Lusco-fusco


Passam 2 minutos das 6 da tarde e há uma réstia de luz na janela. E eu fiquei feliz com esta simples constatação. Faz-me tanta, mas tanta falta - a luz. Ainda vou fazer o caminho de volta para casa às escuras, mas já é uma esperança de dias mais luminosos em breve. Ando a procurar os meus crepúsculos também, na busca dos farrapos da esperança que me levem a dias melhores, dias quentes e luminosos, dias de “it’s fun being me”, que agora os dias são meras sucessões de horas, carregadas de sisudas tarefas. E as noites são longas sucessões de minutos, carregados da angústia de não lhes encontrar descanso ou sossego. Os crepúsculos que vislumbro, por agora, parecem mais lusco-fuscos, o que não é nada a mesma coisa, ainda que tendo igual definição, e me lembra sempre "pardo", conceito que associo a algo muito próximo de vazio. Vazio de sentido, de cor e razão.

(E parece impossível que, de um momento de felicidade, consiga chegar em poucas linhas ao vazio. Cura, preciso de cura. Rapidamente. Tenho de agarrar todas as pequenas esperanças com força.) 

Sky High & Low


Num décimo terceiro andar em Lisboa, minha cidade. Foto minha, sim senhor, e dentro dela, de alguma forma estranha, parece que ficaram, plasmados, os pesos que subiram comigo no elevador, e que encontraram eco ou reflexo algures, talvez na bruma do rio ao fundo, que está lá, mas não se vê. Hoje devia subir de novo esse elevador, e deixar lá em cima, ou lá longe, os pesos que não descolam do meu chão. Por isso, numa outra cidade que não é a minha, vou ali tentar descolar numa falésia junto ao mar.

Inevitáveis Cacos





Longe e nítidos caminham os caminhos
Duma aventura perdida.
Próxima a brisa
Abre-se no ar.


É o azul e o verde e o fresco duma idade
Morta mas que regressa
Com os seus claros cavalos de cristal
Que se vão esbarrar no horizonte.






Sophia de Mello Breyner Andresen 

Graças

Ao longo da última semana, não sei por que artes de magia ou felizes coincidências, pude ver porque é que, um dia lá atrás, gostei de duas pessoas de que havia perdido a razão de ter tido na minha vida. De duas formas muito diferentes, e sendo também duas situações bem distintas, guardava destas duas pessoas apenas a marca do fim, apenas as dores, apenas o que de mais feio revelaram de si.

Uma delas já não está na minha vida, e dessa recordei, nos escritos que reencontrei e reli, a doçura de palavras e sentimentos, a cronologia da linda história que vivi. Ali estava, à minha frente, o porquê do que senti, o melhor do que lhe conheci. E soube-me bem; e espero conseguir guardar por muito tempo essa doçura e razão, e reinvocá-las quando relembrar o resto da história menos feliz.

No outro caso, é alguém que, por razões diversas, tive de manter na minha vida, mas que tem perpetuado, parece que propositadamente, os comportamentos e a postura que revelam de si exactamente as razões pelas quais me afastei. E de repente, surge do nada e dá-me uma ajuda que não me deve, e fá-lo de uma forma generosa e carinhosa, que também me soube muito bem. E surpreende-me, ao mesmo tempo que me faz recordar que era assim que o conhecia, e era por isso que gostava dele, era essa a tal razão.

Foi uma semana complicada, a vários níveis, mas também foi muito positiva. Foi positivo constatar que não foi tudo erro, que há bom e bonito mesmo no que acaba mais feio, e que podemos sempre resgatar as coisas boas de alguém, ou reencontrá-las num resgate próprio. Naturalmente, tenho também as minhas alternâncias nas memórias que deixei.

Por outro lado, não há dúvida que na adversidade se provam algumas coisas de forma irrefutável, e esta semana dou graças também por mais uma prova de amizade que se repetiu. Há quem tenha na minha vida, de forma muito presente, com razões de ser perfeitamente claras e óbvias. E dou graças por amanhã ser um novo dia, uma nova semana a começar, e por estar mais atenta a que graças tenho para dar.   

Legítimo


"Mas nem sempre é necessário tornar-se forte.
Temos que respeitar nossas fraquezas.
Então, são lágrimas suaves, de uma tristeza
legítima à qual temos direito.
Elas correm devagar e quando passam pelos
lábios sente-se aquele gosto pouco salgado,
produto de nossa dor mais profunda.”


Clarice Lispector

(Re)descoberta


Redescobri que gosto de côco. Uma delícia. Sei que há mais de mim para redescobrir. O problema maior é que, para (re)descobrir, é preciso (re)experimentar.

Horizonte


Nada me pacifica mais do que o mar. A cor, o som, o cheiro, e a linha indefinida com que, ao longe, transforma a eterna e inconciliável distância entre a terra e o céu num quase nada. É uma das ilusões mais bonitas, e mais inócuas, esse vislumbre de abraço impossível do mar. De certa forma, conforta-me pelos abraços que me estão negados, por impossíveis distâncias. E ajuda-me a olhar as linhas de horizonte que não alcanço.


* Foto minha, de um momento de merecida pausa

Ser


Apetece-me viajar. Abrir as portas do mundo e andar: percorrer novos caminhos, perscrutar o céu visto de outro hemisfério e não me guiar pela estrela polar. Apetece-me sentir o vento de sul, ver um pôr-do-sol matinal e perder-me numa estrangeira fonética musical. E não é fuga, minha velha artimanha para sobreviver – é vontade de renascer. É vontade de caminhar, de arriscar e até de me perder. Vontade de me largar no mundo ao som de uma nova canção, de abrir as portas, abrir o coração. Apetece-me ir, apetece-me ser.

Wish I was the Cat...

... must be fun to be the Cat.

* A foto é minha

Poético timing

Para mim, poesia é um esboço em letras ou palavras, um desenho subtil de algo que cada um completa à semelhança da sua imagem, do seu arquétipo, ou dos sentires que correm nas veias a cada instante. É por isso que gosto de poesia e é por isso que retiro diferentes sensações, e diferentes entendimentos, de um mesmo poema lido ou revisitado em alturas diferentes da vida, em estádios diferentes do meu ser.

Temos um ouvido selectivo, porque somos sensíveis a coisas distintas consoante o momento que vivemos ou a experiência que acumulamos e que nos faz ser o que somos a cada instante. Mas sabemos que, pelo menos, também é um ouvido atento, que nos leva a procurar por aí respostas - ou alimento - para as dúvidas - ou fomes - que vamos tendo, quando ouvimos, retendo, palavras que projectam um esboço, palavras simples que sabem como poesia.

"Is it fun being you?", ouvido por acaso, numa Fox qualquer em que passava, vista de esguelha, em zapping e já entre bocejos, uma série qualquer que não costumo ver, pôs-me a pensar nisto (e mais umas quantas coisas). É poética a questão: só umas palavras para alguns, até talvez para mim própria em outros momentos, mas que me impactou, nesta particular encruzilhada do tempo em que me encontro, num esboço vago ainda, mas numa figura de que estou a completar o desenho - e que no fim me desenha. É tudo uma questão de timing. Às vezes, é perfeito - é poético.  

Balbúrdia

E sabes? Os olhos dos que nos amam, inteiros, completos na soma de defeitos e virtudes, são um bocadinho o espelho da nossa alma. Mas deixamos reflectir tudo? Nem sempre. Ainda assim, espelhamo-nos aí. E custa quando perdemos esse olhar que nos devolveu um bonito reflexo um dia, que nos fez olhar para nós como uma pessoa melhor. Mas custa ainda mais perceber, nos olhos dos que nos amam, e que nós amamos, o nosso reflexo na forma de uma figura menor.  Quem disse que é suposto gostar do que se vê e espelha de alguém que amamos? Não queremos sinceridade e frontalidade, sobretudo quando estamos menos bem, quando estamos errados, quando somos menores, e sobretudo daqueles que nos querem bem? Sim, mas… Também há qualquer coisa que nos faz crêr, e querer, que quem nos ama vê sempre o melhor de nós. Coisa complicada. Porque quando não vê o nosso melhor, questionamos se é porque não somos melhores, antes de pensarmos em miopias.  E se só vê os nossos melhores ângulos, também sabemos que não sabe de nós a metade. Não vê, assim, essa soma completa. Mas nós temos que nos somar à mesma. Sim... E noves fora: nada.

Vento

Olho para dentro de mim, pelo que vazei em tempos idos. Escuto-me, nas palavras que larguei e que agora me varrem, como um vento que entra pela janela, que desarruma a casa, espalha as ideias, papel, que esvoaçam e assentam, cansadas, nos mais insólitos lugares. Espanto-me de mim própria. Espanto-me de não ser eu própria. Pergunto-me para onde deixei fugir aquela voz, onde esqueci aquele léxico que me permitia ser tão completa em linhas que me alimentavam, fazendo-me mais nítida e certa dos passos que dava e mais segura dos passos que não queria dar. Arrepio-me com esta corrente de ar que me despojou do ser que não sou, trazendo-me friamente àquilo que sou e de que ando a fugir. Para a frente, sempre para a frente. Mas em fuga. Acreditar também é fugir, quanto mais não seja, da realidade. Abro os olhos e vejo claramente que estou no mesmo lugar, voltei ao ponto de partida, com o peso da evidência irrefutável. Não adiantou de nada tanta luta, tanto esforço, tanto empenho, em tantas frentes diferentes. Mais prova, menos batalha, mais desilusão, menos mágoa, no fim fica o mesmo gosto acre, o mesmo toque frio do destino, a impor o seu cunho cruel, sorvendo os restos da fé. Fé - que ingenuidade. Baixo os braços cansada, descrente, desencantada. Talvez adormeça. E acorde mais certa do que sou, mais segura de para onde vou, mesmo que não seja para o destino que me desenhei, e em que acreditei.

Popular



Não há ausentes sem culpas, nem presentes sem desculpas.

Linhas Cruzadas



Reajo a esse incomodo olhar
Nem quero acreditar
Que vem na minha direção
Há dias que estou a reparar
Nem queres disfarçar
Roubas a minha atenção
Aprecio o teu dom de tornar
Num clique o meu falar
Em total confusão
Confesso que só de imaginar
Que te vou encontrar
Me sobe à boca o coração

(Refrão)
E falas de ti
E falas do tempo
Prolongas o momento
De um simples cumprimentar
Falas do dia
Falas da noite
Nem sei que responda
Perdido no teu olhar

É certo que sempre ouvi dizer
Que do querer ao fazer
Vai um enorme esticão
Mas haverá quem possa negar
Que querer é poder
E o nunca é uma invenção
Bem sei que este nosso cruzar
Pode até nem passar
De um capricho sem valor
Mas porque raio hei-de evitar
Se esse teu ar
Me trouxe ao sangue calor

(Refrão)

Cronómetro

Diz que faço “lutos tão difíceis”. Porque guardo o sal da dor o mais que posso, que aguento. E ando demasiado tempo a remendar o dique que imponho à alma, de cada vez que uma fuga me leva a dor aos olhos. Talvez. Sim, talvez seja mais difícil assim, que assim se prolonga a dor no tempo, atrás do dique que, por vezes, explode violenta e devastadoramente, e outras vezes fossiliza-se encapsulando a dor. Ou talvez não, que assim se calhar dói mais tempo, mas menos de cada vez.

Um dia falaram-me no conceito de cronometrar a dor, deixar doer tudo o que tem a doer, mas com um prazo, um tempo certo. Porque, diz, é preciso dar tempo à dor, mas é também preciso limitar-lhe o tempo. Mas quem sou eu para definir quanto tempo é o tempo certo para que doa tudo de uma vez? Impor um prazo a esse tempo não significa, também, remendar o dique ao toque do cronómetro? E se posso fazer stop ao relógio, nem sempre posso fazer stop à dor.

Há dores que só se podem mesmo gerir assim, como eu faço quase sempre – aos poucos, quando foge, ou quando a deixo soltar-se um bocadinho. A única coisa que entretanto aprendi é que, mesmo que aos poucos, é preciso ir largando, e não deixar encapsular. E assim, um dia, pode-se destruir o dique sem a invasão devastadora da água. Que o nível vai baixando aos poucos, não só pelo tempo que passa, mas pelos tempos em que deixamos escoar – um bocadinho de cada vez. Esses bocadinhos - sim, esses talvez-, cronometrados pelo limite do que se suporta a um momento. E quando já não é preciso cronómetro, então é porque é já pacífico que o residual que ficou, que fica sempre, é apenas uma marca do tempo.

Overlap

Mas depois, somos invariavelmente enganados por nós próprios. Porque quando largamos alguém, também largamos uma coisa. Largamos a pessoa e achamos que, com ela, temos de largar a felicidade. E é difícil perceber que se pode deixar ir alguém, aceitar o fim de uma história, sem termos de nos resignar com o fim da vida como desejamos que fosse. De certa forma, a associação do nosso conceito de felicidade a alguém específico, com quem se foi feliz, leva-nos a acreditar que não o voltaremos a ser. Não nos passa pela cabeça que possa haver outro alguém, um dia, com quem possamos ser felizes de novo. E porque a condição humana nos leva, forçosamente, a procurar a felicidade, enquanto não dissociamos a pessoa da sensação que nos proporcionou, vivemos simultaneamente a aceitação e a tentativa de resignação a algo que não podemos suportar. Consequentemente, mantemo-nos ainda num patamar doloroso. Sofremos pela perda de um ideal, pela falta de felicidade, mesmo que não doa já, na verdade (por vezes não apreendida ou reconhecida), a falta de alguém em concreto.  

Let Go

"According to Elisabeth Kübler-Ross, when we're dying or have suffered a catastrophic loss, we all move through five distinct stages of grief. We go into denial because the loss is so unthinkable we can’t imagine it’s true. We become angry with everyone, angry with survivors, angry with ourselves. Then we bargain. We beg. We plead. We offer everything we have, we offer our souls in exchange for just one more day. When the bargaining has failed and the anger is too hard to maintain, we fall into depression, despair, until finally we have to accept that we’ve done everything we can. We let go. We let go and move into acceptance."

O busílis da questão é que cada um destes patamares pode durar de um minuto, a uma vida. E nem sempre é muito clara a passagem de um patamar para o outro. A mais difícil é entre os dois último estágios - depressão e aceitação. Porque, por vezes, no estado de desespero e depressão, achamos que já deixamos ir, não nos maçem, que estamos a sofrer por isso mesmo, a sofrer de resignação, e isso é normal, e isso é o fim. Mas não. Se sofremos ainda, então, ainda não largamos.

Resignação não é aceitação. Aceitar verdadeiramente não daz doer.

Idiossincrasias

Tanta coisa importante em que pensar, tanta coisa importante para os próximos dois dias, que são dois dias de mais desafios profissionais, do tão esperado "go live" do trabalho dos últimos 8 meses, toda doente e toda coitada, mas que hei de ultrapassar, que hoje não houve como fugir do médico e aceitar o antibiótico, e tanto que preciso de descansar, e não consigo ir dormir, porque não estou capaz de escolher o que vou vestir  amanhã. Ainda por cima, chove. Alminha minha, como é que vais dar conta dos próximos dois dias, e enfrentar aquela gente toda horas a fio, e parecer minimamente inteligente, e soar razoavelmente coerente, se a tua cabeça não consegue sequer decidir se é um fato, se é um vestido, muito menos qual, e ainda menos por que razão? Pois... Por isso mesmo. Tem de ser especialmente bem escolhido para compensar. Nem acredito que pensei e escrevi isto! Mas lá que é verdade... Bem, mais 10 minutos de contemplação e decido, que tenho de acabar com este stress.

O médico encheu-me drogas (Aleluia!) mas parece-me que se esqueceu do Xanax.

How am I doing?...


Clear enough??
Se calhar não. Aqui vai:

Frio, calor - febre.
Espirros, ranho - assoar.
Dores de cabeça, garganta, ouvidos, pelo corpo fora.
Tosse. E medicamentos.
Apresentação por fazer para reunião de amanhã.
Chefe a ligar. E a ligar. E a ligar.
Wireless a não funcionar no quarto.
Bugger.

Cai o webmail. Uma e outra vez.
Mas vai a presentação - em inglês.
Frio, calor, febre.
Espirros, ranho, assoar.
Dores, tosse e mais medicamentos.
Chefe liga - again - em português sff.
Rats.

Tradução completa, em esforço.
Olhos ardem já por esta altura.
Internet? Nicles. Cai e cai.
Restaura-se internet, mas webmail não entra.
Vai por Gmail, telefonemas para e do escritório.
Mais mails do chefe.
Febre, espirros, ranho, dores e tosse.
Overdose de medicamentos.
Reunião amanhã às 10h00.

F_CK.

Os Eus Refractados

Passa por nós a fora o brilho do que nos vai dentro, refractado pelo que encontra à sua passagem, que varia a velocidade da luz e assim faz variar a cor e a intensidade da luz de dentro, essa autêntica, que não damos a ver a qualquer um. Não, não somos telas, nem tintas, nem cores. Somos luz. E somos brilhos e efeitos de arco-íris resultantes não só do que permitimos, e como permitimos, passar, mas também resultantes da perspectiva de quem olha, da inclinação, da distância, das lentes que os outros põem, e nos impõem.

Somos sempre variações de nós mesmos, muitos Eus assim refractados, por vezes mais puros, por vezes mais baços. Evoluindo para cada um consoante o espelho onde a luz embate e nos é devolvida. Não há nenhum relacionamento imune aos feixes de luz dos outros em nós ao longo do tempo. Não há relacionamento nenhum que não tenha um passado, e que seja imune às lentes e filtros que esse passado vai deixando, de parte a parte. Por isso, não há relacionamento nenhum que não seja recíproco, não no sentido de equitativo retorno, mas no sentido de permanente adequação, quase mímica, em ciclos iluminados ou sombreados.

Pena que, quando se reconhece que se ensombrou a luz, apenas se saiba justificar a falta dela pura em alguém como sua escolha exclusiva. Esquecendo, porventura, que o que filtra a luz é um conjunto de lentes de cada lado, e um acumular de filtros semeados pelos dois lados. Não querendo admitir a própria culpa, que haverá sempre de parte a parte, fica mais fácil relegar esse alguém a uma categoria inferior, e culpá-lo pela escolha de já não passar luz. Mas esses que assim pensam ignoram, porventura, que se refractaram também em momentos menos bons. Escolhem invocar de si apenas os momentos de glória e esplendor luminoso, achados "quanto baste" para corresponder esse alguém, e invocam dele, pelo contrário, apenas os seus momentos de tristes e feios. Esquecem, até, que há sombras que apenas devolvemos, projectadas de tristeza e decepção.

Não é bonito, nem justo, fazer do outro menos, numa auto-exaltação comparativa de cima de um arrogante e egocêntrico pedestal, condensando o outro abaixo, num espelho baço de mentira que se lhe atribui - ao outro, para não se admitir própria, e assim sentir justificado sentenciar o outro ao não merecimento. Esses  preferem ignorar que, na verdade, talvez tenha sido o outro alguém que os viu já espelhados em demasiadas sombras menos favorecedoras, que não lhes reconhece o pedestal, e, em algum momento, esgotou a compreensão e o perdão. Por isso, tornou opaca a sua luz, num respeitoso resguardo - próprio, alheio e do passado mais luminoso, sem querer discutir culpas ou razões, mas que afinal ofende aqueles para quem se apaga. Na cegueira do escuro e da necessidade de auto-validação, esses não reconhecem uma diferença, antes uma inferioridade alheia. E apesar dessa rudeza de princípio, mascarada com tanto artefacto, é ao outro que impõem o rótulo da brutalidade. 

Nenhum relacionamento vive de um sentimento, de uma vontade, ou de uma verdade. Há sempre dois de cada, em dois pólos diferentes, e há uma reacção em cadeia entre todos, sejam os pólos positivos ou negativos, atraindo-se ou repelindo-se. Talvez em ciclos, que podem, a dias, ser positivos, convergentes, confluentes, numa reciprocidade de crescendos, ou o oposto. Mas por muito que todos tenhamos direito a momentos menos felizes, por muito que devamos aos outros a generosidade de lhos perdoar e a humildade de no-los reconhecer, não acredito em meios-termos, meias-tintas, meias-cores. Sem ser maior ou menor, ora jorro o tudo da luz límpida, ora derramo o nada do opaco escuro.  E sim, sou exigente na mesma medida com os outros, mesmo que isso me deixe apelidada de insaciável, ou de desistente.

Os “Tag Along”

Deve haver um nome certo para cada tipo de papel que nos cabe no mapa dos relacionamentos humanos que estabelecemos com o mundo à nossa volta. Recentemente, descobri o nome de um papel específico, que nem sempre é muito fácil de perceber, mas que tem tradução perfeita na expressão “Tag Along”. Esse é o papel daqueles que acompanham um grupo de amigos, não porque sejam também amigos por direito próprio, mas porque alguém os leva, e vai levando. Ao fim de um tempo, é comum os “Tag Along” acharem que ganharam espaço e estatuto próprios no grupo, podendo até acabar por achar que se tornaram amigos, que são parte do grupo. Mas raramente isso acontece realmente, pelo menos com todos os elementos do grupo. Um “Tag Along” é sempre um apêndice, que até pode ser bem vindo, e os outros até podem simpatizar com eles, mas pertencem apenas por via de um cordel de ligação a um elemento específico e, mais tarde ou mais cedo, torna-se claro para os “Tag Along” que não é com eles que o grupo se preocupa, não é com eles que o grupo quer estar. Os “Tag Along” não têm grande utilidade, são apenas acréscimos que não chateiam, toleram-se e ponto final. Mas, tal como os apêndices, quando ganham vida própria e incomodam, eliminam-se, em prol do bem estar geral.

No Supermercado à hora certa

Ela acorda de neura, sem nenhum motivo em particular, e depois de preguiçar bastante, e sem perspectivas de companhia imediata, acaba por decidir ir à lavandaria do centro comercial, pelo que aproveita e trata do supermercado logo por ali, apesar de geralmente preferir ir a outro lado. Ela percorre os corredores que conhece mal, enchendo o cesto que empeça em tudo o que é lado, porque é prático ter rodinhas - sim senhor, mas a largura dos corredores não está para essas modernices, muito menos os empregados que fazem a reposição de artigos sem se importarem com o estorvo que causam aos clientes.

Num desses corredores, ele quer passar, mas o cesto dela não lho permite. Ele pede licença, ela olha para trás, pede desculpa e move o cesto. Ele sorri, ela também. Ele pára um pouco mais à frente, olha-a de lado e, quando é a vez dela passar, é um embróglio de cestos e rodas. Riem ambos do caricato da situação e cada um segue o seu caminho.

Ela espera bastante na fila da caixa e, quando começa a pôr as compras no tabuleiro, percebe que ele está mesmo atrás. Ela faz de conta que não vê, ele não faz por disfarçar que a olha. Ela arruma as compras, paga rapidamente e segue caminho. Na espera do elevador, ele aproxima-se e pergunta-lhe se ela quer ajuda com o saco (monstruoso e claramente pesado, apesar de amigo do ambiente), que ela recusa com um sorriso. Segue-se uma dança de elevadores a abrir e fechar portas, ora a subir em vez de descer, ora não permitindo espaço a mais ninguém. Num deles, cabe mais um, mas ou é ela ou as compras, por isso passa, e ele também. Ele comenta que devia estar calminho, num domingo, dia 2 de Janeiro àquela hora, e ela responde que pois, mas não está. Enquanto isso, ele mexe no telemóvel e ela anda de uma porta para a outra, à espera do elevador certo. Entram finalmente os dois no mesmo, ela arruma-se ao fundo com o grande saco à frente, ele fica junto à porta, várias pessoas pelo meio. Ela sai primeiro, ele olha-a de frente, ela sorri ao passar, e ele diz-lhe “Até para a semana”.

Ela vai a rir até ao carro, e boa parte do caminho, pensando “'Até para a semana'?? Muito à frente..." Mas passou-lhe a neura, chega a casa mais bem disposta e pensa que a primeira ida ao supermercado do ano deixa história, ainda por cima uma boa história, e é só isso que quer de cada dia do resto do ano. É preciso é sair de casa. E qualquer hora é a hora certa.