Fresh Start

No espaço de uma hora, a minha vida ficou a um passo de se transfigurar profundamente. Nunca tive medo de recomeçar; considero que cada hipótese de recomeço é um privilégio - e deverá sê-lo até ao fim da vida. Nunca me impedi de largar um caminho que não me fazia feliz, mesmo sem saber que caminho faria a seguir e mesmo tendo de lutar arduamente para me voltar a orientar. Mas agora, agora confesso: esta possibilidade que se desenha não é um recomeço, é um novo começo e isso assusta-me. Vem mexer com coisas muito fundamentais em mim e na minha vida, ao mesmo tempo que me traz a esperança de um  futuro melhor - mas com um desafio tremendo envolvido, que não sei se consigo ultrapassar. E dentro de umas semanas terei que saber se é este o caminho que quero seguir, terei de saber se tenho a coragem de começar verdadeiramente do zero, terei de saber como não perder aquilo que não quero largar, e como largar aquilo a que tenho de renunciar. Terei de saber se estou disposta, realmente, a dar-me uma hipótese de renascer e que preço estou disposta a pagar.

Escape

Tenho palavras a navegar ao sabor de uma corrente que não corre para lado nenhum. Palavras que não se conjugam, não se concentram, e andam simplesmente à deriva, dispersas ou suspensas numa espuma sem consistência. Geralmente, escrevo-me para me me entender. Para me reflectir num espelho para onde possa olhar e onde me possa ver. Com contornos que assim reconheço meus, limites visíveis do que me sei, minhas cores e sombras que vejo pelo que projectei. Mas falta-me agora a arte de filtrar esta espuma, falta-me a coragem de juntar os fragmentos, falta-me o espaço para montar o puzzle do que realmente se reflectiria no espelho - e que agora não quero olhar. São muitas as construções a que estes fragmentos pertencem, demasiadas frentes de mim abertas ao mesmo tempo. Deixo-os flutuar, mais um bocadinho, enquanto me recolho na recusa, na segurança do silêncio.

(Há dias em que a vida seria muito mais fácil com uma opção de "press Escape to return to the main screen".)

De ti mesmo

Não te chamo para te conhecer
Eu quero abrir os braços e sentir-te
Como a vela de um barco sente o vento


Não te chamo para te conhecer
Conheço tudo à força de não ser


Peço-te que venhas e me dês
Um pouco de ti mesmo onde eu habite



Sophia de Mello Breyner Andresen


Verdade

Um dia, vou ter de te dizer que o que mais me custa é a mentira ou uma promessa quebrada. Vou ter de te revelar que abomino a primeira e já esgotei a cola para a segunda. Vou ter de arranjar forma de te dizer que prefiro sempre a limpidez da crua verdade, porque não gosto de ilusões, não gosto de enganos, nem de piedade. Gosto de saber com o que conto, gosto de pensar que possúo os elementos para me poder guiar com segurança. Também vou ter de te dizer, de alguma maneira, que prefiro a surpresa de um inesperado à falha do projectado. Vou ter de te explicar que uma mentira me ofende a essência. Insulta-me a inteligência, diminui-me e faz pouco da minha capacidade de resistência. Porque não te iludas tu: eu procuro sempre a verdade, tenho um faro apurado e resisto sempre, por maior que seja o abalo. Vou ter de te explicar, também, que uma promessa é um desenho de futuro que levo a sério e falhá-la é obrigares-me a pôr um pé em falso. E prometo-te: se me fizeres cair, eu levanto-me, mas não contigo. Por isso, não te acobardes nunca com nenhuma das tuas verdades e não me prometas, nunca, o que não irás cumprir. Não perdoo e imponho castigo. Aceito apenas desculpas do que seja inesperado e inevitável, desde que a promessa seja feita com sinceridade, ou - lá está - se não me faltares à verdade. Mas tem em conta, por favor, que eu sou literal com as palavras que uso e oiço e, na minha bitola, tanto vale uma mentirinha piedosa como a falta de prometido amor.

Milimétrica

Esta coisa das fronteiras e limites pessoais é difícil de entender. Lembro-me de como percebi, num repente, há muitos anos atrás, que tinha deixado ultrapassar todos os limites do razoável e quase todos os limites da dignidade. Percebi, depois, que foi acontecendo, numa progressão subreptícia, quase imperceptível a cada milímetro que avançava a linha. Achei espantoso ser possível afastar-me tanto dos limites em que me pensei, sem sequer me aperceber disso, senão num momento de desespero que me trouxe lucidez à visão da geografia que permitira que me definisse. Agora, num novo mapa de mim, vejo que as linhas fronteiriças recuaram bem para trás do que seriam os seus originais limites e apercebo-me, com alguma tristeza, que um milímetro mais me custa uma guerra, porque um milímetro mais é um milímetro menos dos limites a que já cheguei e não quero vislumbrar de novo. A distância é muito maior, mas agora sei o que se esconde por detrás de cada bocadinho que se estende no mapa, sei que cada milésimo torna mais fácil o próximo, e assim sucessivamente até que falemos de centésimos, que também se vão juntando, crescendo as casas decimais, até que estamos soterrados debaixo de muitos metros de porcaria e perdidos a muitos quilómetros de distância do que fomos e de para onde quisemos ir.

Um milímetro para outros, banal e desprezível, traz para mim mais perto o sabor amargo da memória de onde andei, traz presente o susto da treva onde me fechei, explode-me numa angústia de alarmes de que fujo em pânico. É só mais um milímetro - é. Mas é também menos um milímetro. E a minha tolerância tem hoje muito poucos para dispensar. Movo-me num espaço exíguo com fronteiras de pedra. Tornei-me rigorosamente milimétrica.

Supostos

O que custa mais, custa sempre mais, é o não retorno, de qualquer espécie - a rejeição. Cada não retorno diz-nos que não merecemos, não valemos - a pena, o esforço ou a atenção. E se se torna expectável com o tempo, torna-se também inevitável, porque a rejeição passa a ser sentida mais imediata e conclusiva em coisas menores. E quanto menor o seu peso ou relevância, maior a devastação que causa a sua suposta insignificância.

Legado

Nasceu esta semana a V, rebento da minha mana caçula. Ando há dias a pensar o que lhe escrever, mas por muitas palavras e metáforas que congemine, por mais que junte citações de poetas e iluminados, na verdade tenho pouco para lhe dizer. Dou-lhe as boas vindas, desejo-lhe que seja feliz e inteira, e digo-lhe que tem uma sorte imensa em ter os pais maravilhosos que lhe calharam. Prometo-lhe que nunca lhe faltará um abraço, que terá certamente dos seus pais e tantos outros, e seguramente terá sempre de mim. Ela gostou muito do meu colo, sossegou e olhava-me com atenção, seguindo o som da minha voz - talvez tenha percebido já que sou e serei mais um colo quente para ela, uns braços abertos. Enchi-me de ternura ao ver a minha mana feita mãe com tanta alegria e serenidade. Sabia já que seria uma boa mãe, mas vê-lo acontecer, desde a primeira hora, e mesmo sabendo que não tenho crédito no assunto, fez-me ficar ainda mais orgulhosa dela. Tal como há meses, sabemo-nos unidas e afirmantes no amor maior que nos constrói. Mesmo que seja em mensagens fora das horas das visitas, com um "Luv ya little sis" respondido com um "Luv ya back big sis!". E sabemos ambas que esse amor primordial é o legado que devemos - expresso sem medos e sem peneiras - aos nossos filhos.

Tentar, querendo


O esforço que se põe em cada palavra, ou em cada silêncio, em cada acção, ou em cada ausência, é medida da vontade. Tentar é um verbo abrangente, que pode ir de um grau de absoluta inconsequência, como o "atirar barro à parede", a um grau de absoluta demência, como tentar até morrer. Pelo meio, há muitos pontos de fuga, oportunidades de desistência, e é o ponto em que se baixa os braços que diz qual é realmente a vontade, mais do que a capacidade de resistência. Porque, em certas coisas, realmente querer é poder. Pelo menos, é poder tentar: tentar uma e outra vez, tentar mais e melhor, deixar clara a medida da vontade na expressão de verdadeira tenacidade. Porque, por vezes, é preciso mesmo clarificar essa medida de vontade para que se sustente uma outra, para que se possam ambas unir e, tentando, querendo, acabar por conseguir.  

Tomara




"(..) Tomara
Que a tristeza lhe convença
Que a saudade não compensa
E que a ausência não dá paz (...)"


Vinícius de Morais

Aos céus



Pedi aos céus e aos Anjos um sinal. Sim, eu acredito em Anjos, embora não acredite propriamente em Deus. E peço-lhes coisas e sinto-os por perto, e por mais do que uma vez já lhes ouvi as asas bater. Há tanto que não entendo, tanto de que desconfio, e tanto em que quero acreditar, que tudo se avoluma numa núvem escura que me enreda o passo. Mas lá vem o sinal que pedi, desta vez num remate em francês. Nunca pensei possível uma história assim, a escrever-se, a materializar-se pelas palavras, em tantas línguas diferentes. Mas o certo é que, também, achei impossível crescer a história com tão diversa geografia e ainda não entendo como se escreve uma história com mais perguntas que respostas. Mas escreve-se. Diz que vêm a caminho mais umas palavras, mais um selo de outra cidade; espero que respondam mais do que questionem - inclusive ao que está para trás. Mas, sobretudo, espero que tragam afirmações que não tenham de dar trabalho aos Anjos, na forma de sinais e premonições. Porque se continuam a somar-se sentidos dúbios e pontos de interrogação, nem os Anjos terão paciência para me aturar, e só me restará mesmo bradar aos céus - enquanto escrevo uma triste conclusão. Que, para já, gostaria de adiar.

* Foto minha

Lugar


Hoje queria estar noutro lugar. Queria mesmo. E um lugar é tanto mais que países, cidades e casas. Um lugar é também momentos, sentimentos, ou um bater de asas.

Um dia que são muitos dias

Já foi há dois dias e não escrevi nada a assinalar o dia. Não o assinalei, também. Teve sessão de cinema para o miúdo mas, no fundo, o dia foi dele, não meu. Só ontem o assinalamos, com a festinha no colégio, que me custou o verniz das unhas pelo meio de colagens e pinturas. Mas valeu a pena. O melhor presente que me deu foi o orgulho com que me recebeu. Assim que me viu chegar, veio colar-se literalmente a mim e chamava os amigos dizendo, cheio de orgulho mesmo, "é a minha mãe!". Tive noção ontem, pela primeira vez, do olhar embevecido do meu filho por mim. Não será de grande modéstia - admito, mas o facto é que me soube muito bem, e também me encheu de orgulho. Verdade: eu olho assim para ele também. Talvez ele me ache tão boa mãe quanto eu o acho um bom filho. Talvez ele me faça tão boa mãe quanto eu o faço um bom filho. Talvez, simplesmente, possamos apenas ser mãe e filho a fazer juntos um mesmo percurso. 

Pelo contrário, na qualidade de filha, fui pouco generosa. Não é bonito? Não será. Mas nem um telefonema fiz. E sei que não lhe devolvo o olhar embevecido e orgulhoso que recebo do meu filho. Mas sei tão bem o porquê. Não se pode ser filha de quem não é mãe, nem devolver carinho e orgulho a quem não no-los tem.