Falta o dicionário

Não sei o que define o amor. Ocorrem-me as imagens daqueles cromos com bonequinhos de há muitos anos que diziam “amor é...”, e depois uma variedade imensa de exemplos. Qual é a fórmula, não a mágica, mas mais assim a composição química? Ou será a morfologia mais relevante, importando definir primeiro se é animal se é vegetal?

Amor é... bicho ou semente? Destruição ou construção? Altruísmo ou egoísmo? Felicidade ou sofrimento? Corpo ou alma? Química ou física? Ou tudo junto, numa soma impossível de opostos e contraditórios?

Amor é... uma agonia, como diz Vinícius. Que acrescenta “Vem de noite, vai de dia / É uma alegria / E de repente / Uma vontade de chorar".

É. Também. Uma agonia de perguntas sem resposta, uma agonia de fome que se instala, que dá vontade de tragar o mundo. Uma agonia de procura de momentos perfeitos de cromo para preencher a caderneta. Uma agonia de saber que nunca será realmente perfeito, que nunca se acabará a caderneta. Uma agonia de medo de errar, ou do engano. Uma agonia de medo de perder. Uma agonia de algo estranho que nos cresce por dentro do peito, por debaixo da pele, que não se vê nem se pode arrancar. Uma agonia de não se controlar. Uma agonia de alegria e de vontade de chorar. Uma agonia de não saber que definição lhe dar.

À falta de definição, de entendimento, pergunto-me como saberá alguém com absoluta certeza tê-lo encontrado e como saberá resolver os enigmas, e viver sem ser agoniado.

Perfeito



Não são perfeitas as horas. Hoje. Porque não são perfeitas as esperas. Não são perfeitos os sorrisos. Hoje. Porque não são perfeitas as saudades.

São perfeitas as memórias. Porque foram perfeitas as horas. Ontem. São perfeitos os sonhos. Porque foram perfeitos os sorrisos. Ontem.

É perfeito o passado, e o futuro. Mas hoje, presente, queria ver os teus olhos sem ter de fechar os meus. Sem os recordar do passado ou imaginar no futuro. Ainda que perfeitos.

Custa-me a tua ausência ainda mais por te ter por dentro. Pertences aqui, sem conjuntivos ou condicionais. A conjugar comigo verbos e tempos perfeitos em indicativos de certeza e imperativos de convite, ordem, pedido. A cada dia. Nós amámos. Ontem. Nós amamos. Hoje. Amemos, sempre!

Mas sim, concordo. É perfeito. Cada aqui e agora, o que conjugamos é verbo perfeito.

Sopros



Há momentos que não se completam por faltar uma pequena coisa qualquer. Há momentos que podiam ser felizes mas, de uma forma quase turtuosa, são tristes pela alegria que queremos partilhar nos fazer sentir, ainda mais, a falta do alguém com quem queríamos partilhá-la.

Há momentos em que a alegria que se vê por fora em sorrisos é por dentro também um aperto, um nózinho. A sentir uma falta, uma ausência que se desenha ali ao lado, como o espectro de um fantasma.

E nesses momentos, em instantes quase mágicos, as sombras podem tornar-se quase palpáveis. Estranha coisa essa que põe um ausente ali ao lado. Presente sem toque nem voz, mas presente. E ausente, com cheiro, mas ausente. Como um sopro, a passar por dentro de mim.

"She" is running, not me




Not running... And not staying still.

Uma história que dá que pensar



"Um professor, diante da sua turma de filosofia, sem dizer uma palavra, pegou num frasco grande e vazio e começou a enchê-lo com bolas de golfe. A seguir perguntou aos estudantes se o frasco estava cheio. Todos estiveram de acordo em dizer que 'sim'.

O professor pegou então numa caixa de fósforos e vazou-a para dentro do frasco. Os fósforos preencheram os espaços vazios entre as bolas de golfe. O professor voltou a perguntar aos alunos se o frasco estava cheio, e eles voltaram a responder que 'Sim'.

A seguir, o professor pegou uma caixa de areia e vazou-a para dentro do frasco. Obviamente que a areia preencheu todos os espaços vazios e o professor questionou novamente se o frasco estava cheio. Os alunos responderam-lhe com um 'Sim' retumbante.

O professor em seguida adicionou duas chávenas de café ao conteúdo do frasco e preencheu todos os espaços vazios entre a areia.

Os estudantes riram-se.

Quando os risos terminaram, o professor comentou: 'Quero que percebam que este frasco é a vida. As bolas de golfe são as coisas importantes, a família, os filhos, a saúde, a alegria, os amigos, as coisas que vos apaixonam. São coisas que mesmo que perdessemos tudo o resto, a nossa vida ainda estaria cheia. Os fósforos são outras coisas importantes, como o trabalho, a casa, o carro etc. A areia é tudo o resto, as pequenas coisas. Se primeiro colocarmos a areia no frasco, não haverá espaço para os fósforos, nem para as bolas de golfe. O mesmo ocorre com a vida. Se gastamos todo o nosso tempo e energia nas coisas pequenas, nunca teremos lugar para as coisas que realmente são importantes. Prestem atenção às coisas que realmente importam. Estabeleçam as vossas prioridades, e o resto é só areia'.

Um dos estudantes perguntou: 'Então e o que representa o café?'

O professor sorriu e disse: 'Ainda bem que perguntas! Isso é só para vos mostrar que, por mais ocupada que a vossa vida possa parecer, há sempre lugar para tomar um café com um amigo'."


Dá que pensar no que são as nossas bolas de golfe e os fósforos, e onde deixamos entrar demasiada areia. Dos cafés, dá também que pensar porque não haverá sempre lugar para eles, na nossa vida mas também na dos outros.

Sabor a Paz



Já respiro. Bebi a tranquilidade de que precisava com sabor de um sumo de ananás e hortelã. Sosseguei-me. Um olhar e um sorriso entre as minhas mãos inundaram-me de luz, que se espraiou por dentro numa sensação de água morna. Calmas certezas. Pacífico fechar de olhos. Silêncio bom de dentro. O sabor do sumo condiz.

Peço


Acho que nunca deixarei completamente a minha concha, essa que dizes sentir, que dizes saber sem saber porquê. Pedes-me que ponha tudo isso de mim, de dentro de mim, em palavras. Que te ofereça explicados todos os meus insondáveis. Não posso. Não sei fazê-lo. Nem para mim consigo verbalizar tudo o que me enche. Chego perto, por vezes, a escrever, num processo quase insconsciente em que acabo por soltar palavras directas da alma. Mas do muito que te vou dando, do muito que vais entrando, vai-me ficando também o medo.

Não quero erguer esses véus que às vezes dizes sentir em mim propositadamente opacos. Não quero, mas sei que eles surgem em momentos de fraqueza. Passei a vida toda a aprender a fazer esses véus opacos, para me proteger. Passei muitos dolorosos momentos a expulsar intrusos da minha concha, que lutei para deixar de amar, para arrancar de mim. Tenho medo por tanto mais que condiciona a nossa história e por isto também – por mim. Nos momentos de ausência que alimentam a dúvida e agigantam a espera, nas tuas palavras e nos teus gestos que de alguma forma alimentam a insegurança, instintivamente quero fechar a concha, pôr-me a salvo. Porque me sinto tanto mais frágil quanto mais estás dentro de mim. Restam-me ainda, por agora, apenas os véus opacos.

Dizes que às vezes duvidas que sinta por ti o mesmo que sentes por mim, que sentes que não te quero deixar entrar. Mas entende: já entraste. Nem sei como te encontro aqui assim, quase de repente, um intruso estranhamente familiar, confortavelmente instalado. E ao sentir-te tão dentro assusto-me. Conheço-me, sei que sou a minha pior inimiga, a tendência é fugir.

Não quero fugir, não quero expulsar-te, não quero deixar-me vencer pelas contrariedades nem pelas agruras do caminho e do futuro adiado, nem quero impedir-me de viver pelo medo de sofrer. Estou a aprender, e a deixar-te entrar, e a levantar os véus. Devagarinho, às vezes a tremer de coragem, a reunir todas as minhas forças de acreditar para fazer durar todos os momentos de presente iluminado. Mas a lutar contra mim própria, entende. Por isso, por isso te peço: desvenda o insondável sem palavras minhas, levanta os véus à medida que se vão pondo transparentes, e dá-me a mão, ajuda-me, não me deixes fugir.

Raíz



"Tu eras também uma pequena folha que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.
A princípio não te vi: não soube que ias comigo,
até que as tuas raízes atravessaram o meu peito,
Se uniram aos fios do meu sangue,
Falaram pela minha boca, floresceram comigo."

Pablo Neruda

Caminho do fim



Faz-me uma cara de espanto e clama “olha!”, repetidas vezes, enquanto parece querer absorver-me com os olhos. Não consegue dizer mais nenhuma palavra, mas repete o “olha!” de tantas maneiras diferentes, passando da surpresa e do contentamente à comoção de um timbre mais baixo e lento, que me comove a mim também.

Passo com ela uma manhã, tratando-a como se fosse uma criança. Que anda devagarinho e com apoios porque pode cair, que não consegue segurar em nada que pese mais do que umas quinhentas gramas, que não consegue vestir-se sozinha, quase não consegue comer sozinha, e nem sequer consegue articular as palavras que permitam estabelecer a sua vontade. Penteio-lhe os cabelos já todos brancos, mas muito macios, e ela fecha os olhos em frente ao espelho. Ponho-lhe os ganchos com cuidado, que sei que é frágil e duvido da minha competência, tenho medo de a magoar. Depois pergunto-lhe se ficou bem, e ela olha-se e diz com um sorriso “ena!”. E “ena!” repete-se também um número de vezes em diferentes entoações.

Não me larga as mãos das suas, muito magras e quase tranparentes, que evito olhar porque me ofende ver-lhe os ossos e as veias, e a vida a fugir dali. Olha-me para dentro dos olhos, com os seus lindos olhos verdes raiados de azul, que parecem ser a única coisa que não envelhece. À sua maneira, com o pouco que consegue articular, vai-me perguntando pelo meu filho. Lembra-se do abraço que ele lhe deu no Natal, sabe o nome dele mas não consegue dar-lhe a volta na boca. Franze a testa enrugada, contorce a expressão e fecha os olhos num misto de frustração, zanga e tristeza, a cada palavra que quer dizer e não consegue. E eu tenho de lhe dizer que não faz mal, já se lembra e diz-me mais tarde, devagarinho avó, com calma.

Saio de lá sem conseguir almoçar, um nó no estômago. Doi-me a cara de tanto me forçar sorrisos para disfarçar. Invade-me uma tristeza e uma revolta, e sinto o peso da culpa. De facto, não sei lidar com isto, com a morte a chegar, a comer aos poucos os corpos e as palavras dos que amo. Devia ser mais forte, devia saber vesti-la sem me chocar com o corpo definhado, devia aceitar que o braço direito já não mexe e ficar feliz porque ainda mexe o esquerdo, devia contentar-me com as palavras que ainda me consegue dizer e ler o resto no olhar. Mas não consigo, estrangula-me, agonia-me, numa recusa mista da realidade dela hoje e do que pode ser o meu próprio destino. Percebo que já encerrei dela as memórias que quero manter de quando “era uma senhora tão alta”, como diz tristemente a empregada que me vem render e apoia suavemente o braço daquela senhora agora tão pequenina, curvada, mirrada.

Pergunto-me como não enlouqueceu ainda, sabendo que a cabeça ainda funciona perfeitamente, entende tudo, ouve muito bem, reage com a expressão ou com o riso com todo o entendimento do que se lhe diz, mas perdeu a capacidade de falar. Tem as palavras na boca e não as consegue articular. Que sofrimento há de ser. Fico a pensar que tantas vezes calo as minhas palavras de dentro, e o que daria ela por poder fazer-se ouvir. Diz-me que lhe faz impressão olhar para os meus olhos. Mas não consegue explicar porquê. Faz apenas um sorriso triste, mexe em tudo o que pode à volta dela, mas não me larga as mãos nem desvia os olhos, e eu fico sem saber que me viu ela no olhar, que memória ou identificação lhe terá cruzado o pensamento e ficado presa na garganta. Na minha ficaram as lágrimas, que me faltou chorar. As lágrimas que lhe devo no dia em que não a puder mais olhar, mas puder vê-la como a quero recordar.

Gula



Um bom-bom ou um rebuçado são o exemplo perfeito para certos momentos. O segurar nas mãos um lindo e pequenino embulho, que se abre com cuidado - que o papel é delicado. Na antecipação do que contem, de que se sente vontade, mais a cada voltinha que se desfaz nas pontas enroladas. Dentro, um momento feliz em miniatura, que se deixa derreter na boca, num doce prazer, num saciar da vontade.

Há momentos que vêm assim embrulhados e assim se degustam. Momentos como certos beijos. Perfumados de framboesa, doces como chocolate. E apetece sempre mais um.

Sonho



Não me acordes. Deixa-me ficar aqui, assim, quieta. Não me despertes o pensamento. Deixa-me ficar lá, no reino dos sentidos, dos etéreos, do tempo sem nexo. Lá, onde escorres por mim, pelos meus caminhos, onde escorro por ti, mãos nas mãos.

Não me faças abrir os olhos. Não quero ver o sol que desponta, nem as núvens no céu. Quero recordar a luz de prata que se derramava na pele despida. Não quero olhar-te os olhos. Quero vêr por dentro das pálpebras o teu sorriso, quero sentir na pele o arrepio que me desenhas.

Shiuuu. Não fales. Deixa-me deslizar neste silêncio, nesta música que me embala numa sinfonia de acordes sem som. Não quero ouvir as tuas palavras. Quero ouvir-te no abraço dos corpos e guardar-te a alma entrelaçada na minha.

Não me acordes. Lá onde estou estás comigo por inteiro e é assim que te quero, sempre. Acordo quando aqui te puder encontrar da mesma forma, no mesmo equilíbrio, na mesma harmonia, no mesmo enlace.

O que é que se passa aqui?



Não tenho escrito aqui e tinha vontade de não escrever mais. Pensei seriamente em criar um novo espaço. Levou o seu tempo a assentar a poeira mas agora é menos confuso e decidi-me voltar. Preciso tanto de escrever. E este é mesmo o meu espaço.

O ano começou bem para mim. Estou a pisar novos caminhos ainda um pouco insegura, e muitos trilhos ao mesmo tempo. Mas entusiasmada com as várias perspectivas. O meu filho também está bem, de volta em semana de mãe, cheio de mimo e saudades. E eu dele, apesar dos desesperos do costume...

Tenho novos desafios profissionais aliciantes e tenho ocupado parte do meu tempo a aprender e a sentir as coisas para me decidir. Tem corrido muito bem, em vários aspectos, tem-me feito um bem enorme, não só o ocupar-me de forma diferente, mas também o desafio de aprender e experimentar coisas novas.

No plano afectivo, muita coisa aconteceu nos últimos tempos, e muita coisa mais de trás de repente começou a encaixar-se, a cimentar-se, aos poucos. Sabe-me bem a vida assim, sabe-me bem o desafio e esta estranha sensação de destino, de certezas quase absurda desde o primeiro momento. Dá-me uma paz enorme a partilha de momentos inesquecíveis, os abraços, os silêncios entendidos de parte a parte, encaixados com toda a naturalidade e fluidez em conversas profundas. Arrepia-me a intensidade do que tem sido, e do que sinto que está para vir. Embala-me e adormece-me tranquila, acorda-me leve e bem disposta. É quase como uma magia, ou algo muito próximo pela banda dos ocultos, tal a estranheza de coincidências e compatibilidades, situações e empatias.

Talvez se pegue, não sei, ou talvez também seja pelos projectos e novas experiências profissionais. Mas o certo é que me sinto cheia de uma energia imensamente positiva, sinto-me de facto feliz, e também sinto imensa vontade de acreditar, de ter fé, na vida em todos os sentidos. É verdade que tenho também a correr nas veias a adrenalina dos perigos que sinto, e os meus medos atávicos à espreita, sei bem. Mas por agora, tenho os medos açaimados e a adrenalina da sensação de perigo não me pôs a fugir - estou apenas alerta, muito alerta, mas a adorar cada passinho de conquista, e a apreciar cada momento feliz que me ilumina e que arquivo, em película de um filme que se vai desenrolando docemente, suavemente, um argumento que flui fazendo as peças encaixarem-se uma a uma nos seus devidos lugares.