De volta



Lisboa é linda vista do Tejo. Atravessar a ponte e sentir-me mergulhar de novo nesta cidade que eu amo é quase mágico. Sinto sempre o mesmo entusiasmo de menina pequena, ansiosa por chegar ao fim da viagem, e o mesmo deslumbramento que então sentia ao me aperceber da grandeza e da beleza da minha cidade.

De volta a casa. Passado o rio, descarregadas armas e bagagens que agora levo dias e reabsorver na minha casa, tenho um misto de contentamento, um sabor de missão cumprida, e uma tristeza de mais uma coisa que chegou ao fim. Para o ano há mais verão de azul e branco, como o mar revolto do meu Alentejo que também adoro e deixei para trás. Agora, há mais uns longos meses de luta da vida real, vida que pulsa aqui nesta cidade, alimentada por esta luz que é única e que me acolhe, sempre, quer eu queira quer não, e me faz estranhamente sentir em casa quando ainda rolo por cima de uma ponte vermelha sobre um rio azul.

Chegou o corpo mas o coração continua uma outra viagem. Continua a menina ansiosa por chegar ao seu destino, continua essa menina à espreita do vislumbre da paisagem que recorda imaginando, e do banho dessa luz que a fará, finalmente, sentir o coração chegado, iluminado, em casa. Continua o coração à procura da ponte.

Mais uma - a Parte 7

(...)

Pedro andou pelas ruas, com a imagem dela na cabeça ao mesmo tempo que ecoavam as perguntas dos jornalistas, fazendo o percurso inverso ao que tinha feito nessa tarde com Sofia. Parou frente à esplanada onde se tinham sentado e relembrou fragmentos da conversa que lhe vinham à memória sem qualquer sequência de tempo ou de lógica. Num turbilhão. De repente, lembrou-se que sabia em que cidade ela morava e olhou para o panfleto com o horário dos combóios que lhe tinham dado no hotel. O último combóio era um Inter-Cidades, que partia às 21:39. Tinha 18 minutos para chegar à estação.

Meteu-se no primeiro táxi que passou e prometeu uma generosa gorjeta para chegar a horas. O taxista pisou o acelerador com um pé pesado e um sorriso de satisfação. Pedro perguntou-se por instantes se teria tido sorte ou azar, porque não percebia bem se o sorriso do motorista era apenas de gozo se de loucura. O certo é que aquele carro voava baixinho pelas estradas e Pedro sabia que cada minuto e cada quilómetro devorado naquela corrida eram vitais para si. O nome dela explodia-lhe na cabeça e no peito. “Sofia.” Tinha de alcançá-la, e um semáforo vermelho. “Sofia.” Tinha que agarrá-la, parar-lhe a fuga, e passava mais um minuto. “Sofia.” Tinha de chegar a tempo, precisava dela para se salvar, e o taxímetro contava. “Sofia. Sofia. Não vás. Não me deixes!”. Num nervoso intenso que se via na expressão contorcida e no semblante transpirado, as mão furiosamente a esfregar-lhe a cara à lembrança dela, do nome, do olhar, do toque, do som das palavras e do beijo. E, de repente, a estação a recortar-se no horizonte. Cruzamentos e rotundas que nunca pareceram tão despropositados, os segundos a correr. “Sofia, por favor, espera por mim.”

Ao chegar à estação correu à procura da plataforma certa. Os 4 minutos que lhe tinham sobrado chegaram apenas para assomar à superfície onde viu o combóio prestes a partir. Já não havia gente no cais de embarque e apenas a cabeça do revisor assomava de uma porta. O revisor olhou para ele, na expectativa de ser um último passageiro a querer embarcar, e Pedro ecoava um monstruoso “não” na sua cabeça, “não me rendo, não desisto”, enquanto corria pela plataforma a tentar olhar para dentro do combóio, em busca dela. O sinal de partida ecoou nos altifalantes e ele não conseguiu reprimir um grito de desespero com o nome dela a voar pela noite, lancinante, vindo do mais fundo de si, perdendo-se no vazio do ar e esvaziando-lhe a alma simultaneamente.

- Sofia!!!!

O revisor recolheu-se e o combóio pôs-se em marcha, partindo, lentamente, e deixando no cais de embarque um homem e sombras. Luzes pardas dos candeeiros da estação, destinos escritos em placards electrónicos, bancos de espera vazios, ecos de passos que se foram e do trepidar do combóio que partia.

Lá dentro, ela seguia de volta a casa, com o olhar perdido no infinito, a tentar conter as emoções que queriam transbordar. Não se queria mexer, porque se controlava à força de conter o corpo, numa tensão louca, como que a reprimir a passagem do tumulto que lhe ía dentro. Sabia que se mexesse um músculo, um só, se desconjuntaria e não conseguiria conter a torrente. Aquele homem ficava para trás. Não interessava saber porquê, por que crueldade o destino os tinha feito cruzar caminhos. Não pensaria nunca mais naquele olhar, naquele cheiro, naquele toque ou naquele beijo. Não recordaria nunca mais aqueles breves instantes. Não se permitiria chorar. Não por ele. Sentia nojo de si, dele, repulsa incontrolável. Fechou os olhos e tentou dormir, para calar o que lhe ía na alma. Para tentar calar-lhe a voz, o grito, do nome dela, que ecoara na noite da cidade de onde partia e que não queria ouvir na sua cabeça quando respirasse o ar da noite da cidade onde havia de chegar.

(continua)

Partida

As coisas que tenho e me vestem, me adornam, também são parte do que sou. Vão em malas a encher o carro, para que me possa transportar. Carrego comigo para férias o que sou e o que visto, tal como o que sinto e o que penso. De repente apetecia-me reduzir tudo ao mínimo, ao essencial, e viajar deixando quase tudo na gaveta. Apetecia-me chegar ao meu destino de férias e não me reconhecer no espelho, ou melhor, nem me ver no espelho. Apetecia-me deixar as roupas, as pulseiras, os sapatos, tudo guardado nas gavetas e armários. Mas por mais que me dispa de roupas e adornos, não posso deixar nas gavetas o que está guardado em mim. E carrego comigo também o que queria deixar, e assim deixo mais gavetas vazias do que precisava, porque assim me escondo mais. E quando olhar para o espelho verei o exterior que me define e oculta o interior que me extingue.

Estou presa ao que não quero sentir, ao que não quero pensar, ao que não quero ser. Estou presa e quero partir. Não tenho asas e quero voar. Tenho memória e quero esquecer. Sei que tenho de desistir, mas não deixo de acreditar. Sei que tenho de viver, mas continuo a esperar. Sei contar os dias, os meses, mas ainda não deixei o tempo fechar. Zango-me com tudo e comigo própria, não entendo, mas não me liberto. Quero fugir disto e de mim, mas não sei como. Já tentei parar, já tentei fingir que não sei, à espera que o tempo se encarregue de diluir no vácuo o que não me pertence mas me domina. Já tomei resoluções, já me impus penitências. Já me desculpei e recompensei. Mas acabo de volta ao inevitável de sentir que não me livrei, ainda me corre nas veias, ainda me aperta o peito, me consome, me entristece, me acorda e me adormece.

Os quilómetros da distância que vou percorrer não me levam para longe, não me levam de mim. Mas talvez o tempo que vou viver de outra maneira me possa ajudar e reecontrar uma forma de viver com isto em paz. Já que não posso expulsar, talvez consiga empurrar tudo isto para um cantinho mais escuro, arrumar muito arrumadinho, e aprender a viver sem o peso de o carregar comigo a cada passo, cada quilómetro, cada minuto do tempo que se desfia à minha frente, que devoro na ânsia de que acabe.

Boas férias para mim. Era bom serem férias de mim.

Agri-Doce?


Hoje acordei de rastos – tipo: “não, não estou nada a ouvir o despertador... Está quieta Maria Princesa e deixa-te mas é dormir”. Tenho-me deitado tardíssimo todos os dias e ontem não foi excepção. Simplesmente nem quero pensar em ir para casa, não me apetece estar sozinha. Então fujo para a confusão. Tudo é mais fácil com o barulho das luzes. E as horas passam sem eu dar por isso mas depois é o diabo para me levantar de manhã. Acho que estou assim um bocadinho a fugir de mim – é que eu sou terrível comigo própria.

De facto, sou muito exigente e crítica de mim, em todos os aspectos. A minha mãe disse-me que tento ser, e projecto a imagem, da “super-mulher”. Não acho que seja bem assim. Eu não “tento ser” a super-mulher e até geralmente me sinto exactamente o contrário: sinto-me fraca e insegura, duvidosa e receosa, e por isso preciso de pensar tanto nas coisas. Mas admito que seja essa a imagem percebida por alguns, porque depois de tanto pensar, reflectir, analisar e, finalmente decidir, sou invariavelmente de uma convicção inabalável. É só isso que parece que os outros vêm, lendo portanto uma pessoa fria, calculada, cheia de força e certezas. Já alguém me disse que eu era uma mulher de coração com a ilusão de o temperar com a razão. E de facto sinto-me um coração a querer mandar, mas a razão a atrapalhar, a confundir sabores e a camuflar aromas com os temperos da lógica, do pensamento analítico, da crítica impediosa. Às vezes chego a perguntar-me se não serei um pouco esquizofrénica! E sei, admito embora não goste de o ouvir, que por vezes me projecto tão ácida como sou doce, sobretudo em situações em que me sinto ameaçada. E sei que isso confunde as pessoas que me conhecem menos, e mal sabem elas que me confunde a mim própria...

Talvez por sentir que sou demasiado coração, tenho uma necessidade absoluta de pensar nas coisas, tomar decisões consciente dos riscos, fundamentar certezas e reforçar convições com a trama da lógica. E tenho necessidade de esconder essa fragilidade no campo emocional, atrás de uma parede de acidez e uma expressão seráfica. Mas perco a espontaneidade, perco momentos e perco-me eu própria nesses raciocínios. Tenho-me esforçado, e quando consigo ser mais espontânea, realmente sinto-me quase sempre bem, apesar de algumas dessas espontaneidades acabarem a ser analisadas tempos depois na categoria a que dei o título (à moda de uma querida vizinha) de: “Loucuras que cometi no impulso do momento ou No que raio estava eu a pensar?! ou Não volto a beber tanto shot de vodka na mesma noite”...

Assim é a vida – um compromisso constante entre razão e emoção, entre planeado e espontâneo. Ainda tenho dificuldades com este equilíbrio e não me consegui decidir ainda se custa mais aceitar um erro resultante de over-analysing e planeamento detalhado, se um erro de impulsividade ou espontaneidade. A diferença mais óbvia é que, mesmo quando é erro, viver no espontâneo é mais fácil, é-se mais feliz pelo menos no imediato, e não se perdem certos momentos a ruminar argumentos e lógicas. E lá estou eu a entrar na análise, até para decidir se devo ou não ser mais espontânea... Mais paradoxos meus. Estas minhas incongruências admitidas, o facto de ser/parecer coração e razão, doce e ácida, insegura e forte, às vezes fazem-me sentir que não sou nem carne nem peixe. E de repente ocorreu-me que estou muito perto de ser um prato chinês agri-doce, um número cheio de “l’s” de uma ementa traduzida de mandarim... Qualquer dia alguém chama um “tlinta e quatlo” e eu respondo “Sim, sou eu...”

Lá se diz que a imagem que temos de nós próprios é sempre distorcida em relação à imagem que projectamos. E eu às vezes pergunto-me onde está realmente a distorção, acabando por concluír que está um pouco dos dois lados. Mas o que sei é que alguns outros por vezes nos vêm melhor que nós próprios, vêm as distorções que fazemos do nosso lado. Os que são nossos amigos têm a generosidade de nos reflectir mais autênticos, mesmo que seja através de uma discussão ou pelo menos de coisas que são duras de ouvir, ajudam-nos a alinhar as duas imagens, a focar no que interessa e a limpar ruídos da imagem distorcida. No fundo, dizem-nos que não somos um “tlinta e quatlo” e obrigam-nos a estudar o menu outra vez... Bem hajam esses amigos, que eu nem sou fã de agri-doce. Haja esperança.

Mea Culpa

Um filho muda tudo, muda-nos a nós próprios. As prioridades reorganizam-se, as liberdades restringem-se e as responsabilidades aumentam de forma exponencial. Deixamos de ser moléculas independentes e passamos a ser orgão vital, não podemos parar, não podemos desistir. Os filhos dependem de nós e sofrem as consequências de tudo o que erramos. Mas um filho não é um sentido para a vida, não é uma razão de ser. Um filho é uma responsabilidade, é um projecto de que não se pode desistir. É uma lição de amor e uma satisfação, tanto como é uma lição de preserverança e sofrimento.

Quis muito ter um filho, pensando que tinha encontrado o pai perfeito que ía comigo construir uma família. Não podia advinhar a volta que a vida ía levar. Não me arrependo de ter o L, mas também me entristece tremendamente que não o possa ver crescer no meio de uma família a sério. Não seria a minha escolha se tivesse visto o futuro.

Custa-me tê-lo longe, a chorar ao telefone a perguntar-me quantos dias faltam para eu o ir buscar, ou para ir “para casa da mãe” porque, dizia-me ele, está triste. Foi a primeira vez que me lembro de o ouvir verbalizar uma emoção espontaneamente, e foi logo a tristeza que escolheu. Fracasso de mãe, penso no imediato. Mas eu sei que sou para ele a melhor mãe que sei e consigo ser, nas limitações da minha condição humana e na impotência contra alguns desvios do destino. Sei que não posso evitar-lhe todo o sofrimento e não posso garantir-lhe felicidade permanente. Sei agora e sei agora o quanto dói.

Preferia não estar na situação de ter de o “visitar”, mas fui matar saudades, minhas e dele. Conversamos a vêr o mar e depois jantamos pizza. E lá tive de deixá-lo com o pai, com as lágrimas e os abraços que não se querem desfazer. “São só mais 5 dias e depois vamos de férias, só nós dois, 15 dias, que é imenso!”, digo-lhe eu com todo o entusiasmo que consegui espremer de mim. E ele responde que isso é “taaaanto”, que “é uma mão TODA”...

Ainda tinha esperança de viver a experiência da maternidade outra vez de uma forma mais tranquila, mais feliz, com uma verdadeira família. Mas não sei já se teria coragem. O que sei hoje é que, como ouvi alguém dizer, não quero mais nenhum filho “de” – quero eventualmente um filho “com”. E sei que mesmo com os sinais certos todos, e anos de provas olímpicas ultrapassadas, será sempre um risco, para mim e sobretudo para um hipotético segundo filho, a quem amando de antemão, assim talvez prefira não dar existência. Sei que para poder pensar no assunto a sério é preciso encontrar um Amor e que este, sem laços de sangue, não é matemático, não tem modelo, norma ou garantia. É um monte de sortes, acasos e paradoxos e, ainda por cima, é uma coisa volátil... Sei hoje o que sobra quando evapora, e sei que uma criança precisa tanto de uma mãe como de um pai, e mais que dos dois em alternância, precisa de uma família.

Mea culpa meu filho, que me perdoes um dia porque não soube o que fazia.

Inconformada


Uma vez ouvi um Padre justificar a manutenção da virgindade até ao casamento de uma forma extraordinária. Dizia ele que assim não haveria no casal termos de comparação, o que tornaria o que quer que fosse a vida sexual dos dois absolutamente incomparável. Sem frustrações, sem desilusões, sem insatisfações.

À parte o que se pode argumentar contra esta tese, e pode muito, fica a questão genérica: a ignorância pode ser uma benção? Às vezes penso que sim. Se não soubesse o bom que pode ser, o medíocre chegaria. Se não soubesse o que é Amor total, um afecto menor seria suficiente. Se não soubesse o que é ser feliz, um contentamento morno bastava-me. Assim, o medíocre é apenas medíocre, um afecto menor é insignificante e um contentamento morno é um sofrimento.

Ecoam as palavras do meu saudoso avô a quem me queixava da Faculdade e do curso: “não me surpreende. As pessoas inteligentes são sempre inconformadas. Vais ter de aprender a viver com isso”. Desse-me Deus menos inteligência, menos profundidade e menos conhecimento, e seria talvez até feliz. Felizes serão os tolos?... Talvez. Se eu não conhecesse o Santini, com certeza achava a Olá um espectáculo e comia um gelado qualquer sem o desencanto de pensar que o de framboesa do Santini é mil vezes melhor.

Interregno


Às vezes é preciso dar tempo às coisas, sofrê-las um bocadinho, até conseguir fazer delas algum sentido. Mas fico com uma noção estranha de que o tempo me foge, escorre-me das mãos.

Assola-me a tristeza de uma nostalgia quase doce. É a necessidade de largar o que está para trás. Mas, ao mesmo tempo, apetece-me voltar no tempo e ser e sentir o que fui e senti nos momentos felizes passados. É um turtuoso raciocínio, esse sonho acordado, a nota mental de tudo o que houve de positivo. Aquela sensação de que "aquilo é que era", e era mesmo, foi mesmo, é tudo uma questão de tempo do verbo... Era, mas já não é, nem volta a ser, foi apenas... foi bom, mas "foi". O tempo escorreu. Caio de vez em quando nestas armadilhas e nestas rodas.

E depois tenho vertigens, fico na beira do passo que não percebo qual vai ser. E nessas alturas paro. E acho que é assim que tem de ser. Em compasso de espera, um dia de cada vez, sem over-analysing, a deixar as coisas arrumarem-se de mansinho, na cabeça e no coração. A largar o lastro, a levantar amarras, a olhar para o mar. E aí, de repente, sei para onde quero ir e como lá vou chegar. E afinal o tempo não foi perdido.