Dose dupla

Em dois dias, vi-me posta à prova, a engolir as minhas próprias palavras. Pois sim, não há nada melhor do que o abraço de um filho, mas por vezes a sucessão de birras, asneiras e chatices bate qualquer um. Foi um sábado de programa de cinema, a começar com uma saída de casa atribulada (e molhada) por causa de uma teima com o guarda-chuva. Um almoço de fast-food, em “assentos de nave espacial”, que levou hora e meia a ser acabado, com tanta parvoíce e brincadeira que se deu pelo meio, o meu e mais um, companheiro do programa. Fora as porcarias, a comida que caíu, as bebidas que se entornaram, as camisolas que se pingaram. Seguiu-se o filme, onde ao fim de 15 minutos já andava no senta-levanta, com as pipocas e a água em constante idas e vindas entre as minhas e as mãos dele. Passagem pelo supermercado, com nem sei quantas mini-birras, desde a que começou com a escolha do carrinho, quem empurra, quem arruma, quem escolhe, o que escolhe, quem põe na caixa, quem põe no saco, quem carrega nos botões do multibanco. Mais birra porque não queria ir para casa e dizer adeus ao amigo, e mais birra para tomar banho, e depois para jantar. Caiu na cama exausto, mas eu também. E hoje, foi o dia das asneiras, já lhes perdi a conta, a enfernizar-me a cada passo que dava e a exigir que fizesse jogos com ele a cada tarefa doméstica que iniciava. E no fim, depois do banho do temível “hoje-é-dia-de-lavar-a-cabeça”, já com tudo encarreirado e o jantar à espera, ao secar-lhe o cabelo descubro... piolhos. Piolhos, por Deus, piolhos... Apenas e só “a” coisa que me tira do sério, que só de os imaginar a passarem para mim fico doente. E dadas as horas, não tive hipótese se não passar o pente da tortura, felizmente constatar que não está infestado, (saída mais fantástica: eu - "quieto, que está aqui um piolho!"; e ele, voz de sofrimento - "depressa mãe, depressa, que ele está-me a puxar o cérbo!"); dar-lhe o jantar, e amanhã de manhã lá vai ele para a barrela com a mistela nojenta do “remédio-dos-piolhos”, que espero que chegue para ele e para mim a seguir, que eu nestas coisas não brinco. E depois são os lençóis e fronhas e etc, tudo a lavar, secar e engomar, em cima do que já é normal, que vou ter mesmo de dividir com a minha empregada que não vai dar conta do extra. E isto na semana em que inicio mais um projecto exigente, e que por isso queria iniciar bem descansada. Maravilha. E agora, nem quero um abraço dele, que não quero aquela cabeça perto da minha, apesar de não saber se não me passou já a agradável hospedagem. Em dias destes, não me importava muito de o mandar para casa do pai, e ficar só com as conversas e sorrisos telefónicos... À distância segura dos piolhos e com as birras e asneiras em versão de terceira pessoa. Que dose!

Há dias

Depois há outros dias. Há outros dias em que parece que a vida avança amena, sem grandes tristezas mas também sem grandes alegrias, com as peças deste tetris da existência a encaixarem-se como deve ser. Ou calham-nos umas peças em falta, ou conseguimos rodá-las convenientemente, e lá se vão umas quantas linhas de problemas. Há esses outros dias em que nenhuma questão filosófica profunda nos assalta, e em que rodamos ao sabor das obrigações e das necessidades mais prementes, em que nos contentamos com a mera existência sem grandes questões. Há estes outros dias em que não se carregam lastros, que se largaram por uns tempos numas linhas da alma ou num lenço de papel deitado no lixo, dias em que os problemas, por maiores que sejam, são apenas factos da vida encarados com naturalidade, que se vão resolvendo como se pode, sem a angústia do costume. São uns dias chatos, cansativos. E são raros. Mas há. Acho que felizmente. 

Primordial

Crescer com falta de afecto é um frio que se carrega para a vida, que tantas vezes me faz temer um destino gélido. Da minha infância, lembro-me de muito pouco. Lembro-me de ser maria-rapaz apesar dos tu-tus do ballet, a mais velha da minha geração, sempre a comandar as tropas para a asneira. E a ser constantemente castigada, mesmo quando não tinha culpa, simplesmente, dizia ela (quando o admitia), por ser a mais velha. Lembro-me sempre da frieza dela, quase desprezo, dos desabafos de enfado. Algumas vezes com todas nós, outras vezes em especial comigo. E lembro-me de ter ciúmes das minhas irmãs, mas andar sempre a protegê-las. A dar-lhes os abraços e os mimos que não tinha, e a cumprir os castigos que não merecia. Lembro-me de me sentir sempre “menos” para ela. Menos que elas, e todas nós menos que tudo o resto. É triste sentir essa clara marca de inferioridade naquele que é o laço mais primordial, sentir que nenhum amor pode ser seguro, nem o de mãe, esse que é suposto ser maior que tudo, e para mim não foi. Dele, lembro-me da ausência e da distância, das viagens, do cachimbo e dos jornais no silêncio que não podíamos quebrar. Lembro-me de não me lembrar da cara dele a certa altura, de não me lembrar de um abraço dele, de não lhe conhecer o colo.

Mas hoje, não sou gélida. E comovo-me ao ler da minha irmã caçula que me adora (e que eu adoro), e que me "adorou imensamente" quando só eu me lembrei de um valente abraço face à notícia da chegada da cegonha. Comovo-me, porque gosto tanto dela, porque sei que esse abraço sentido assim por mim me revela ainda quente, que esse abraço sentido assim por ela a revela ainda quente, e esse nosso abraço sentido assim pelas duas não deixa margem para dúvida que a frieza em que vive a nossa família não é normal, mas não nos venceu.

Deseja ela, a caçula, ser mais “competente afectivamente como mãe”, enquanto se angustia já com o saber que nada será como dantes. Mas eu sei que ela será uma mãe maravilhosa. Digo-lhe isso e mais, como já escrevi aqui: que um filho é uma dádiva, mesmo quando nos exaspera, e faz birra, e faz asneira, e nos azucrina o juízo, porque também nos dá um amor total, nos permite dar um amor total, receeber um sorriso puro e todos os grandes abraços de que precisamos. Todos esses que nos faltaram e faltam ainda tantas vezes. Podemos falhar em muitas coisas, que sei que falho - e ela falhará, no seu natural caminho de aprendizagem. Mas num colo, num carinho, num abraço, com um filho não falhamos, porque sabemos o que dói faltar. E essa falta pode ter-nos feito um bocadinho avariadas, pode até nem nos ter feito mais fortes, mas se não nos gelou, fez-nos muito mais conscientes de onde não podemos faltar, para não falharmos nós no amor primoridal que queremos dar.

Juras de Amor

As juras de amor são palavras. São frases e textos, monólogos ou diálogos, que é suposto dizerem, pelo tamanho do amor que se sente, o quanto vai durar esse amor. E quando se diz que é enorme, imenso, inabalável, e que vai durar para sempre, certamente, não se espera que morra em três tempos. As juras de amor, mesmo que de um amor sem consequência, seja por condicionantes da vida, seja por não correspondência, podem não se cumprir no tempo que demora demais, mas não podem é ser mentiras banais. O prazo é difícil de estabelecer - é certo. Não sei quanto tempo leva um amor a morrer. Sei que pode viver de nada mais do que memórias e vontade de o perpetuar por bem mais de um ano, pelo menos. Dizem que até pode mesmo durar para sempre, mas isso ainda não pude comprovar. O que sei é que, se é compreensível que comece a diluir-se, a apagar-se, depois de mais de um ano de espera sem esperança, não o é se já se foi ao fim de poucos meses. Se isso acontece, se as juras de amor só valem para três meses de ausência, então não era amor, e quem mais jura mais mente.  

Inside Out?

(Adenda ao último post)

Ou seja: antes vestia por fora as cores do que me ía dentro. Agora, quero vestir por dentro as cores que escolho para fora. Mas quando as escolhi, para fora, guiei-me pela vontade e pelo instinto, o que me diz que, por dentro, essas cores já têm que lá estar. Coisa tortuosa...

Statement


Há uns anos, o meu roupeiro era cinzento. E bege. Monotonia total. Com o trabalho das arrumações quase terminado, e porque tenho a mania de organizar as coisas por cores, chego à conclusão que agora não tenho praticamente nada cinzento, muito pouco bege, um degradé de cores bastante variado, e depois, na ponta de cada secção, uma quantidade parva de coisas pretas.

Primeiro choquei-me. Depois preocupei-me. Depois pensei que do cinzento ao preto é uma vitória. Porque o cinzento é uma mistela de uma cor sem alma nem carácter. E o preto é, muito francamente, uma afirmação. Tal como a alargada paleta de cores que agora medeia o branco e o preto, sem quase passar pelos cinzentos (que embora ainda tenha alguns, são no entanto peças especialmente marcantes pela forma ou feitio), e que complementam o figurino. Tudo pronto para levar para a rua, e a ver se esta definição se impõe sobre os cinzentos melancólicos do desencanto e do descontentamento, que ainda visto por dentro tantas vezes. Porque realmente, black is beautiful, triste é só para os velórios e, mesmo assim, não deixa de ser um statement: é assumidamente triste, mas é assumido. Noutras ocasiões, é simplesmente distinto. Ou gosto de pensar que sim.

No easy way out

Não nascemos para a facilidade. Queixamo-nos sempre das dificuldades, do que não é linear, líquido ou transparente, mas, na verdade, parece que quanto mais difícil é um caminho, mais vontade temos de o seguir, e mais nele persistimos. E as vitórias na vida que mais nos custaram alcançar, tal como as derrotas das batalhas em que mais penosa e longamente tivemos de lutar, são as que lembramos ao olhar para trás. Das vitórias fáceis, tal como das derrotas de guerras em que nem quisemos entrar, quase nem nos lembramos. É que a única medalha destas batalhas da vida, que temos direito de usar para sempre, é, mesmo, uma medalha de mérito. E a medição do mérito pertence à consciência, depois de medida a dificuldade da guerra.

Ainda da Normalidade

De Aristóteles:

“no excellent soul is exempt from a touch of madness”.




Pergunto-me se o meu grau de insanidade me qualifica. Talvez não. É certamente mais que um “touch”.

Vice-Versa

Gostava, às vezes, de voltar a ter a capacidade de dar vida às histórias simples, que se lêm e se ouvem, e que mesmo sem fazer sentido, se fazem reais. Talvez assim pudesse escrever a história da minha vida daqui para a frente, e pudesse lê-la e contá-la e vivê-la. E isto a propósito da leitura de mais uma história infantil da hora de deitar, há minutos atrás. O meu filho, no fim, depois de ter seguido atenta e animadamente: "sabe o que eu fazia se estivesse dentro dessa história?". E sabia, sabia muito bem o que faria. Acho que o pior para mim é mesmo pensar que, para além de já não acreditar nas histórias dos outros, onde hoje descortino num ápice todos os erros de trama e enredo, pelas mesmas razões não consigo escrevê-las eu, e já não sei o que fazia, realmente, se me visse dentro de uma história de final feliz. Para imaginar, também é preciso acreditar. E vice-versa.

It takes one to know one


Pergunta-me o que é que eu procuro num homem. Penso em várias características que aprecio, em paralelo com os exemplos vividos que me vêm à mente, ora por semelhança, ora por oposição. E por fim desabafo, assim de repente, que queria apenas um homem normal. Assim só: normal. Depois penso que um homem assim - simplesmente normal-, se é que existe, me daria cabo dos nervos. Porque eu - eu não sou normal. Não preciso da permanente constatação do facto por óbvia oposição. Preciso de alguém que, sendo também um pouco fora do padrão, tire comigo, dessa anormalidade, uma perfeita e natural conclusão.

Cheiros de Memórias

Ela tinha uns doze anos e a noite era de trovoada. As férias da família, de volta às raízes, dividiam-se por duas casas – a “de cima”, onde vivia um dos seus tios, e onde se juntavam às vezes ao jantar, e a “de baixo”, que albergava os que estavam de passagem. Eram serões de longas tertúlias de adultos, em que ela já queria participar, mas onde só o avô lhe garantia presença, com ouvido atento e palavras provocadoras a espicaçar o intelecto. Quase todos desceram numa aberta da chuva, carregando ao colo os mais novos já adormecidos. Ela quis ficar e o avô (sempre o avô) garantiu a extensão excepcional da hora de deitar. Mais tarde, noutra aberta das águas, desceram juntos. Era noite escura-escura, no meio do campo sem o brilho dos candeeiros de rua da sua noite citadina. Era terra e gravilha que não se via por baixo dos pés, não era calçada de pedras claras à vista. E todos os sons eram silêncios estranhos. Ao fim de uns metros, teve medo. Ouvia os passos pesados no compasso militar do seu avô, que abafavam o som dos seus passos hesitantes, que tentava em vão ritmar de igual modo; via os relâmpagos, que por breves instantes a deixavam vêr o caminho, e ouvia os trovões que a deixavam a tremer. Mas calada. Sem um ai. Que ele não era homem dessas coisas. E ela não queria perder-lhe o respeito.


A meio do caminho silencioso entre as duas casas, ele diz: “Inspira bem. A que te cheira?”. Ela apercebe-se então do odor forte que enchia o ar e, um pouco espantada, responde: “cheira a molhado”. Ele ri-se e diz: “é o cheiro de terra molhada. Um dos melhores cheiros do mundo”. Seguiu em silêncio mais uns passos, gravando aquele cheiro na memória. Continuava com medo, mas tinha-se esquecido da trovoada. Até que surge mais um relâmpago no céu e, de imediato, ele explica-lhe o fenómeno e ensina-a a contar os segundos entre o clarão no céu e o som do trovão, para saber a que distância está a tempestade, e assim saber também se se afasta ou se se aproxima. E contando os segundos, ela vai percebendo a tempestade a distanciar-se - e faz o resto do caminho em total tranquilidade.

A que lhe cheira hoje a terra molhada? Cheira a ternura e saudade, do seu avô. Aquele Grande-Homem-grande que, na sua imensa inteligência e generosidade, soube confortá-la sem a diminuir numa noite tempestuosa, guiando-a por um caminho escuro-escuro de medo, no seu espírito de liderança de oficial do exército, deixando-lhe mais uma gota de sabedoria que não havia nunca de esquecer. Aquele homem de afectos profundos, sentidos, mas muito pouco demonstrados às claras. Não dava beijos nem abraços – não era mesmo homem dessas coisas. Mas sabia ouvir, sentir, e o que dava, dava de coração. Por isso, nessa noite, como tantas vezes, sem a tocar, soube dar-lhe a mão. E, hoje, a chuva traz-lhe sempre a memória de um dos melhores cheiros do mundo.

(Inscrito no desafio de Outubro da Fábrica de Letras)

Convicções


"Earth to earth, ashes to ashes, dust to dust;
in sure and certain hope of the Resurrection into eternal life.”


Felizes dos que se apagam com a tranquilidade dessa convicção, que deixam quem cá fica com um suave até sempre. Assim foi ela: em paz. Mas para os que ficam sem essa convicção, não há conforto na despedida, por maior que seja a serenidade de quem parte; porque, para esses, é convictamente um saudoso e difícil adeus.

Adeus. 

Memórias Encerradas

Faz-me uma cara de espanto e clama “olha!”, repetidas vezes, enquanto parece querer absorver-me com os olhos. Não consegue dizer mais nenhuma palavra, mas repete o “olha!” de tantas maneiras diferentes, passando da surpresa e do contentamente à comoção de um timbre mais baixo e lento, que me comove a mim também.

Passo com ela uma manhã, tratando-a como se fosse uma criança. Que anda devagarinho e com apoios porque pode cair, que não consegue segurar em nada que pese mais do que umas quinhentas gramas, que não consegue vestir-se sozinha, quase não consegue comer sozinha, e nem sequer consegue articular as palavras que permitam estabelecer a sua vontade. Penteio-lhe os cabelos já todos brancos, mas muito macios, e ela fecha os olhos em frente ao espelho. Ponho-lhe os ganchos com cuidado, que sei que é frágil e duvido da minha competência, tenho medo de a magoar. Depois pergunto-lhe se ficou bem, e ela olha-se e diz com um sorriso “ena!”. E “ena!” repete-se também um número de vezes em diferentes entoações.

Não me larga as mãos das suas, muito magras e quase transparentes, que evito olhar porque me ofende ver-lhe os ossos e as veias, e a vida a fugir dali. Olha-me para dentro dos olhos, com os seus lindos olhos verdes raiados de azul, que parecem ser a única coisa que não envelhece. À sua maneira, com o pouco que consegue articular, vai-me perguntando pelo meu filho. Lembra-se do abraço que ele lhe deu no Natal, sabe o nome dele mas não consegue dar-lhe a volta na boca. Franze a testa enrugada, contorce a expressão e fecha os olhos num misto de frustração, zanga e tristeza, a cada palavra que quer dizer e não consegue. E eu tenho de lhe dizer que não faz mal, já se lembra e diz-me mais tarde, devagarinho avó, com calma.

Saio de lá sem conseguir almoçar, um nó no estômago. Doi-me a cara de tanto me forçar sorrisos para disfarçar. Invade-me uma tristeza e uma revolta, e sinto o peso da culpa. De facto, não sei lidar com isto: com a morte a chegar, a comer aos poucos os corpos e as palavras dos que amo. Devia ser mais forte, devia saber vesti-la sem me chocar com o corpo definhado, devia aceitar que o braço direito já não mexe e ficar feliz porque ainda mexe o esquerdo, devia contentar-me com as palavras que ainda me consegue dizer e ler o resto no olhar. Mas não consigo, estrangula-me, agonia-me, numa recusa mista da realidade dela hoje e do que pode ser o meu próprio destino. Percebo que já encerrei dela as memórias que quero manter de quando “era uma senhora tão alta”, como diz tristemente a empregada que me vem render e apoia suavemente o braço daquela senhora agora tão pequenina, curvada, mirrada.

Pergunto-me como não enlouqueceu ainda, sabendo que a cabeça ainda funciona perfeitamente - entende tudo, ouve muito bem, reage com a expressão ou com o riso com todo o entendimento do que se lhe diz, mas perdeu a capacidade de falar. Tem as palavras na boca e não as consegue articular. Que sofrimento há de ser. Fico a pensar que tantas vezes calo as minhas palavras de dentro, e o que daria ela por poder fazer-se ouvir. Diz-me que lhe faz impressão olhar para os meus olhos. Mas não consegue explicar porquê. Faz apenas um sorriso triste, ora mexe em tudo o que pode à volta dela, ora não me larga as mãos, e não desvia os olhos, e eu fico sem saber que me viu ela no olhar, que memória ou identificação lhe terá cruzado o pensamento e ficado presa na garganta. Na minha ficaram as lágrimas, que me faltou chorar. As lágrimas que lhe devo no dia em que não a puder mais olhar, mas puder vê-la como a quero recordar.

Reeditado, hoje, o dia em que choro enfim as lágrimas que lhe devia.

Queria o vento

Queria um sopro forte, muito forte. Uma ventania desabrida. Daquelas que faz bater as janelas, que muda o ar que se respira, a temperatura que se sente, o sítio das coisas e a ordem dos cabelos. Daqueles sopros de renovação, mesmo que violento. Um vento de mudança - para melhor. Queria. Mesmo.

Já agora, que o vento levasse a confusão espalhada pela minha casa, vítima das interrupções da árdua tarefa da mudança de estação no meu roupeiro. É uma luta. Já faltou mais, e já tenho algumas certezas: compro demais, compro coisas que não devia, ainda assim falta sempre qualquer coisa e, quando mudar de casa outra vez, o que não pode faltar é mais espaço para arrumar.

Faço o mesmo por dentro que faço com as roupas e os sapatos, e os demais acessórios no roupeiro. Sinto e penso demais, faço vivas memórias de coisas que não devia, e também me falta sempre qualquer coisa, para além do espaço para conseguir dispôr tudo de forma organizada, sistemática - e permanente. E as minhas estações interiores sucedem-se em ritmos próprios, às vezes demasiado rápidos, quase alucinantes, obrigando-me constantemente ao caos de pôr tudo para fora, e ao esforço de escolher o que guardar, o que deitar fora, e o que deixar à mão, organizadamente, para usar. A diferença é, essencialmente, no deitar fora. Da roupa e acessórios eu desfaço-me sem problema e, quase sempre, sem pena. Racionalmente sei que não tem mais uso para mim, e como não deito no lixo, mas dou sempre a alguém que precisa, sinto justificado o acto. Das outras coisas de dentro é mais difícil. Porque não as posso dar a ninguém, e nem consigo que se descolem de mim. Sinto que a maior parte do meu interior se tornou uma enorme, e atafulhada, arrecadação. Só não tem pó, do tanto que lhe mexo. Que luta - e que canseira.

Queria o vento, sim, um sopro, uma lufada de ar fresco. Podia ser que me ajudasse a respirar.

A Meio é o Caos

Ainda não estou lá. A limpeza e a arrumação vão a menos de meio, encravadas em coisas mais prementes, em requisitos de ordem prática e necessidade imediata. Ou em dúvidas que surgem, em resistências que me fazem tropeçar, hesitar, e algumas surpresas pelo caminho que me deixam inquieta, que não gosto muito de surpresas e, muito menos, de não saber o que fazer com elas.

Esta coisa de arrumar gavetas traz sempre uma fase de maior caos ainda. Ou talvez seja que apenas torna o caos mais visível, mais óbvio. Certo é que, por agora, o sentir que já comecei a mexer nas coisas, não me deixa tranquila pensando que estou a fazer alguma coisa por resolver as confusões, e que já vou a caminho de maior organização e clareza. Não me deixa a pensar e sentir que, pelo menos, estão começadas as arrumações. Pelo contrário: faz-me sentir que abri as hostilidades. E não sei se, agora, tenho a coragem e capacidade de ganhar a guerra.

Ao mesmo tempo, estou já no meio do campo de batalha, tudo é caos à minha volta, sei que assim é que não posso viver, e não me resta portanto grande alternativa se não ir à luta mesmo. E dos fracos, e dos vencidos, não reza a história. E já caminhei demasiado para me render sem glória, para chegar a esta fase da minha vida e desistir, deitando a perder tudo o que até aqui conquistei e me fez sempre, no fim das contas, resistir. A meio, não fico.

In the Closet

Hoje é dia de arrumações. Se me escondo detrás da confusão nos dias em que prefiro não me ver, então é bom que arrume o disfarce de quando em vez. São coisas, só coisas. Tralhas e trapos de estação que me entretenho a reavaliar e reconjugar com as peças novas que integro, enquanto me despeço das que já não fazem sentido. Enquanto percebo o que ainda me faz falta, e enquanto me rendo ao clima, ao tempo. Não só com as coisas - os trapos.

Hoje arrumo, arejo, limpo e deito fora. Amanhã, quero ver-me no espelho composta, e ajustada aos tempos que correm, e quero sair para dizer um enorme bom dia ao mundo. Já chega de desarrumação, já chega de negação, já chega do armário fechado. Preciso de respirar. E de Prozac - verdade. Mas ainda prefiro procurar outras coisas que não comprimidos.

Missões

"(...) Olhamos à janela de olhos fitos
Longe a claridade além dos rios
Queremos ir com o vento com o perigo
Queremos a injustiça do castigo
Somos nós que a nós mesmos nos matamos
E com mais amor do que quando amamos
Sentimos sobre nós descer o frio"

Sophia de Mello Breyner Andresen

Empirismo

Percebo muito bem o que faço e porque faço, e porque não faço, não digo ou disfarço. A posteriori. Sei porque erro e sei onde está, e porque está, cada cicatriz que me doi. E essa constatação experimental serve de quê? De nada. A não ser fazer doer ainda mais. Quanto maior a lucidez, maior a dor.

Change of Heart


Há coisas que não consigo exprimir em Português. Uma delas é “change of heart”. E porque é tão diferente de “change of mind”. Não sei qual delas manda na outra, acho que têm uma relação às vezes um pouco promíscua. Mas sei bem que dói diferente. Uma“change of heart” é tão mais difícil de suportar, quanto o é de acontecer.

Na cabeça, funciona lógica, factos e provas. Deduz-se uma acusação e proclama-se a sentença racional. Muda-se de ideia em vista de boas razões para o fazer. Já do coração, o processo é mais complexo. Não se podem sentir razões. Sentem-se apenas emoções. Às vezes também despoletadas pelos veredictos da lógica (por isso a promiscuidade - não devia ter nada a ver uma coisa com a outra, mas por vezes misturam-se e dá muito mau resultado), mas geralmente são apenas coisas que se dão, que nos dão, ou que ficam, ou que vão. O processo é alquímico.

Somos capazes de amar um escroque que sabemos que não vale um cêntimo, e não podemos amar alguém que sabemos que merece e nos quer bem. E ora somos capazes de nos lançar em aventuras insanas na vida, num salto de fé que o coração grita, ora não somos capazes de deixar o coração saír do cárcere que a rígida mente dita. E somos capazes de viver com uma fundamentada mudança de opinião, mesmo que seja uma desilusão, mas não somos capazes de viver com uma “change of heart” que nos deixa a sentir sem perdão, que nunca tem propriamente uma razão. Mais ainda quando é dos outros, porque sabemos que não há nada a argumentar, nada a ripostar, nada mais a esperar. Até se dar a nossa própria “change of heart”, provavelmente a custo, penosamente, depois de muita lógica destilada, e muita noite chorada. E mesmo assim, talvez não se dê nunca. Porque é mais fácil o coração imiscuir-se na cabeça e turvar o pensamento, do que a lógica forjar um sentimento, ou forçar outro a mudar.

Turvos

Já não posso escrever-te em textos, desses que lá atrás arranquei de mim, transpirados da mágoa, da tristeza, da saudade. Do amor. Sim. Já não posso escrever-te porque tudo isso é hoje, quando emerge, apenas reflexo e memória. És história. Verdade: ainda cá estás. E sei que há coisas de que não sou capaz - uma delas é esvaziar-me inteira de ti. Mas já não te posso escrever, porque tu eras isso que eu senti, isso que eu era por ti, isso que eu sabia bem onde estava em mim e porque me atormentava. E agora, és só um rasto difuso, és enredo de outro capítulo, nesta história que continua. Já não te apanho nítido, já não te sei onde em mim.

Verdade.

"É fácil trocar as palavras,
Difícil é interpretar os silêncios!
É fácil caminhar lado a lado,
Difícil é saber como se encontrar!
É fácil beijar o rosto,
Difícil é chegar ao coração!
É fácil apertar as mãos,
Difícil é reter o calor!
É fácil sentir o amor,
Difícil é conter sua torrente!

Como é por dentro outra pessoa?
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Com que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.

Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição
De qualquer semelhança no fundo."

Fernando Pessoa

Vistas

Li algures, já não sei onde, que enquanto não se encontra a pessoa certa, há que aprender a reconhecer as erradas. Já não é mau quando ao menos isso se consegue. O meu maior problema é que ainda nem sempre percebo as que são erradas, e a outras não sou capaz de dar o benefício da dúvida, porque temo que seja mais um engano. Depois de vários enganos desses, dizia-me ontem uma amiga que lhes chamou “pancada”, perde-se a capacidade de ver. E eu digo que não – perde-se é a capacidade de acreditar. Porque os olhos vêm o que a cabeça e o coração mandam ver. E sem fé, não há visão.

Os outros dizem

Que sou valente, que sou forte, que sou corajosa e determinada. Que fiz imenso caminho em pouco tempo, que cresci muito, que me abri mais ao mundo, que estou mais bonita, que têm orgulho em mim. Que a jusante será melhor, que mereço tudo de bom, que melhores dias virão, e que estou hoje muito mais preparada para os receber. Que sou boa mãe, que tenho muito para dar e ainda tanto para viver. Mas os outros - os outros, meus caros -, não calçam os meus sapatos.

Minha Lei

Se o universo tem, realmente, leis, uma incontornável é a da atracção. Costumo torcer o nariz aos discursos saídos dos livros de auto-ajuda, que realmente devem ser uma grande ajuda para quem os escreve, fazendo juz ao conceito. Aquela coisa de que pensar positivo atrai coisas boas (e pensar negativo atrai coisas más), por exemplo, a mim parece-me sempre uma bela droga para manter as pessoas estupidificadas na alegria idiota da crença em dias melhores e, ainda por cima, acreditando que têm mesmo o poder de os atrair assim. Acho muito discutível, porque se os dias não forem bons, se houver problemas a resolver, é preciso é espírito lúcido e pragmatismo para consertar o que está mal e então, talvez, conseguir uns dias melhores. Mas é verdade que às vezes parece que as pessoas têm tendência para atrair, ao longo da vida, o mesmo tipo de situações e "sortes". Fatalisticamente, atribuídos ao destino. E é verdade que há males irresolúveis, e cansa muito errar sistematicamente a solução de outros males, ou passar a vida a esbarrar na mesma parede. Não é destino, que não acredito nesse conceito, mas se calhar, se calhar, é defeito de fabrico. É não conseguir deixar de enviar os sinais errados para o mundo e não conseguir deixar de fazer asneira na vida. Essa coisa da responsabilidade funciona para os dois lados – para quem nega que algum ser superior nos controla e que advoga que somos donos do nosso destino, só resta colar a culpa na má gestão do caminho, portanto, em nós mesmos. Shame on me. É a minha lei, que também dá direito a multas e até pena de prisão, que tenho andado a cumprir. Sou dura comigo mesma. Virá, depois, espera-se, a reabilitação.

Um ano, todos os anos

Há um ano, era isto.

Hoje, podia reescrever quase tudo exactamente da mesma forma, de mais outro ano que passou e tenho de enterrar. Mais perto de umas coisas, mais longe de outras, mas ainda a perder nas principais contas de somar. E hoje, não escrevo mais, já não espero ser mais crecida amanhã, e nem sequer vou ver o mar.

Primeiro foi o Ovo, L. dixit

No meio de várias conversas hilariantes, (e o que eu me divirto quando ele usa palavras, que estão correctas, mas são só parecidas com as que fazem sentido - como "doninhas ferrugentas" - com um ar naturalíssimo, sem a mínima noção dos disparates que diz...), o L. hoje resolveu um problema milenar. E usando os porcos de exemplo. Dizia que os porcos nascem de ovos e eu digo-lhe que isso são as aves e as galinhas. Então nascem de onde? Da barriga da mãe-porca. E ela nasce de onde? - pergunta-me com ar de desafio. De outra mãe-porca. E essa? De mais outra, e por aí fora. E então de onde é que nasceu a primeira de todas as porcas? - pergunta com ar de quem me vai apanhar na curva (e mal ele sabe como, sarcasticamente, me passa outra resposta pela cabeça). Ele nem tem 5 anos ainda, por isso não posso ser muito científica, também não sou crente para lhe vender o Livro de Génesis, e então digo-lhe que isso é uma coisa que ninguém sabe ao certo, mas que o mundo foi crescendo e os animais foram mudando, e antes até eram dinossauros. Ele olha-me de alto ali de baixo, e num tom tipo "elementar, meu caro Watson", responde-me simplesmente: então... o primeiro tem de ter nascido de um ovo. Não gostou da minha gargalhada, voltou costas e foi brincar. Para ele, não há mistério nenhum: primeiro foi o ovo... 

Centrifugada


Há uns dias, já faz semanas, escrevi que me sentia na máquina de lavar. E ao responder a alguém que me olhava de fora e me relatava as voltas de pernas, braços, olhos e por aí fora em género de "tela cubista", dizia que a minha perspectiva, de dentro do óculo da máquina, era mais a do mundo a rodar, ora fazendo sentido, ora de pernas para o ar. E assim tenho continuado, cada dia - cada volta, às vezes várias no mesmo dia. Acho que já entrei mesmo na fase da centrifugação, e ninguém pára a porcaria da máquina. Ainda não me afoguei mas, no fim, não sei se saio disto bem lavada, se completamente amarrotada, ou simplesmente um trapo irreconhecível. Estou cansada disto. Quero tanto viver a vida, andar para a frente, seja lá para o que fôr. Nem me posso enxugar, nem engomar, nem muito menos remendar, enquanto andar nestas voltas malucas, presa dentro desta máquina que não controlo.