e numa condição que não oferece nenhuma das duas coisas. Na metáfora, Sísifo um dia chega ao topo, e antes de voltar a caír na sua repetitiva e eterna desgraça, quer olhar à volta e experimentar a sensação de liberdade. Mas é cego. Não verá o que se espraia à sua volta com os olhos. Verá apenas com a alma, e mesmo que por um breve instante apenas, sentir-se-á grandioso e feliz. E isso fá-lo-á recomeçar, preferir a dureza da sua caminhada ao suicídio, à morte. Por isso, Sísifo é o tal herói absurdo.

O poema de Miguel Torga anda por aí. Já quase toda a gente o conhece e, no entanto, quase todos o citam e gostam dele pela primeira estrofe. Mas tem mais, muito mais. A primeira estrofe é positiva, a exortação à coragem, palavras que parecem de esperança, apenas com as ressalvas do “se puderes” e a adjectivação do caminho como “duro”. Mas a segunda estrofe é essencialmente um aviso, é a constatação das agruras inevitáveis e do perigo da loucura – são fatalísticas as “ilusões sucessivas” e o “logro da aventura” – porque Sísifo sempre cai de novo e sempre tem de recomeçar, e mesmo no breve instante em que alcança o topo, não pode olhar à volta porque é cego. As duas últimas linhas são fortíssimas – seremos loucos se nos reconhecermos na loucura, e a loucura é parar, é achar que nos conhecemos. Porque aqui parar é mesmo morrer, e morrer às nossas próprias mãos.

Recomeça...
Se puderes,
Sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,
Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomar
E vendo
Acordado,
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças.

Por muito que custe, por muito que às vezes não veja onde vou buscar a força, por muito o desespero da consciência da inutilidade do esforço, anseio por esse breve instante de libertação no topo do penhasco, de alguma profundeza minha acredito que chego lá, e a cada queda recuso-me a parar. Sísifo, na interpretação própria que faço dele à luz do que entendo da teoria de Camus, é irmão para mim, somos da mesma natureza, embora eu seja mais fraca e tenha os meus momentos de dúvida. Mas somos ambos absurdos.

Lá onde doi



Há uma expressão da BD da Mafalda que sempre me foi especial, porque acho que retrata tão bem o que às vezes sentimos: “uma pedrinha na alma”. Serve para aqueles momentos em que qualquer coisa toca uma nota especial na nossa alma, nos entristece e nos comove, fazendo sentir um pequeno peso no peito.

Outras vezes, o que nos invade é tão maior, o que nos faz sentir de dentro e o peso que lhe sentimos é tão grande, que nem substituindo “pedrinha” por “pedregulho” faz a expressão alcançar essa realidade. Para mim, a viver uma dessas outras vezes, é tão avassalador que chego a sentir que me matou a alma e secou o coração.

Cheia de zanga e de raiva, não quero deixar-me sentir a dor. Não quero derramar lágrimas para não dar a ninguém essa “satisfação”. No fundo, não quero dar parte de fraca. Racionalizo as coisas por forma a que chame outros nomes ao que sinto e não quero admitir. Fiz isso assim, tal e qual, num instinto de sobrevivência. Ou enlouquecia. Mas cresceu dentro de mim uma vaga imensa de dor. De tanto querer fugir-lhe e negar-lhe a existência, deixei-a crescer. E de repente, uma pequena coisa, que põe ao que não queria admitir sentir o nome que lhe compete, que me desarma pela forma improvável como acontece, rebenta o dique que pensei indestrutível, e por momentos, penosos momentos, verti essa dor violentamente, sacudindo-me o corpo e implodindo-me a alma. E só depois a escrevi.

Não há como medir uma dor de dentro, tal como não há como medir o Amor. Porque não cabem na alma, são muito maiores que nós. E levam tudo de nós, levaram-me a mim para lá, dentro, lá onde doi.

Verdade




De Carlos Drummond de Andrade:

A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.


Acho que por isso é tão difícil ver a verdade de quem amamos. E por isso duas pessoas podem ver duas verdades sobre a mesma realidade. Vemos o que queremos ver, escolhemos a verdade que queremos aceitar, e muitas vezes conformamo-nos com meias verdades, recusamos a parte da verdade que nos fere, porque é muito mais difícil aceitá-la. Quando não lhe podemos fugir, ou quando não nos contentamos com menos do que toda a verdade, há sempre alguém que nos critica, porque estamos a olhar para o que não devíamos, por estarmos a dar relevância ao que não é importante. Porque para muitos o importante é pintar tudo de côres bonitas e harmoniosas, mascarar os escuros e os imperfeitos. O meu maior problema é não ser míope e ser eternamente inconformada - não gosto de metades.

Gelou



Não sei se choro, se rio. Não quero verter mais lágrimas que não mas mereces. Mas isto não tem piada nenhuma. É duro, duríssimo, constantar o que dei de mim, o quão especial te fiz, o quanto te desculpei, julgando-te um homem que não és.

Não sei se devo sentir-me maior ou menor. Senti-me maior quando te fiz especial para mim, senti-me maior mesmo na forma como sofri por ti. Mas da mesma forma que fazer alguém especial para nós nos faz melhores e maiores, ser para alguém muito menos do que valemos também nos faz menores e piores. Isso não consigo evitar sentir, e isso não te desculpo. Não te perdoo que tenhas feito de mim o que não sou, que me tenhas feito sentir igual a quem desprezo, e que tenhas feito do que te dei algo tão baixo. Não te perdoo que deixes numa das coisas mais especiais da minha vida uma marca tão suja que chega a repugnar-me. Marcaste-me também agora da pior maneira possível. E levo essa mancha comigo.

Também sinto alívio, se queres saber. Rasga-me por dentro, fere-me a alma, vêr-te pelo que és. Mas percebo que tenho muito menos culpa do que a que andei a carregar tanto tempo. Percebo, claramente, que não me mereces, nem nunca mereceste. Foste para mim excepção em tudo, e com isso te fiz excepcional. Mas não o és. O homem que achei vislumbrar em ti não existe. A mulher que não soubeste ver em mim não te pertence nunca mais.

Quando digerir isto tudo, quando puder rir, digo-te apenas que me és tão estranho como eu te sou desconhecida, e assim quero permanecer. E digo-te que a vida dá muitas voltas, mas pelo que és nunca terás da vida mais do que tens, e eu, eu sei que terei muito mais e muito melhor que tu. Por mais feia que seja a vingança e o rancor, direi então que quem ri por último ri melhor.

Trânsito sentimental



Todos os dias sentimos um monte de coisas. Experimentamos uma panóplia vasta de emoções, muitas das quais nem percebemos, não ligamos, porque são coisas menores, sem importância, que sentimos tanta vez que já não marca, ou a que nos habituamos a não dar valor. Mas há dias em que sentimos coisas especiais, mais intensas e mais vivas, talvez por serem pouco usuais. No fim, são essas as coisas que marcam o dia, e por isso há tantos dias que não nos marcam. Apenas passam.

Se fôssemos a assentar numa lista tudo o que sentimos a cada momento de um dia, não só nos surpreenderia o tamanho da lista como a velocidade com que passamos de sentimento para sentimento. Podemos irritar-nos no trânsito, vociferar uns impropérios contra um qualquer idiota desconhecido, e a seguir sentirmos paz com a música que toca no rádio. Podemos sentir alegria com um abraço de um amigo, e a seguir sentir inveja pelo que nos conta. Podemos sentir satisfação por uma coisa qualquer que acabamos, e a seguir sentir tristeza com uma notícia má. Podemos sentir ao longo do dia, geralmente em pequenas doses quase inofensivas, quase todos os sentimentos que existem. Felizmente, não é comum ser assim. Felizmente, há em geral um sentimento dominante, que no meu caso tende a acordar comigo e raramente se corrompe por completo à medida que tudo o resto passa. E esse sentimento domina porque damos a quase tudo luz vermelha, e apenas a certas coisas luz verde. No fundo, regulamo-nos inconscientemente, num complicado sistema de semáforos e prioridades, que supostamente põe ordem no nossa mapa rodoviário interno.

Hoje senti duas coisas fortes, uma a seguir à outra, e não consigo decidir a qual dar luz verde para se estender para lá deste dia, a qual dar a prioridade. Aaaah, o poder das revelações... Aquele milisegundo em que coisas que nos atormentaram, que nos contorcemos em incríveis ginásticas mentais para entender sempre nos fugindo o sentido, se tornam claras, límpidas, transparentes. Pode ser bom, sentido como uma vitória, uma conquista, uma pacificação. Mas às vezes é duro e frio o sentir destas revelações. Não é à toa que se diz “a verdade nua e crua”. Para mim foi uma revolução, e um enorme engarrafamento cresceu-me no coração.

Excertos de mim # 4 - O que não quero voltar a escrever



“Alguns dias passam bons, com muitas coisas a encher a vida, mas ainda assim fica aquela sensação de que falta qualquer coisa, que nada faz verdadeiramente sentido. Sinto que me esvazio em razões de ser que são só números, objectivos, necessidades práticas. Sinto que me falta um bocado, falta um bocado de mim, e falta-me um bocado de vida. Tenho vontade de muito mais, vontade de largar muitas coisas e me lançar à conquista e à descoberta, dessa vida que me fugiu, dessa parte de mim que adormeci.

Sei que tenho muita coisa. Sei que, materialmente, não me falta nada. Sei que faço o que faço e vivo como vivo porque foi assim que a vida me obrigou a ganhar a vida. Sei que não me devia queixar e sei que prezo o conforto que compro com outro desconforto.

Mas creio que há mais para além do que vivo, do que sinto, do que tenho. Creio que há mais de mim. E isto que vivo, sinto e tenho hoje não chega. Isto não chega, não me chega. Ou eu não chego lá.”

Mas chegarei.

Primeiro o verbo



Olho para esta página que quero encher e luto por encontrar o fio à meada dos meus pensamentos e sentires que se entrelaçaram e enovelaram, numa massa disforme e indistinta, mas de côr intensa e tamanho enorme. Quero puxar a ponta do fio e devagarinho desembaraçar a confusão de fios que são o mesmo fio em nós e voltas sobre si. Procuro o princípio, o primeiro verbo e o seu modo perfeito.

A página branca é oportunidade e desafio. Duas pontas. Não serve. A página branca é uma promessa de futuro, incerto e desconhecido, que não será uma página branca nesse futuro, será página tingida de linhas, os fios arrumados em palavras e frases direitinhas.

É isso que é agora a minha vida: uma página branca onde tenho de arrumar o fio do novelo que quero escrever. De repente, o tal tsunami de que aqui falei, apesar de ter trazido momentos de angústia, empurrou-me para a frente, fez-me voltar a página. De facto, estou agora capaz de, e capacitada para, fazer coisas que há muito adiava. Nos próximos meses, substitúo o escritório pela Universidade. Faço duas coisas de uma assentada: livro-me de um trabalho que não me realizava, onde não estava satisfeita profissionalmente, ainda me pagam para isso, e volto a estudar para resolver o handicap do meu background académico. Escrevi aqui há meses que queria ir fazer uma pós-graduação mas que não via como conciliar mais uma exigência na minha vida já tão atribulada. Eis que o destino me resolve o problema, pondo-me no bolso o que chamo de “mini-lotaria” e libertando-me o tempo. Não é a melhor forma de o fazer, mas é uma forma de o fazer, e sei que tenho de aproveitar a oportunidade. É agora ou nunca e este investimento em mim vai também permitir-me redireccionar a minha carreira profissional para uma área que sei que me satisfará muito mais. Paga é menos, em geral, e foi mesmo esse o factor essencial para me manter tanto tempo onde estava.

Mas agora, que o tsunami me fez perspectivar a relevância de algumas coisas, sinto-me tranquila na aceitação de que dinheiro nenhum no mundo paga o sentimento de realização pessoal, de orgulho no trabalho que produzimos, desde que as coisas básicas estejam asseguradas, naturalmente.

Está verdadeiramente tudo em branco, tudo em aberto. E eu senti-me crescer com isto, como uma bola de neve que foi ganhando tamanho dentro de mim. Cresceram as minhas vontades, as minhas certezas, as minhas verdades. Ainda estão um bocado desorganizadas, ainda não as encaixei perfeitamente num novo esquema mental, em gavetas arrumadas. Mas sinto-as. Também tenho medo, sim, sobretudo porque embarco nesta aventura de destino incerto com o meu filho. Mas também para ele sobra para já mais tempo, e sobra uma mãe mais feliz e disponível para embarcar nas suas intermináveis e inenarráveis produções cinematográficas. O resto virá. E tenho consciência de que nada nos faltará e sei que, infelizmente não é assim para todos os que apanham com estes tsunamis privados.

Quero olhar para esta página branca como uma benção, a segunda oportunidade que muita gente não tem na vida. Quero escrevê-la toda de linhas que, no fim, façam mais sentido do que as linhas que deixei em páginas anteriores de mim. E de repente dei comigo já a fazer o caminho, com os dias preenchidos de milhares de coisas de que ando a tratar, e a começar a ver traduzidos em factos concretos, papeis e carimbos, o princípio do que era até há um mês atrás apenas um sonho, um desejo, que impassivelmente me resignava a não prosseguir, que julgava não poder realizar.

O verbo é mesmo começar. O modo é o presente, primeira pessoa do singular – eu começo.

PS: De pura ironia, é que a empresa de onde saí bloqueou ontem o acesso aos blogues.  Sem isso é que eu não tinha lá sobrevivido!...