Uma Máxima para 2011


Pelo menos...

Um objectivo para 2011

Chegar ao fim do ano e poder dizer duas coisas: que valeu a pena mais um e que tenho planos para o seguinte. Se valer a pena só pode ser porque chego melhor ao final, e se tenho planos para mais um, só pode ser porque tenho razões para querer continuar a viver e a lutar. Como este ano, quero chegar ao fim com vontade de ir festejar, com tudo a que tenho direito, a começar por um vestido especial, (que este ano aperto facilmente sozinha, mas que pode ser que alguém aperte por mim no próximo), e com sapatos e acessórios à altura do desafio. Pode parecer uma futilidade, mas o certo é que a escolha do vestido, a vontade com que me arranjo para este dia simbólico, diz muito do saldo do ano que acaba e, mais ainda, da esperança com que começo o seguinte.

Um desafio para 2011

A capacidade de concessão sem comprometer o fundamental.

(Por exemplo, e a começar logo pelo desejo para 2011, conceder em algumas características do homem perfeito, e ainda assim encontrar o meu Príncipe. Na verdade, prescindo facilmente de muitos dos atributos que menciono, mas independente do conjunto de características, não pode é deixar de ser um Príncipe, e tratar-me como uma Princesa.)

Um desejo para 2011

Se é para desejar e dar espaço à magia, então quero que 2011 me traga um Príncipe. Sim, um Príncipe à séria, não vou gastar o meu desejo a pedir um homem normal. A poder escolher, é claro que escolho o Príncipe, e pegunto-me que mulher escolheria o contrário. Esse Príncipe é – claro – o homem perfeito para mim. Ou seja, um homem inteligente, com sentido de humor, bonito, resolvido, atencioso e carinhoso, e já agora rico e com bom gosto. Mas “Homem”! E que queira uma Princesa como eu, é claro, portanto que seja mais modesto no seu desejo e menos exigente na sua definição de mulher perfeita.

2011

Este ano não faço balanço. Fui fazendo alguns ao longo dos meses e, dado que a minha vida continua a surpreender-me com curvas e desvios inesperados a cada dois passos, fica difícil de consolidar contas e fazer balanços.

Também não sou capaz de pensar em 12 desejos para as passas da meia noite. Primeiro, porque, desejos por desejos, tenho muito mais que 12, e desejos especiais tenho muito menos que meia dúzia. Assim fica difícil decidir os que incluir e os que deixar de fora. Segundo, porque também sei que as passas não são mágicas e dispenso, portanto, a momentânea ilusão. E, finalmente, porque coisas como saúde para o meu filho, paz ou alegria, são desejos que não são exclusivos de ano nenhum, não têm tempo nem validade, nem devem ser levianamente entregues à responsabilidade de uma uva ressequida.

Portanto, em vez dos 12 desejos, tenho apenas um que vou tentar acreditar que uma mágica qualquer me concede em 2011. E além de um desejo, tenho um desafio, um objectivo e uma máxima. A seguir, um de cada vez. E, entretanto, a todos os que por aqui passam, os que comentam e que eu sei quem são, os que comentam e eu não sei quem são, os que não comentam mas que eu sei quem são, e os que não comentam e eu não faço ideia de quem são, um bom Ano de 2011.

Bitolas

Não há como o vislumbre do que soubemos um dia chamar de amor, para ver claramente aquilo que não merece essas quatro etéreas letras. Não interessa que a nossa definição nunca tenha sido muito definitiva. Não interessa que não tenha sido muito clara, ou consensual. Interessa apenas que nos encheu de algo único, talvez incomparável, e que mesmo que apenas sabido hoje em fugazes viagens pela memória, em recordações de uma história que se escreveu em nós, forjou uma bitola inegociável e marcou uma medida que sabemos de cor.

Poética Dúvida

"NATAL À BEIRA-RIO

É o braço do abeto a bater na vidraça?
E o ponteiro pequeno a caminho da meta!
Cala-te, vento velho! É o Natal que passa,
A trazer-me da água a infância ressurrecta.
Da casa onde nasci via-se perto o rio.
Tão novos os meus Pais, tão novos no passado!
E o Menino nascia a bordo de um navio
Que ficava, no cais, à noite iluminado...
Ó noite de Natal, que travo a maresia!
Depois fui não sei quem que se perdeu na terra.
E quanto mais na terra a terra me envolvia
E quanto mais na terra fazia o norte de quem erra.
Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me
À beira desse cais onde Jesus nascia...
Serei dos que afinal, errando em terra firme,
Precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia?"


(David Mourão-Ferreira)

Inspirado e expirado

"O que é o amor, em concreto? Não perguntes o que é sem este «em concreto», acabarás com arbitrariedades verbais, piedades, coisas vãs. O que é o amor em concreto, concreto como cimento, como betão, concreto como uma pedra, imagem tão diferente do complicado e impudico coração? O verbete «amor» fala em emoção, estética, ideologia, doença, e nada disso interessa agora mas apenas o amor em concreto, corpos, cortinas, cheiros, cães, o amor que com ou sem aspas mostramos aos outros para que acreditemos também, vejam a minha felicidade, a minha normalidade, a minha desistência. Com o teu amor concreto o mundo encontra uma base estável no meio dos vendavais. E agora suportas todas as decepções. O amor é um vício, uma gangrena, faz mais falta um amor concreto, hábitos, fotos, impostos, torneiras, é contra o amor que o amor concreto triunfa, onde estavas, amor, quando foste preciso, quando ela precisava, ao passo que eu estive sempre aqui ao seu lado? Que importam as tuas escaladas, os teus mergulhos, que tristes acrobacias são essas, que escusado espectáculo, quando eu dou (diz o amor concreto) a desculpa, o descanso, os domingos? O amor perdeu porque é seu costume, saiu para a rua com a roupa errada, enquanto o amor concreto trouxe agasalho, é prudente e precavido, tem botões, chaves, ferramentas. O amor diz que ama mas desconhece o tempo e o tédio, é por ser banal que o amor concreto o humilha, não há amor mais forte que o amor em concreto, o amor que te toca, protege, exaspera, o que é o amor ao pé disso, simples hipótese rabiscada num guardanapo, devaneio de asténicos, vida alternativa. Vinhas com os teus exércitos, amor, mas foste dizimado, o amor em concreto é o único, escondo-me agora na vergonha dos indignos enquanto em concreto o amor concreto está onde sempre esteve, tranquilo no inverno com o teu amor nos braços."


(Aqui, do blog A Lei Seca)

What DO we want for Christmas?...

Um "you" qualquer, como na música que toda a gente conhece. O nome, e olhos e sorriso, e mãos e corpo e cheiro. Quer se conheçam já ou não. Aliás, sobretudo, se não se conhecerem ainda. Aliás, talvez não. Aliás, não faz qualquer diferença. Há sempre um "you" que serve perfeitamente, físico ou sonhado.

Rusty, of course

Clarice Dixit

"O que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesmo."

Sim, sim, um enorme sim ecoa em mim ao ler esta frase! Este mesmo conceito norteou-me tantas vezes, sobretudo quando andei a navegar, uma casquinha de noz frágil e indefesa, por mares revoltos e castigadores, que me fustigaram com duras tempestades. E, talvez por isso, olho agora a frase, e olho esses tempos atrás, e fica-me um gosto um pouco acre ao perceber que a tormenta realmente insuportável é não sabermos porque havemos de lutar, porque o mar calmo não nos permite ver com clareza aquilo de que não podemos desistir. Será que apenas uma qualquer guerra ou tempestade nos permite ser o que somos? Ou será que só queremos ser as nossas maiores qualidades, as grandes virtudes, evidenciadas mais claramente a combater uma qualquer tormenta? Também se devia poder ser, completo, com qualidades e defeitos, sem ter de provar valentia e coragem, bramindo uma qualquer espada contra as agruras da vida. Nos tempos de calmaria, o que nos falta é a guerra. É a isso que recorremos para firmar objectivos, é a isso que recorremos para nos atribuirmos sentido. E na ânsia de semear ventos, colhendo as fatídicas tempestades esclarecedoras, esquecemos que o mar não nos pertence. E o mar também nos pode engolir na calmaria, quando navegamos num leve ondular. Não deixa grandes epopeias para contar, não parece um grande mérito, nem merece medalhas de coragem, mas exige muito maior força de vontade para não desistirmos de navegar - escolher o rumo, escolher o destino, e mover o barco - ou ser tragado silenciosamente. Há muita gente à deriva por isso mesmo, apenas à espera da próxima tempestade para sentir que existe, sem perceber que se não se pode escolher existir na calmaria é porque, no fundo, já se desistiu de si próprio. 

Maio

Hoje caiu-me de repente em cima o peso de uma série de meses, mais dos que gostaria de contar. De repente, mesmo assim em total choque, realizei que estamos a menos de 15 dias do fim do ano. Estranhamente, apesar do frio não enganar ninguém, parece que estava presa à noção de que a última Primavera era uma coisa ainda recente. Maio marcou o arranque de uma nova fase da minha vida, em muitos sentidos, uma esperança renovada. Mas talvez porque nada se tenha desenvolvido à velocidade, ou na direcção, esperadas, e talvez também por ter marcado o início de um período de ritmo intenso, parece que ainda é Maio na minha cabeça. Não dei pelo Verão a passar, nem reparei que já foi Outono. Talvez seja um processo de denial, uma verdadeira recusa de assumir que passaram quase 8 meses e ainda não alcancei, de facto, a totalidade dos objectivos propostos. De certa forma, Maio ainda não se cumpriu.

Andei todo o dia a remoer este raciocínio, para acabar a concluir que tudo aquilo que não se cumpre parece que não se fecha. Ao longo do tempo, acumulam-se demasiados capítulos abertos, enquanto não se tem a sorte de os poder fechar, ou a coragem, ou a humildade, de os dar por encerrados, desistindo de lutar por um final julgado possível, julgado feliz. E enquanto não se fecham, vivemos um calendário distorcido, onde o tempo é realmente relativo, e em que, anacronicamente, podemos viver presos em vários meses ou anos diferentes num mesmo momento. Aliás, podemos acabar uma soma de vários meses e datas encaixados uns nos outros, podemos acabar a ser esse calendário distorcido. 

Tenho uma série de Maios na minha vida, e muitos Verões perdidos. Não quero perder mais estações. É a minha primeira resolução para 2011, mas para começar a pôr em prática a partir de agora.

Se tanto me dói

"Se tanto me dói que as coisas passem
É porque cada instante em mim foi vivo
Na busca de um bem definitivo
Em que as coisas de Amor se eternizassem"


Sophia de Mello Breyner Andresen

Longa Catarse Natalícia

Naquele tempo, o Natal era sinónimo de expectativa, de festa de família, cantoria e presentes. Era o tempo de montar o gigantesco presépio que surgia não se sabia bem de onde, num monte de caixas com centenas de figurinhas embrulhadas em jornal. As caixas, depois de vazias, convertiam-se em montes e vales que ocupavam largos metros junto a uma parede da sala, cobertos com um pano verde e grosso, artisticamente enrugado e salpicado de algodão ou esforovite a fazer as vezes de neve, e povoado com todas as figuras que três pequenas alminhas entusiasmadas colocavam, sob instrução da mãe, em forma de peregrinação em direcção ao ponto mais alto do presépio. Aí, estava uma cabana com telhado de palhinha, e as incontornáveis personagens centrais, várias vezes maiores que todas as outras, e tão mais valiosas que era à mãe que cabia desembrulhá-las e colocá-las lá. Por cima da cabana era onde assentava a estrela, e os três reis magos, montados nos seus camelos, começavam por ser colocados no ponto mais distante do presépio, para serem movidos para um nadinha mais perto cada dia, por meio de pequenas mãos que alternavam criteriosamente cada dia. Não havia árvore de Natal, nem se falava do Pai Natal. O Natal era do menino Jesus e pronto. Anos mais tarde, o pai lá se rendeu e deixou entrar a herege representação natalícia do pinheiro lá em casa. Claro que, já que tinha de ser, que fosse em grande. E as mesmas três alminhas, aí já não tão pequenas mas ainda entusiastas do Natal, lá viram entrar um pinheiro que tocava no tecto da sala, e o feito a repetir-se todos os anos a partir daí. A concessão: a estrela continuava no presépio, mas este passou a ser montado na base da árvore. Nesse tempos, espalhavam pela casa fitas e bolas, compunham arranjos de mesa e enfeitavam os castiçais. Havia uma enorme coroa de flores e enfeites natalícios pendurada na porta da rua, e amontoavam-se os embrulhos por todos os cantos da sala, consoante a “família” a que se destinavam.

E realmente era um Natal de muitas famílias, do lado do pai, do lado da mãe, do lado da mãe do pai e do pai da mãe, mais tias velhas e idosos senhores, a quem se devia uma deferência qualquer, e que nos custavam mais uma viagem de carro e mais uns beijos que detestávamos para entregar mais embrulhos. E também trazer sempre qualquer coisa, é certo, quase sempre guloseimas. Desde a tarde de dia 24, até à noite de dia 25, corriam-se todas as capelinhas das várias famílias a que estavam ligados, livrando a sala, aos poucos, dos montes de embrulhos. Para a família da casa, sobrava muito pouco. Restava a manhã do dia 25, em que tomavam todos o pequeno almoço de pijama e roupão, e trocavam os presentes dos pais para as filhas e vice-versa, e depois também entre irmãs. Mas a correr, porque era preciso estarem todos prontos para a missa do meio dia, e a seguir lá entravam no périplo de mais um dia, com um almoço com os avós paternos, visitas várias pela tarde, e jantar com a família do avô materno. E esse último jantar, esse é que era Natal, esse é que era o momento em que se sentia família, em que os rituais até faziam sentido, desde a cantoria solene em frente ao presépio, até à cerimónia de beijar o menino, que um dos mais novos da família, seguido de perto pela avó, tinha a honra de circular por entre todos, seguro numas mãos pequeninas atrás de uns olhos muito brilhantes e um ar compenetrado, ciente da responsabilidade assumida.

Não sei em que ponto exacto, mas algures pelo caminho da sucessão impiedosa dos Natais, uma daquelas meninas perdeu a fé. O presépio passou a ser apenas um amontoado de figuras kitsh, e uma obrigação aborrecida. A árvore de Natal gigantesca passou a ser apenas um estorvo que levava horas a enfeitar, e a correria daqueles dois dias deixou de compensar, não tanto pela falta das guloseimas que foram sendo substituídas gradualmente por presentes sempre desadequados, mas porque se tornou cada vez mais claro, mais óbvio, que não havia família própria, no meio de tantos familiares em tantas casas, almoços, lanches e jantares. E depois, já não era menina, tentou ser feliz mas deu um enorme trambolhão, e logo nesse ano da queda, faltou-lhe o avô. E assim o serão de dia 25 passou a ser apenas um hino à sua memória, recalcando a ferida da saudade a cada ritual que se repetia sem ele por perto, sem o seu sorriso, sem o seu abraço atrapalhado mas muito forte, muito sentido, entregando aquele que era sempre o presente perfeito. Geralmente um livro, quase sempre reprovado pelos pais, mas que o avô declarava indiferente que era perfeitamente adequado. E sem essa recompensa final pelos dois dias de farsa insana, o Natal morreu para ela.

Durante os anos seguintes, ainda tentava replicar a alegria natalícia, embora sem grande convicção, sobretudo quando acreditou que havia construído, finalmente, a sua própria família. A árvore era muito mais pequena, as decorações muito mais bem escolhidas, o presépio era pequeno e simbólico, mas também enchia a sua casa de cores e doces de Natal, e tentou fazer, finalmente, um Natal da sua família, passados tantos anos, uma refeição mais importante e demorada do que um simples pequeno almoço de pijama. Mas a coisa nunca correu lá muito bem, e quando afinal descobriu que tinha um filho, mas não tinha família, nem a primeira que herdara, nem a segunda que tentara criar, também ela morreu para o Natal. Tudo passou a incomodá-la nessa época, provavelmente pelo tanto que fazia doer, não só da saudade dos que passaram a faltar, como até da perdida alegria ingénua, tão própria das crianças, que via reflectida pelo seu próprio petiz, e tão impossível para quem passou já a curva do desencanto, quem se compenetrou do seu próprio fracasso, do seu próprio vazio, da frieza das expectativas ajustadas, por baixo, muito baixo, e assim, lucidamente, tem de enfrentar a derrota.

A pedido insistente do seu filho, comprou há 2 anos uma árvore de natal pequena, da loja dos chineses. Este ano, teve de a montar e enfeitar com luzes, com bastante antecedência, para não desgostar a criança animada e estupidamente natalícia que lhe calhou. Mas entregou-lhe a responsabilidade da decoração, por isso, pela primeira vez, não tem uma árvore exemplo das tendências da moda e cores da estação. Tem uma árvore com tudo aquilo que uma criança crente, e ingenuamente alegre, se lembrou de lá pendurar. Desde recortes de revista a alguns dos seus bonecos preferidos, à mistura com uma quantas bolas vermelhas e uns bocadinhos de “neve” feita de algodão, uma fita dourada com estrelas, que tinha guardada e que fez brilhar os olhos ao seu pequenote, e uns enfeites de madeira. Se o presépio monstruoso de casa dos pais era kitsh, e ela o desprezava então, que diria agora essa menina sobre a sua nova árvore de Natal...

O presépio que desembrulhou do jornal, o único que tem porque o único que alguma vez quis, tem apenas quatro pequenas figuras de barro cozido, em linhas muito simples, e a originalidade de mostrar Maria sentada, de pernas cruzadas, com o menino no regaço. Tem um S. José longilíneo, de cabeça ligeiramente curvada, e duas ovelhas. Como quase tudo nesta criatura morta para o Natal que morreu para ela, e para mais umas quantas coisas da vida, até a escolha do presépio se pautou pela selecção do mais invulgar, quase insólito. Quem não achou graça foi a criança da casa, desolada pela pequenez do presépio e pela simplicidade das formas, e porque “nem tem um burro e uma vaca”. E faltava “chão” e tantas outras coisas mais, que acabou por colocar as figuras em cima de um lenço verde da mãe, juntou-lhe umas bolas da árvore de natal e mais “neve” de algodão, e ainda se atreveu a sugerir à mãe que tinham de pintar as figuras. Ao que esta lhe respondeu, aterrorizada, que não era para pintar nada, que era assim, com aquelas figuras sem rosto desenhado e de linhas muito simples, um presépio de cabia num quadradinho de 20 centímetros de lado, que ela gostava de se lembrar que era Natal. E aquela criança lá tirará as suas conclusões sobre o episódio, que ninguém imagina hoje quais sejam, não sem antes ter explicado à mãe que, assim, "sem cores nem nada, nem se percebe se o bebé é o S. José pequenino, se é um anjinho que caiu do céu…”.

Este ano, pela segunda vez, essa menina que não queria celebrar mais o Natal, tem de o fazer de modo repartido, porque deve à sua criança a celebração, ainda que seja uma pequena farsa, mas cede o dia 24 para o pai. Assim, quando regressar no dia 25, lá será a criança arrastada pelos périplos que os avós ainda mantêm, embora já mais reduzidos com a inevitável morte a dizimar as várias famílias e os novos elementos a serem cada vez mais distantes, muito embora a criança não se importe, que ainda venera o presépio imenso da avó, e gosta de tentar tocar no topo da árvore às cavalitas do avô, e proclamar que a árvore chega “mesmo” até ao tecto, e porque ainda traz guloseimas e brinquedos de que gosta, de cada paragem que fazemos, e ainda não sente que lhe falte ninguém especial, ou nenhum abraço fundamental. Ainda bem. Essa é a única alegria do Natal da sua mãe.

Here comes the weekend

Long live the weekend.

Dar Nomes às Coisas

As palavras têm valor, maior do que o seu simples significado no dicionário. As palavras dão nomes às coisas, e é só com a sua escolha certa que podemos dar-lhes existência real, e depois articulá-las, construindo frases e textos que as substantivem, que as expliquem, ou relativizem - correctamente. E tudo são coisas à nossa volta, e tudo são coisas dentro de nós. Nem sempre de significado claro e, tantas vezes, perdemos-nos por esse caminhos fora, sem entender muito bem que nome leva a estrada que escolhemos, que nomes escondem as pedras que nos atrapalham o passo, que nome leva a areia que nos escorre pelos dedos. 

É preciso dar nomes às coisas e, sobretudo, "chamar os bois pelos nomes" (recorrendo à sabedoria popular) - é que é fundamental nomear, mas com propriedade. É preciso saber dizer “tenho dúvidas”, em vez de emitir um julgamento apressado só para dizer que se sabe o que é. É preciso saber dizer “tenho medo”, em vez de nos refugiarmos em argumentos lógicos de sensata cautela, é preciso saber dizer “custa-me”, “dói-me”, em vez de encolher os ombros e dizer que são coisas da vida ou do destino que fingimos aceitar. E depois fazer perguntas até obter a resposta certa, verdadeiramente condensadora, até responder claramente a “isso é o quê - qual é a palavra?” (como diria alguém que conheço). Também é preciso saber dizer se uma coisa é “amizade”, ou se já não é, ou se ainda não é. E se outra coisa é “amor”, ou se já não é, ou se nunca foi. E saber dizer o que é cada coisa afinal. É fundamental dizer o nome daquilo porque sofremos ou lutamos, que descartamos ou em que acreditamos, saber dizer o nome de que são feitas as coisas que somos, que sentimos, que vivemos.

Como escrevia ontem das lágrimas presas, que no misto do que sentia não sabia bem de que eram feitas: "Até a elas é preciso dar um nome para que se resignem a existir." E sinto o mesmo com todas as coisas de mim que vagueiam por dentro, sem verdadeira existência porque ainda sem nome, e que, porque não nomeadas, não articulo num texto que faça o mínimo sentido. Mas, atenção: não é uma escolha fácil. Porque depois de materializar a coisa, não há como fugir dela. Seja ela o que for, e tenha as consequências que tiver no texto com que se vai escrevendo a vida e nos vamos descrevendo a nós; seja uma pacificação, seja um tumulto, seja simplesmente deixar correr umas lágrimas.

Sem Nome

E lá fico eu torcida, tolhida, engolida pela angústia que sobe por mim acima, que entra por mim adentro. No misto da culpa, da raiva e da dor de saber o meu pequenino doente, recaído, nas mãos de outro que não eu, outro que não fez caso das minhas recomendações e que me devolve agora, assim sem mais, a notícia da doença entranhada no meu filho. Aquele de quem ainda tenho de ouvir uns gritos histéricos, de indignação que apenas esconde a óbvia incompetência, porque ele saiu daqui quase bom na 6ª feira, e ontem fez tudo o que não devia, ao contrário do que pedi, e hoje está pior e não tem lá a minha mão e os meus olhos, a sentir-lhe e a ver-lhe a febre subir antes de ser gritada pelo termómetro.

Neste misto estranho de sentimentos, de incapacidade, de falha, de dor, apetece-me chorar e não consigo. Porque não sei o que chora mais alto, porque não sei de quê são as lágrimas, e até a elas é preciso dar um nome para que se resignem a existir. Queria estar com ele no meu colo, queria vê-lo a cada minuto, queria ser eu a dar-lhe os medicamentos para ter a certeza de que nada mais pode ser feito para que melhore depressa. E esta distância, e esta prisão de fora, serve apenas para me carregar com um peso enorme de tristeza e angústia, exilada do meu papel de mãe, numa desterrada terra sem nome, terra de ninguém.

Escrever ou não escrever

"Ganhei" um dia de férias antecipadas, porque o miúdo acordou com febre e hoje falharam-me todos os recursos do costume. Tive mesmo de ficar com ele, que não tem nada de grave e, quando eu já me castigava mentalmente pela anotação irreflectida que não era mal pensado que tivesse assim uma pontinha de febre mais vezes, que fica um sossego - o rapaz (tadinho..., pronto, eu sei, não é coisa que se diga), lá espevitou a massacrou-me a cabeça o resto da tarde, porque o pai nunca mais chegava para o levar (que é dia de mudança, e lá vai ele para uma semana de casa de pai, e eu para uma semana de dias de mulher), e não percebe um atraso de 2 horas. Só não foi grande coisa o "negócio", porque deduziu um dia na semana que estava planeada para o fim do ano, e vai-me complicar a vida. E também porque, como é óbvio, não gosto que esteja doente e, na verdade, enquanto a febre não cedeu e tive a certeza que não era grave, andei aqui numa aflição.

Podia ter aproveitado o tempo que fui tendo aqui e ali ao longo do dia para escrever sobre várias coisas, mas não consegui. Porque tenho uma coisa a bailar-me na cabeça desde ontem, uma coisa daquelas insólitas, que rapidamente transformo em recambolesca, e noutro passo esboço em enredo de romance ou mistério, ou melhor ainda, as duas coisas ao mesmo tempo. E deu-me vontade de pegar nisso e deixar correr a pena, e lançar-me novamente num exercício de escrita livre. Depois lembrei-me que nunca cheguei a acabar o conto que aqui fui publicando o ano passado, que nunca chegou a ter título, o que na verdade é bastante apropriado para um conto que não chegou a ter fim. Lanço-me a reler o conto, e depois descubro que não cheguei a publicar tudo o que escrevi, mas que mesmo assim não o encerra.

E agora tenho o bichinho da escrita a crescer, mas o danado tem duas cabeças e duas vontades, e anda a gozar comigo, fazendo-me balançar entre o racional de acabar uma coisa antes de começar a segunda, e o emocional do me lançar onde agora arde a imaginação. E se calhar, depois disto tudo, foge-me a inspiração... O primeiro conto por acabar, começa aqui. O segundo talvez venha aqui parar um dia destes, mas entretanto, se calhar, já arranjava título para o inacabado. Se bem que, para lhe dar um título, melhor era que o acabasse. Caso contrário, sempre é mais consistente sem título, ou pelo menos sólido na sua inconsistência. Sim, sou exímia em enredar-me nas minhas próprias lógicas, e em passar laçadas de angústia à volta de coisas sem importância nenhuma. Mas melhor assim, melhor assim...

Adenda

Andei à procura de uma frase, de que me lembrava da ideia mas sem conseguir já reproduzir, e que tem tudo a ver com o post anterior. Mais uma citação de Antoine de Saint-Exupéry, mais uma lição do meu saudoso avô, que levei mais de 3 décadas a entender:

"O Amor é a única coisa que cresce à medida que se reparte"

Notas

Alguma coisa de muito errado se passa, quando se arrasta uma dor de cabeça quase uma semana, e se chega ao final de um dia, a caminho de casa, guiando em plena noite pela autoestrada, e se tem de percorrer todas as estações de rádio pré-sintonizadas até se ficar pela Antena 2, porque tudo o resto é simplesmente barulho demais. E isto tudo a pensar que, dentro de 30 minutos, é preciso entrar em casa com um sorriso para render a babysitter e não cair para o lado quando um mini-Rambo de 5 anos nos assaltar, exigindo todo o resto de energia e forças que tivermos no fundo dos bolsos, e esgotando até ao fim dos fins o plafond de todos os créditos emocionais que ainda temos. O meu mini-Rambo, de metralhadora e binóculos, assalta-me realmente, primeiro com um “susto” que afinal é uma “surpresa” (porque diz paternalistamente “acha que eu ia dar um susto à mãe?...”) e depois esgota-me e leva-me o espólio de sorrisos, abraços e beijinhos (porque eu sou o “monstro dos beijinhos!”).

Na bancarrota, adormeço pouco depois e, quando acordo de madrugada, de repente sinto-me inacreditavelmente afortunada, com aquela cabeça loira encostada a mim, num abraço aninhado que me diz que, apesar das horas tardias a que chego, e dos momentos que partilhamos parece que sempre em corrida, ainda sou protecção e conforto, e sou amor, tudo espelhado numa expressão de total paz e no ritmo de um sono profundo e feliz da minha pequena âncora; e reflectido pela minha vigília enternecida, apesar do cansaço, apesar da dor de cabeça, pacificamente trocando mais uns minutos de sono tão vital pelo sentir daquele enlace tão único.

Felizmente que ontem foi feriado, e o dia foi de nós dois sem pressas. E depois também de várias horas de sono recuperado, estou hoje sem dor de cabeça finalmente e com um reservatório cheio de mimos para lhe devolver, e atestada de sorrisos e forças e energia para lutar pelo dia fora e chegar ao fim a merecer aquele meu pequeno banco - o meu banco de notas de vida.

O peso de um fio

Uns bons quinze minutos em frente ao espelho, numa profunda dúvida e total perplexidade, com um fio de cabelo entre os dedos. Uns dez centímetros de cabelo branco, (que não adianta tentar embelezar a coisa e chamar-lhe um fio prateado), ali bem na minha frente, a declarar-me peremptório que a velhice chega a todos, e já ali andava escondido há tempo suficiente para ter aquele comprimento. Já sabia que tinha uns cabelos brancos perdidos por entre os louros, que há uns meses a minha cabeleireira disse-me que tinha uns primeiros a aparecer atrás, mas como nunca os vi, não dei grande importância. Só que este, este vi-o, no alto da cabeça, e segurei-o bem destacado dos outros, e não há dúvida: é absolutamente cinzento, tem um brilho diferente, uma espessura diferente - portanto, é um cabelo branco, e oficialmente o meu primeiro cabelo branco.

Fui para o Google, a querer saber se é cedo, se é tarde, se arranco, se pinto, se escondo. E deparo-me, estupefacta, não só com relatos de primeiros cabelos brancos aos vinte e poucos, como com uma série de sites, blogs e afins, a declarar que os cabelos brancos estão na moda, e que até há uma modelo super requisitada só porque tem um cabelo comprido todo branco-cinza, além de celebridades várias, muitas mais novas que eu, a pintar o cabelo ou a fazerem-lhe madeixas de branco (ou cinza). Não me lixem… O cabelo branco numa mulher não é sexy, seja em que idade for, ponto final! E muito menos a uns anos, (poucos, é certo, mas uns que têm de durar bastante), dos quarenta. Umas cãs nos homens, a rondar os quarenta, tem muito charme, sim senhor. Mas numa mulher? Poupem-me…

Claro que hoje arrasto, miseravelmente, o peso deste fio a crescer-me na cabeleira. É verdade há dias em que eu própria admito que já não sou uma menina, e me sinto velha para algumas coisas, apesar de me darem sempre muito menos idade do que tenho (chego a chocar algumas pessoas, o que tem a sua piada). Sendo que o conceito de velhice é sempre muito relativo (basta lembrar o que era ser-se “velho” quando tínhamos 20 anos), o certo é que o meu conceito de “velhice de 37” não incluía, definitivamente, cabelos brancos. Há um limite para o que se tolera que seja o corpo a definir! E ainda não decidi se arranco ou não o maldito, se me rendo ao inevitável ou se me recuso envelhecer assim tão obviamente e tão cedo. Sim: “tão cedo” - porque se sei que 37 é tarde demais para muita coisa, acho que ainda é cedo para ser velha. E entretanto, porque há que descarregar isto em algum lado, agora ando a tentar decidir a quê, ou a quem, atribuo a culpa por ele.

Aquecimento

Vem um dia, uma manhã, e de repente percebe-se que, mesmo que o sol não brilhe, e mesmo que as mãos não aqueçam, e que a ponta do nariz gele, o tempo não dorme e corre sempre à frente. Corre o tempo e, com ele, corre a vida. “E da vida, enquanto vivemos, não há maneira de fugir”, já dizia o meu Pai, e nisto acerta bem. É hora de ir à luta. Está claro que, diz o ditado, quem vai à guerra dá e leva. E sabendo bem que, às vezes, nos tornamos um perfeitos sacos de boxe, há que dedicar tempo à preparação e entrar no ringue como concorrente. Não há é ligaduras que sirvam ao coração, nem luvas onde caiba a alma, e por isso não há outra preparação possível que não a de nos cobrirmos com optimismo, alinhar os amigos em fileiras de tropas de reforço, e metermos no bolso, assim como assim, uma boa dose de prudência para ter sempre à mão. Mas não sei porquê, hoje que era manhã de enfrentar a luta, agora é tarde de me encolher ligeiramente e sentir assim uma resistenciazita. E hoje que devia ser noite de pisar o chão com firmeza e cabeça levantada, e lá ir atrás do tempo e da vida, está-me a parecer que vai acabar por ser noite de manta e sofá, a fugir dessa dupla malvada. É que também, de repente, as tropas alinhantes do programa não me parecem tão aliadas assim. E uma pessoa vai à guerra sabendo que arrisca - sim, é verdade -, mas precisa de saber que tem para onde se retirar com dignidade.

Assim sendo, talvez de volta ao meu sofá, na companhia da manta e de um bom livro, saberei que a minha solidão tem um propósito genuíno, e será apenas uma recusa de que me roubem a paz, e me derrubem no chão, sob o pretexto de me fazerem companhia. Por outro lado, hoje também não me apetece estar sozinha. Tenho mais umas horas para aquecer, para me balançar, e talvez me equilibrar. Veremos.

Nas malhas da rede


Nascemos envoltos pelas malhas dos que nos circundam e sustentam. A malha da nossa rede, aconchegante e segura a princípio, vai-se esticando, entendendo, alargando o nosso mundo à medida dos que abraçamos. Mas a rede não é sempre segura, nem sempre ampara a queda, por vezes enreda-nos, prende-nos no emaranhado que cria à nossa volta, ou larga-nos desavisados, tombados de um buraco, uma fragilidade da rede que não vimos nem esperamos, onde o abraço afinal não chega.

E então, as desilusões, as decepções, o acordar para a triste realidade de que nem todos são o que aparentam, alguns não sentem o que dizem sentir, nem sempre a rede nos sustenta, o desencanto faz-nos dar razão ao ditado do "mais vale só que mal acompanhado". Começam a cortar-se laços, a reduzir a rede, e com o tempo ganha-se à vontade para, e vontade de, reduzir cada vez mais. Até ser exígua a rede, de malha apertada, que não nos segura – antes nos prende, enredados em nós próprios, sem espaço de humanidade. Solitários, cortados os laços, minadas as pontes, fechada a rede na curta distância do seguro, na ilusão de que só até ali chega o abraço; e tristes, sentindo a falta dos outros. 


"Num mundo que se faz deserto, temos sede de encontrar um amigo."
Antoine de Saint-Exupéry.

Promessas



Se todo o ser ao vento abandonamos
E sem medo nem dó nos destruímos,
Se morremos em tudo o que sentimos
E podemos cantar, é porque estamos
Nus, em sangue, embalando a própria dor
Em frente às madrugadas do amor.
Quando a manhã brilhar refloriremos
E a alma beberá esse esplendor
Prometido nas formas que perdemos


(Sophia de Mello Breyner Andresen)

Rescaldo

Estes dias passaram em ciclos de vazios e supérfluos, que procuro à falta de melhor alternativa, e que servem quase perfeitamente para fingir que encho o buraco negro da fome, da ânsia, da ganância daquele indefinível e quimérico tudo, que (ingenuamente talvez), acho que me encheria a alma. Absurdo e inútil, é claro, encher um buraco com vazios. E nestes tempos de névoa densa que me torna opaca, tempos em que um escudo invisível me desliga o motor da busca, e um filtro se impõe sobre o que assoma de dentro, recolho de fora, observando, captando, os detalhes que geralmente perco quando é mais o que projecto do que o que recebo. Há um egoísmo invertido quando nos damos demais. Tornamo-nos egoístas também assim, porque na azáfama ensimesmada de passar de nós a uns quantos que escolhemos, não recebemos o que vem de fora, sobretudo de quem não contemplamos na dádiva. Estranho autismo. E há tempo de dar e de receber, há tempo de nos revelarmos e tempo de destrinçar os outros, tal como há tempo de viver a mil e tempo de parar em contemplação, tempo de futilidades e tempo de coisas sérias. O meu tempo? Paradoxal, como eu, e anacrónico. Encontro-me num tempo introspectivo nublado, vagamente egoísta, projectando-me em périplos de mil à hora, entretida com futilidades que mascaram a angústia de sentir irremediavelmente impossível encher o tal buraco negro, e em extroversões paradoxais na companhia de gente animada, alguns amigos, companhia que ilude a fome, ainda que sob o pretexto de conversa fútil e assuntos triviais. Apressada e faladora mas contemplativa, observadora e, agora, embora aparentemente receptível, muito mais recolhida, mais sentida, mais triste ou dorida, por mais que me vista e calce em tons e formas arrojadas, em jeito de boost de auto-estima. Quem me veja hoje, imaginará de mim tudo o que as peças deliberadamente escolhidas para o efeito projectam com sucesso, e não imaginará o quanto mente o figurino sobre o que passa e pesa dentro do manequim que o veste. E depois irrito-me comigo própria, porque não cheguei até aqui para ser uma fotografia de revista de moda, um cliché ambulante, de valor variável em função da altura dos saltos, da cor do verniz e da harmonia do conjunto. Pois não, mas é o que me safa em dias assim - é o retorno possível. Esvazio-me mais adornando-me por fora, mas faço-o porque o vazio de dentro não posso encher. Não posso, porque hoje não tenho sequer as quimeras por que andei afincadamente a lutar e que, nesse processo, simulavam um animador “quase cheio” do buraco negro, a miragem do oásis mesmo ali ao virar da esquina. Hoje, nem sequer vejo esquina nenhuma, é deserto, não me interessa procurar, estou farta de me dar a queimar ao sol, e apetece-me simplesmente cruzar os braços e proclamar “demito-me”, não dou mais um passo, nem mais um milímetro de mim, sou mais um grão desta areia que me escorregou por entre os dedos e aqui me derramo, sou mais uma duna. E agora venham-me buscar. Virão? Claro que não. Morrerei da espera, ou acordarei um dia tarde demais, ou amanhã a nuvem passa e chove uma água abençoada, ou a minha pré-formatação impõe-se e volto à busca, à vida. Não sei ler o futuro nas cicatrizes que me atravessam, sei que a solução não está no passado, mas sei que o futuro não é indiferente ao que levo de trás em mim. Mas hoje, não posso voltar atrás, não posso andar em frente, e assim deixo cair, frente a esse canto seco-seco que não molha, uma cortina de chuva que me desculpa o não avançar, porque não posso dar cabo do figurino. E recordo uma frase de uma das personagens que admiro - Coco Chanel: "true elegance is refusal". Twisted. As coisas que eu consigo misturar...

Em Letras

              



 

Bolhas

O sentido de auto-preservação é a primeira lei da natureza. Muito ao género do que chamei, lá muito (muito) atrás, o instinto de sobrevivência (engraçado reler este texto). É, de facto, incontornável a necessidade que temos de nos protegermos daquilo que nos faz mal, e inevitável também que, à luz da vivência que se vai tendo, deixemos ao comando do medo evitar “potenciais” situações de risco, mas também nem sempre sabendo identificar o risco - muitas vezes esquecendo que também "nos pomos a jeito" volta não volta. Na verdade, a auto-preservação é (mais do que um instinto), uma responsabilidade – no sentido em que, com maior ou menor sucesso, o ser humano deve caminhar na direcção da felicidade, do seu bem-estar, protegendo a sua integridade, tanto física como moral.

Mas, ninguém pode viver permanentemente num encapsulamento fictício que o afaste de todo o perigo; porque viver é perigoso, amar é perigoso, mas não querer expor-se a esses perigos resulta em não viver, em não amar. Resulta numa bolha de inércia e esterilidade que, perversamente, periga a própria sobrevivência.

Penso, até, que é por causa desse sentido de auto-preservação, de instintiva luta para nos salvarmos, que os obstáculos e dificuldades com que nos deparamos na vida, embora sejam em si “perigos”, são para nós elementos fundamentais de sobrevivência. De facto, além de nos ensinarem a reconhecer iguais perigos à frente, é essa luta por ultrapassá-los que nos impele a agir, a crescer, a melhorar, a realizar, concretizar. Muitas vezes, é a dificuldade do caminho que nos faz chegar ao destino. Pelo meio, claro, reconhecemos também fundamental, vital, acompanharmo-nos de outros, como os amigos. Mas, para fazer o caminho, precisamos tanto dos amigos e das ajudas, como dos inimigos e das dificuldades.

E no amor? No amor, as linhas são mais ténues, as fronteiras são mais permeáveis. É muito mais difícil perceber de que lado está o perigo, onde devemos refugiar-nos, a que destino queremos chegar. Podemos achar que vale tudo para alcançar o amor, e ficar pelo caminho num destroço, porque a busca nos destrói. E podemos, pelo contrário, achar que nos salvamos fugindo das lágrimas e das mágoas, para isso fugindo também do amor. Mas, nessa fuga, também nos selamos herméticos, estéreis, dentro de uma, afinal, muito frágil bolha de sabão.

São dúvidas senhores, são dúvidas…

Mercado sentimental

"You can't put a price tag on love", sim, mas... às vezes, sabemos que pode custar demais.

Geralmente, sabemos que apostar no amor pode custar umas angústias e umas lágrimas. Mesmo assim, o que de bom se viveu, ou se perspectiva viver, é quase sempre benefício suficiente para acharmos que vale a pena - que essas angústias e lágrimas são um preço justo por termos tentado. Como bem resume Antoine de Saint-Exupéry, autor que muito me diz, “A gente corre o risco de chorar um pouco quando se deixou cativar...”. E embora correr esse risco nem sempre seja fácil, é um risco aceitável para a maioria de nós. Já quando sabemos que esses hipotéticos bons momentos podem custar muito mais do que umas lágrimas - aí, tal como refiro no post anterior, a avaliação da relação custo-benefício torna-se duvidosa.

Como avaliá-la, por exemplo, se um eventual amor puder custar uma amizade? É que, em certas equações, para além do preço normal de nos apaixonarmos, ou de nos deixarmos cativar, a amizade, o carinho, o respeito de e por outra pessoa, mais do que um preço, tem um “valor”, resultado de um investimento que já se fez. E arriscar perder o retorno desse investimento, para apostar numa aventura às cegas que, podendo trazer uns bons momentos, nos pode também deixar sem amor e sem amizade, e com as lágrimas e mágoas do costume de parte a parte, parece-me – claramente -, um preço caro demais. Ou um benefício curto demais.

Diz que tudo depende da lisura do processo, da maturidade, inteligência e sensibilidade de ambas as partes. Talvez. Mas, se acredito que de um amor falhado pode resultar uma amizade, acho pouco provável que de uma amizade de que resulta um amor falhado, seja possível ressuscitar a amizade inicial. E, antes disso, a ideia de uma mágoa infligida a outro a quem queremos bem, ou a perspectiva de um ressentimento que nos fique desse alguém, é suficiente para obrigar a pensar pelos menos duas vezes antes de dar um primeiro passo. Acho que, neste mercado sentimental que gerimos sem licença, esta é a operação de maior risco que nos pode ser pedido que avaliemos. Para uma operação destas, mais que simples capital, pomos em jogo um dos patrimónios mais valiosos que temos: um amigo.

Tudo tem um preço

As pessoas também. E às vezes achamos o preço dos outros demasiado alto, como os outros podem achar o nosso. E - claro - também há aquelas pessoas que só nos querem a preço de saldo, ou em quem só contemplamos investir em época de preços baixos. E, ainda, há quem queira e se queira sem olhar ao preço. A bem da verdade, também é um facto que fazemos descontos a alguns.

Ao contrário da maioria dos investimentos, salvo alguma imensa sorte, geralmente aqueles que nos custam mais são mau negócio. Embora ache que é necessário investir para fazer durar e significar um relacionamento, o custo tem de ser baixo. Porque se achamos que o preço é muito alto, é porque achamos que não compensa: a percepção do preço é sempre resultado da avaliação custo-benefício. Ou seja, se o achamos alto, é porque achamos que o benefício é fraco. Podemos investir muito, sem que isso nos custe muito, e então sim - é um bom negócio. Não me parece que um relacionamento, seja de que espécie fôr, tenha de custar. Tem é de valer o preço.

Pago o preço

Finalmente, de ontem também me ficou uma dor nas costas, e um peso na consciência, porque saí de lá quase à 1 da manhã, com o miúdo mais que rabugento e podre de sono, que naturalmente adormeceu pelo caminho, que tive de acordar para andar do carro à porta do prédio (sob tremendo protesto), e que não tive outro remédio se não carregar pelas escadas acima. De vingança, como qualquer criança que se preze, hoje não me deixou dormir grande coisa de manhã apesar da hora a que se deitou, e agora está ferrado a dormir uma sesta, coisa que não fazia há largos meses, e que me vai fazer pagar com o atraso que vai causar à normal hora de deitar. Mas é um preço que pago de bom grado, porque tudo na noite de ontem me soube muito bem.

Revelações II

De resto, da noite de ontem, ficou-me também a admiração por alguém que abre generosamente as portas da sua casa a quem mal conhece, simplesmente porque gostou desse alguém. E um pé atrás por ser uma pessoa que admite claramente que ou gosta ou não gosta dos outros, e que se não gosta não perde tempo. Algo que me levou a pensar, mais uma vez, se não será demasiado redutor recusar aqueles que não têm o dom de nos atrair ou impressionar de imediato. Porque há alguém que, de tempos a tempos, após uma total desinteresse inicial, me faz curiosa de entrar mais, deixando escapar pequenas revelações que ora me intrigam, ora esclarecem, ora me me enternecem, ora quase me entristecem. E que perduram, por exemplo, quando sob um pretexto de circunstância, a sua mão procura a minha, envolvendo-a em voltas suaves durante um estranho minuto, mas que não me dá vontade de largar. E que depois me deixa a congeminar frases recorrendo a expressões como talvez, se calhar, quem sabe?

Ou talvez também seja porque detestava inicialmente uma das minhas melhores amigas - a que trago no coração há mais tempo e que resiste sempre apesar de algumas mágoas. Era recíproco, até um dia termos partilhado um desabafo que, insolitamente, desencadeou uma imediata compreensão recíproca, e num repente nos fez mostrarmo-nos por dentro uma à outra. E, como que em espelho, reconhecemo-nos o fundo, o que nos levou rapidamente a firmar um laço profundo.

Por isso acho que, embora eu também seja muito intuitiva e imediata nas empatias que estabeleço, também não sou totalmente incapaz de aprender a gostar de alguém. Num contexto de amizade ou até num contexto amoroso. E acho, também, que isso é resultado de não ser completamente inflexível, de ser capaz de admitir erros e mudar de opinião, e ao mesmo tempo capaz de perdoar ou tolerar diferenças. Alguma coisa me diz que, quem não é capaz de dar uma oportunidade a outro só porque a empatia não é imediata, também não será muito tolerante à incontornável necessidade de adaptação ao outro ou de eventual perdão de momentos menos edificantes. Gosto pouco de surpresas, mas as que são positivas sabem sempre tão bem que acho, ainda muitas vezes, que devemos dar-lhe uma hipótese.   

Revelações I

Da óptima noite de ontem, fica-me uma descoberta surpreendente: os homens acham que nenhuma mulher poder ser sexy dentro de um vestido de noiva, e não entendem essa nossa coisa de achar que podemos ficar o máximo dentro de uma "tenda", "ainda por cima branca", cheia de folhos, rendas ou laços, ou tudo junto dependendo do mau gosto. Como sempre, esta revelação de pouco me adianta, pois não tenciono voltar a casar. Mas acho que estes espécimens em concreto, viram poucas noivas, e falta-lhes imaginação para pensar no que vai por baixo dessas "tendas". Estranhamente, todos os defensores deste ponto de vista são divorciados. Estranhamente, mesmo as mulheres divorcidas não conseguem disfarçar o quanto um vestido de noiva carrega, ou encerra por dentro, em cada prega, folho ou renda cuidadosamente, amorosamente, credulamente escolhidos. É um símbolo para as mulheres, que retorcidamente pensamos que nos espelha por fora tudo o que sentimos que encarnamos ao vesti-lo, e por isso achamos que nos torna lindas. É simplesmente um objecto para os homens, que ainda por cima esconde dentro aquilo que realmente lhes interessa. Há coisas em que os homens são cruelmente práticos, friamente racionais, e estranhamente inimaginativos. 

Hoje

Eu amo tudo o que foi
Tudo o que já não é
A dor que já não me dói
A antiga e errónea fé
O ontem que a dor deixou
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia.

(Fernando Pessoa)


E assim se pode avançar. Certo. Só é preciso que já não doa. Todos os dias, pelo menos.

Coisas em que os livros me deixam a pensar






Uma história de amor não correspondido, uma história de amor desencontrado, adiado, uma história de amor que deixa corações partidos, orgulhos feridos, uma história de amor com detalhes sórdidos, momentos tórridos, uma história de amor com lágrimas frias, com mãos vazias, não deixa nunca de ser uma história de amor.

Talvez, até, estas sejam as únicas histórias de amor puro.

Uma mão cheia


Uma mão cheia dele. De cinco anos de sorrisos e lágrimas, muita angústia, mas também muitos abraços, apertados, quentes, sentidos. Parabéns ao meu pequenote já tão grande, mas que ainda me salta para o colo e me faz ninho, enrolando os seus braços à minha volta. A pequenina pessoa que me enche de tanta coisa, e que me significa, no que de melhor deixo no mundo. A única mão cheia da minha vida. Abençoado seja.

Nem de propósito, mas muito a propósito



"Que esta minha paz e este meu amado silêncio
Não iludam a ninguém (...)
Acho-me relativamente feliz,
Porque nada de exterior me acontece
Mas, em mim, na minha alma,
Pressinto que vou ter um terremoto."

(Mário Quintana, encontrado aqui)

A esta minha paz e silêncio ilusórios, a esta relativa e aparente felicidade morna, chamaram um dia "o meu sorriso de Mona Lisa". Tenho-o cristalizado por estes dias, enquanto procuro alguma coisa onde me agarrar, antes de ser sacudida pelo abalo interior que se avizinha, esse que pressinto, enquanto a tristeza melancólica das minhas ondas de maré vazia se vai transfigurando. E muitas coisas, tantas coisas, ganham para mim, nestas alturas, contornos diferentes. São dias de conjectura, de "e ses", para trás e para a frente, tentando talvez iludir a vida, como se, ao dissecar e re-equacionar os factos, as memórias, os  sentires, procurando formar com eles um padrão diferente, conseguisse um outro resultado final. Mas a equação não muda de significado se mantém os mesmos factores, mesmo que os ponderemos de forma diferente. E depois, por outro lado, há exercícios que não devemos fazer, há cenários que não se podem projectar, porque há factores, personagens, que não devemos pôr em cena, sob pena de nos termos de retirar. E um dia treme o chão, e podemos ver claramente o que não tem alicerce, e podemos ver claramente o que não abala, podemos ver-nos claramente o tutano. Enquanto esse dia não chega, resta a espera, por vezes em fuga.

Melancolia

A minha melancolia é uma maré vazia. É um ciclo em que o meu mar retrai, deixando fora da linha do horizonte a sua imensidão, deixando longe as fortes vagas, a brava espuma. É uma maré que apenas deixa chegar à praia pequenas ondas, frágeis, cansadas, que varrem a areia com lentidão e tristeza.

A minha melancolia é uma mão vazia. É uma solidão, uma ausência, é cinco dedos que nada tocam. Dedos sem sentido porque nada lhes exige a força e o engenho de segurar ou amparar. É uma mão que não passa calor nem expressa sentimentos, que apenas se move, vagarosa e fria, ao som do silêncio.

A minha melancolia é uma estranha nostalgia. É uma saudade do que foi e do que ainda não foi, numa mistura de tempos e realidades. É um desejo de passado e uma saudade de futuro. É uma nostalgia doce das dores que já sofri, e um sofrimento nostálgico pelo que ainda não vivi, que me cala a voz e me fecha num tempo que não existe.

I Dare...

Costumo dizer, em jeito de desculpa, que certas coisas me gritam "Try me!" por detrás das montras das lojas, (ou por detrás de outras barreiras que agora não vêm ao caso), e o que é que eu posso fazer?... São aquelas coisinhas que estão mortinhas por virem comigo, que estão mesmo a "pedi-las", ali tão à mão de semear e tudo, e que sei que posso ter, e que sei que é fácil, e então faço-lhes o jeitinho. Mas, muito raramente, tal como certas pessoas, há coisas que simplesmente me sussurram, descarada e desafiadoramente, que não pedem humildemente que as experimente, que as leve, que as escolha - essas outras danadas perguntam-me antes, com um piscar de olho, "Do you dare?..."

Ai os desafios, as dificuldades, a adrenalina do perigo, da experiência do menos convencional... Atrevo-me? Não me atrevo? Aceito o desafio? Não aceito?... E depois, claro, não resisto. Não suporto que alguma coisa se insinue boa demais para mim, ou que eu não estou à altura, ou - pior - que me falta coragem. Isso... bom - isso dá-me cabo dos nervos e é até capaz de me enviesar o raciocínio. E quanto mais difícil mais quero, e quanto mais inatingível mais luto, e não és Princesa não és nada, se não consegues calçar uma coisinha assim!...

Se me vou arrepender? Pois pode ser que sim. Mas estes não ficam na caixa, disso tenho a certeza, porque mesmo que seja só uma vez, um dia sei que acordo com aquela louca necessidade de mostrar ao mundo, e a mim própria, que posso ser o que quiser, que sou eu que decido o que me serve, e tenho o que quero ter. Porque há poucos desafios que eu não enfrente, mas não recuso os desafios de mim própria - que esses eu sei que posso vencer, e os outros, há que reconhecer, por vezes não chego para eles. Por isso, I dare, sim senhora... I dare myself, nem que seja por um simples par de sapatos! Há que praticar, e de preferência com coisas simples. 

Dose dupla

Em dois dias, vi-me posta à prova, a engolir as minhas próprias palavras. Pois sim, não há nada melhor do que o abraço de um filho, mas por vezes a sucessão de birras, asneiras e chatices bate qualquer um. Foi um sábado de programa de cinema, a começar com uma saída de casa atribulada (e molhada) por causa de uma teima com o guarda-chuva. Um almoço de fast-food, em “assentos de nave espacial”, que levou hora e meia a ser acabado, com tanta parvoíce e brincadeira que se deu pelo meio, o meu e mais um, companheiro do programa. Fora as porcarias, a comida que caíu, as bebidas que se entornaram, as camisolas que se pingaram. Seguiu-se o filme, onde ao fim de 15 minutos já andava no senta-levanta, com as pipocas e a água em constante idas e vindas entre as minhas e as mãos dele. Passagem pelo supermercado, com nem sei quantas mini-birras, desde a que começou com a escolha do carrinho, quem empurra, quem arruma, quem escolhe, o que escolhe, quem põe na caixa, quem põe no saco, quem carrega nos botões do multibanco. Mais birra porque não queria ir para casa e dizer adeus ao amigo, e mais birra para tomar banho, e depois para jantar. Caiu na cama exausto, mas eu também. E hoje, foi o dia das asneiras, já lhes perdi a conta, a enfernizar-me a cada passo que dava e a exigir que fizesse jogos com ele a cada tarefa doméstica que iniciava. E no fim, depois do banho do temível “hoje-é-dia-de-lavar-a-cabeça”, já com tudo encarreirado e o jantar à espera, ao secar-lhe o cabelo descubro... piolhos. Piolhos, por Deus, piolhos... Apenas e só “a” coisa que me tira do sério, que só de os imaginar a passarem para mim fico doente. E dadas as horas, não tive hipótese se não passar o pente da tortura, felizmente constatar que não está infestado, (saída mais fantástica: eu - "quieto, que está aqui um piolho!"; e ele, voz de sofrimento - "depressa mãe, depressa, que ele está-me a puxar o cérbo!"); dar-lhe o jantar, e amanhã de manhã lá vai ele para a barrela com a mistela nojenta do “remédio-dos-piolhos”, que espero que chegue para ele e para mim a seguir, que eu nestas coisas não brinco. E depois são os lençóis e fronhas e etc, tudo a lavar, secar e engomar, em cima do que já é normal, que vou ter mesmo de dividir com a minha empregada que não vai dar conta do extra. E isto na semana em que inicio mais um projecto exigente, e que por isso queria iniciar bem descansada. Maravilha. E agora, nem quero um abraço dele, que não quero aquela cabeça perto da minha, apesar de não saber se não me passou já a agradável hospedagem. Em dias destes, não me importava muito de o mandar para casa do pai, e ficar só com as conversas e sorrisos telefónicos... À distância segura dos piolhos e com as birras e asneiras em versão de terceira pessoa. Que dose!

Há dias

Depois há outros dias. Há outros dias em que parece que a vida avança amena, sem grandes tristezas mas também sem grandes alegrias, com as peças deste tetris da existência a encaixarem-se como deve ser. Ou calham-nos umas peças em falta, ou conseguimos rodá-las convenientemente, e lá se vão umas quantas linhas de problemas. Há esses outros dias em que nenhuma questão filosófica profunda nos assalta, e em que rodamos ao sabor das obrigações e das necessidades mais prementes, em que nos contentamos com a mera existência sem grandes questões. Há estes outros dias em que não se carregam lastros, que se largaram por uns tempos numas linhas da alma ou num lenço de papel deitado no lixo, dias em que os problemas, por maiores que sejam, são apenas factos da vida encarados com naturalidade, que se vão resolvendo como se pode, sem a angústia do costume. São uns dias chatos, cansativos. E são raros. Mas há. Acho que felizmente. 

Primordial

Crescer com falta de afecto é um frio que se carrega para a vida, que tantas vezes me faz temer um destino gélido. Da minha infância, lembro-me de muito pouco. Lembro-me de ser maria-rapaz apesar dos tu-tus do ballet, a mais velha da minha geração, sempre a comandar as tropas para a asneira. E a ser constantemente castigada, mesmo quando não tinha culpa, simplesmente, dizia ela (quando o admitia), por ser a mais velha. Lembro-me sempre da frieza dela, quase desprezo, dos desabafos de enfado. Algumas vezes com todas nós, outras vezes em especial comigo. E lembro-me de ter ciúmes das minhas irmãs, mas andar sempre a protegê-las. A dar-lhes os abraços e os mimos que não tinha, e a cumprir os castigos que não merecia. Lembro-me de me sentir sempre “menos” para ela. Menos que elas, e todas nós menos que tudo o resto. É triste sentir essa clara marca de inferioridade naquele que é o laço mais primordial, sentir que nenhum amor pode ser seguro, nem o de mãe, esse que é suposto ser maior que tudo, e para mim não foi. Dele, lembro-me da ausência e da distância, das viagens, do cachimbo e dos jornais no silêncio que não podíamos quebrar. Lembro-me de não me lembrar da cara dele a certa altura, de não me lembrar de um abraço dele, de não lhe conhecer o colo.

Mas hoje, não sou gélida. E comovo-me ao ler da minha irmã caçula que me adora (e que eu adoro), e que me "adorou imensamente" quando só eu me lembrei de um valente abraço face à notícia da chegada da cegonha. Comovo-me, porque gosto tanto dela, porque sei que esse abraço sentido assim por mim me revela ainda quente, que esse abraço sentido assim por ela a revela ainda quente, e esse nosso abraço sentido assim pelas duas não deixa margem para dúvida que a frieza em que vive a nossa família não é normal, mas não nos venceu.

Deseja ela, a caçula, ser mais “competente afectivamente como mãe”, enquanto se angustia já com o saber que nada será como dantes. Mas eu sei que ela será uma mãe maravilhosa. Digo-lhe isso e mais, como já escrevi aqui: que um filho é uma dádiva, mesmo quando nos exaspera, e faz birra, e faz asneira, e nos azucrina o juízo, porque também nos dá um amor total, nos permite dar um amor total, receeber um sorriso puro e todos os grandes abraços de que precisamos. Todos esses que nos faltaram e faltam ainda tantas vezes. Podemos falhar em muitas coisas, que sei que falho - e ela falhará, no seu natural caminho de aprendizagem. Mas num colo, num carinho, num abraço, com um filho não falhamos, porque sabemos o que dói faltar. E essa falta pode ter-nos feito um bocadinho avariadas, pode até nem nos ter feito mais fortes, mas se não nos gelou, fez-nos muito mais conscientes de onde não podemos faltar, para não falharmos nós no amor primoridal que queremos dar.

Juras de Amor

As juras de amor são palavras. São frases e textos, monólogos ou diálogos, que é suposto dizerem, pelo tamanho do amor que se sente, o quanto vai durar esse amor. E quando se diz que é enorme, imenso, inabalável, e que vai durar para sempre, certamente, não se espera que morra em três tempos. As juras de amor, mesmo que de um amor sem consequência, seja por condicionantes da vida, seja por não correspondência, podem não se cumprir no tempo que demora demais, mas não podem é ser mentiras banais. O prazo é difícil de estabelecer - é certo. Não sei quanto tempo leva um amor a morrer. Sei que pode viver de nada mais do que memórias e vontade de o perpetuar por bem mais de um ano, pelo menos. Dizem que até pode mesmo durar para sempre, mas isso ainda não pude comprovar. O que sei é que, se é compreensível que comece a diluir-se, a apagar-se, depois de mais de um ano de espera sem esperança, não o é se já se foi ao fim de poucos meses. Se isso acontece, se as juras de amor só valem para três meses de ausência, então não era amor, e quem mais jura mais mente.  

Inside Out?

(Adenda ao último post)

Ou seja: antes vestia por fora as cores do que me ía dentro. Agora, quero vestir por dentro as cores que escolho para fora. Mas quando as escolhi, para fora, guiei-me pela vontade e pelo instinto, o que me diz que, por dentro, essas cores já têm que lá estar. Coisa tortuosa...

Statement


Há uns anos, o meu roupeiro era cinzento. E bege. Monotonia total. Com o trabalho das arrumações quase terminado, e porque tenho a mania de organizar as coisas por cores, chego à conclusão que agora não tenho praticamente nada cinzento, muito pouco bege, um degradé de cores bastante variado, e depois, na ponta de cada secção, uma quantidade parva de coisas pretas.

Primeiro choquei-me. Depois preocupei-me. Depois pensei que do cinzento ao preto é uma vitória. Porque o cinzento é uma mistela de uma cor sem alma nem carácter. E o preto é, muito francamente, uma afirmação. Tal como a alargada paleta de cores que agora medeia o branco e o preto, sem quase passar pelos cinzentos (que embora ainda tenha alguns, são no entanto peças especialmente marcantes pela forma ou feitio), e que complementam o figurino. Tudo pronto para levar para a rua, e a ver se esta definição se impõe sobre os cinzentos melancólicos do desencanto e do descontentamento, que ainda visto por dentro tantas vezes. Porque realmente, black is beautiful, triste é só para os velórios e, mesmo assim, não deixa de ser um statement: é assumidamente triste, mas é assumido. Noutras ocasiões, é simplesmente distinto. Ou gosto de pensar que sim.

No easy way out

Não nascemos para a facilidade. Queixamo-nos sempre das dificuldades, do que não é linear, líquido ou transparente, mas, na verdade, parece que quanto mais difícil é um caminho, mais vontade temos de o seguir, e mais nele persistimos. E as vitórias na vida que mais nos custaram alcançar, tal como as derrotas das batalhas em que mais penosa e longamente tivemos de lutar, são as que lembramos ao olhar para trás. Das vitórias fáceis, tal como das derrotas de guerras em que nem quisemos entrar, quase nem nos lembramos. É que a única medalha destas batalhas da vida, que temos direito de usar para sempre, é, mesmo, uma medalha de mérito. E a medição do mérito pertence à consciência, depois de medida a dificuldade da guerra.

Ainda da Normalidade

De Aristóteles:

“no excellent soul is exempt from a touch of madness”.




Pergunto-me se o meu grau de insanidade me qualifica. Talvez não. É certamente mais que um “touch”.

Vice-Versa

Gostava, às vezes, de voltar a ter a capacidade de dar vida às histórias simples, que se lêm e se ouvem, e que mesmo sem fazer sentido, se fazem reais. Talvez assim pudesse escrever a história da minha vida daqui para a frente, e pudesse lê-la e contá-la e vivê-la. E isto a propósito da leitura de mais uma história infantil da hora de deitar, há minutos atrás. O meu filho, no fim, depois de ter seguido atenta e animadamente: "sabe o que eu fazia se estivesse dentro dessa história?". E sabia, sabia muito bem o que faria. Acho que o pior para mim é mesmo pensar que, para além de já não acreditar nas histórias dos outros, onde hoje descortino num ápice todos os erros de trama e enredo, pelas mesmas razões não consigo escrevê-las eu, e já não sei o que fazia, realmente, se me visse dentro de uma história de final feliz. Para imaginar, também é preciso acreditar. E vice-versa.

It takes one to know one


Pergunta-me o que é que eu procuro num homem. Penso em várias características que aprecio, em paralelo com os exemplos vividos que me vêm à mente, ora por semelhança, ora por oposição. E por fim desabafo, assim de repente, que queria apenas um homem normal. Assim só: normal. Depois penso que um homem assim - simplesmente normal-, se é que existe, me daria cabo dos nervos. Porque eu - eu não sou normal. Não preciso da permanente constatação do facto por óbvia oposição. Preciso de alguém que, sendo também um pouco fora do padrão, tire comigo, dessa anormalidade, uma perfeita e natural conclusão.

Cheiros de Memórias

Ela tinha uns doze anos e a noite era de trovoada. As férias da família, de volta às raízes, dividiam-se por duas casas – a “de cima”, onde vivia um dos seus tios, e onde se juntavam às vezes ao jantar, e a “de baixo”, que albergava os que estavam de passagem. Eram serões de longas tertúlias de adultos, em que ela já queria participar, mas onde só o avô lhe garantia presença, com ouvido atento e palavras provocadoras a espicaçar o intelecto. Quase todos desceram numa aberta da chuva, carregando ao colo os mais novos já adormecidos. Ela quis ficar e o avô (sempre o avô) garantiu a extensão excepcional da hora de deitar. Mais tarde, noutra aberta das águas, desceram juntos. Era noite escura-escura, no meio do campo sem o brilho dos candeeiros de rua da sua noite citadina. Era terra e gravilha que não se via por baixo dos pés, não era calçada de pedras claras à vista. E todos os sons eram silêncios estranhos. Ao fim de uns metros, teve medo. Ouvia os passos pesados no compasso militar do seu avô, que abafavam o som dos seus passos hesitantes, que tentava em vão ritmar de igual modo; via os relâmpagos, que por breves instantes a deixavam vêr o caminho, e ouvia os trovões que a deixavam a tremer. Mas calada. Sem um ai. Que ele não era homem dessas coisas. E ela não queria perder-lhe o respeito.


A meio do caminho silencioso entre as duas casas, ele diz: “Inspira bem. A que te cheira?”. Ela apercebe-se então do odor forte que enchia o ar e, um pouco espantada, responde: “cheira a molhado”. Ele ri-se e diz: “é o cheiro de terra molhada. Um dos melhores cheiros do mundo”. Seguiu em silêncio mais uns passos, gravando aquele cheiro na memória. Continuava com medo, mas tinha-se esquecido da trovoada. Até que surge mais um relâmpago no céu e, de imediato, ele explica-lhe o fenómeno e ensina-a a contar os segundos entre o clarão no céu e o som do trovão, para saber a que distância está a tempestade, e assim saber também se se afasta ou se se aproxima. E contando os segundos, ela vai percebendo a tempestade a distanciar-se - e faz o resto do caminho em total tranquilidade.

A que lhe cheira hoje a terra molhada? Cheira a ternura e saudade, do seu avô. Aquele Grande-Homem-grande que, na sua imensa inteligência e generosidade, soube confortá-la sem a diminuir numa noite tempestuosa, guiando-a por um caminho escuro-escuro de medo, no seu espírito de liderança de oficial do exército, deixando-lhe mais uma gota de sabedoria que não havia nunca de esquecer. Aquele homem de afectos profundos, sentidos, mas muito pouco demonstrados às claras. Não dava beijos nem abraços – não era mesmo homem dessas coisas. Mas sabia ouvir, sentir, e o que dava, dava de coração. Por isso, nessa noite, como tantas vezes, sem a tocar, soube dar-lhe a mão. E, hoje, a chuva traz-lhe sempre a memória de um dos melhores cheiros do mundo.

(Inscrito no desafio de Outubro da Fábrica de Letras)

Convicções


"Earth to earth, ashes to ashes, dust to dust;
in sure and certain hope of the Resurrection into eternal life.”


Felizes dos que se apagam com a tranquilidade dessa convicção, que deixam quem cá fica com um suave até sempre. Assim foi ela: em paz. Mas para os que ficam sem essa convicção, não há conforto na despedida, por maior que seja a serenidade de quem parte; porque, para esses, é convictamente um saudoso e difícil adeus.

Adeus. 

Memórias Encerradas

Faz-me uma cara de espanto e clama “olha!”, repetidas vezes, enquanto parece querer absorver-me com os olhos. Não consegue dizer mais nenhuma palavra, mas repete o “olha!” de tantas maneiras diferentes, passando da surpresa e do contentamente à comoção de um timbre mais baixo e lento, que me comove a mim também.

Passo com ela uma manhã, tratando-a como se fosse uma criança. Que anda devagarinho e com apoios porque pode cair, que não consegue segurar em nada que pese mais do que umas quinhentas gramas, que não consegue vestir-se sozinha, quase não consegue comer sozinha, e nem sequer consegue articular as palavras que permitam estabelecer a sua vontade. Penteio-lhe os cabelos já todos brancos, mas muito macios, e ela fecha os olhos em frente ao espelho. Ponho-lhe os ganchos com cuidado, que sei que é frágil e duvido da minha competência, tenho medo de a magoar. Depois pergunto-lhe se ficou bem, e ela olha-se e diz com um sorriso “ena!”. E “ena!” repete-se também um número de vezes em diferentes entoações.

Não me larga as mãos das suas, muito magras e quase transparentes, que evito olhar porque me ofende ver-lhe os ossos e as veias, e a vida a fugir dali. Olha-me para dentro dos olhos, com os seus lindos olhos verdes raiados de azul, que parecem ser a única coisa que não envelhece. À sua maneira, com o pouco que consegue articular, vai-me perguntando pelo meu filho. Lembra-se do abraço que ele lhe deu no Natal, sabe o nome dele mas não consegue dar-lhe a volta na boca. Franze a testa enrugada, contorce a expressão e fecha os olhos num misto de frustração, zanga e tristeza, a cada palavra que quer dizer e não consegue. E eu tenho de lhe dizer que não faz mal, já se lembra e diz-me mais tarde, devagarinho avó, com calma.

Saio de lá sem conseguir almoçar, um nó no estômago. Doi-me a cara de tanto me forçar sorrisos para disfarçar. Invade-me uma tristeza e uma revolta, e sinto o peso da culpa. De facto, não sei lidar com isto: com a morte a chegar, a comer aos poucos os corpos e as palavras dos que amo. Devia ser mais forte, devia saber vesti-la sem me chocar com o corpo definhado, devia aceitar que o braço direito já não mexe e ficar feliz porque ainda mexe o esquerdo, devia contentar-me com as palavras que ainda me consegue dizer e ler o resto no olhar. Mas não consigo, estrangula-me, agonia-me, numa recusa mista da realidade dela hoje e do que pode ser o meu próprio destino. Percebo que já encerrei dela as memórias que quero manter de quando “era uma senhora tão alta”, como diz tristemente a empregada que me vem render e apoia suavemente o braço daquela senhora agora tão pequenina, curvada, mirrada.

Pergunto-me como não enlouqueceu ainda, sabendo que a cabeça ainda funciona perfeitamente - entende tudo, ouve muito bem, reage com a expressão ou com o riso com todo o entendimento do que se lhe diz, mas perdeu a capacidade de falar. Tem as palavras na boca e não as consegue articular. Que sofrimento há de ser. Fico a pensar que tantas vezes calo as minhas palavras de dentro, e o que daria ela por poder fazer-se ouvir. Diz-me que lhe faz impressão olhar para os meus olhos. Mas não consegue explicar porquê. Faz apenas um sorriso triste, ora mexe em tudo o que pode à volta dela, ora não me larga as mãos, e não desvia os olhos, e eu fico sem saber que me viu ela no olhar, que memória ou identificação lhe terá cruzado o pensamento e ficado presa na garganta. Na minha ficaram as lágrimas, que me faltou chorar. As lágrimas que lhe devo no dia em que não a puder mais olhar, mas puder vê-la como a quero recordar.

Reeditado, hoje, o dia em que choro enfim as lágrimas que lhe devia.

Queria o vento

Queria um sopro forte, muito forte. Uma ventania desabrida. Daquelas que faz bater as janelas, que muda o ar que se respira, a temperatura que se sente, o sítio das coisas e a ordem dos cabelos. Daqueles sopros de renovação, mesmo que violento. Um vento de mudança - para melhor. Queria. Mesmo.

Já agora, que o vento levasse a confusão espalhada pela minha casa, vítima das interrupções da árdua tarefa da mudança de estação no meu roupeiro. É uma luta. Já faltou mais, e já tenho algumas certezas: compro demais, compro coisas que não devia, ainda assim falta sempre qualquer coisa e, quando mudar de casa outra vez, o que não pode faltar é mais espaço para arrumar.

Faço o mesmo por dentro que faço com as roupas e os sapatos, e os demais acessórios no roupeiro. Sinto e penso demais, faço vivas memórias de coisas que não devia, e também me falta sempre qualquer coisa, para além do espaço para conseguir dispôr tudo de forma organizada, sistemática - e permanente. E as minhas estações interiores sucedem-se em ritmos próprios, às vezes demasiado rápidos, quase alucinantes, obrigando-me constantemente ao caos de pôr tudo para fora, e ao esforço de escolher o que guardar, o que deitar fora, e o que deixar à mão, organizadamente, para usar. A diferença é, essencialmente, no deitar fora. Da roupa e acessórios eu desfaço-me sem problema e, quase sempre, sem pena. Racionalmente sei que não tem mais uso para mim, e como não deito no lixo, mas dou sempre a alguém que precisa, sinto justificado o acto. Das outras coisas de dentro é mais difícil. Porque não as posso dar a ninguém, e nem consigo que se descolem de mim. Sinto que a maior parte do meu interior se tornou uma enorme, e atafulhada, arrecadação. Só não tem pó, do tanto que lhe mexo. Que luta - e que canseira.

Queria o vento, sim, um sopro, uma lufada de ar fresco. Podia ser que me ajudasse a respirar.

A Meio é o Caos

Ainda não estou lá. A limpeza e a arrumação vão a menos de meio, encravadas em coisas mais prementes, em requisitos de ordem prática e necessidade imediata. Ou em dúvidas que surgem, em resistências que me fazem tropeçar, hesitar, e algumas surpresas pelo caminho que me deixam inquieta, que não gosto muito de surpresas e, muito menos, de não saber o que fazer com elas.

Esta coisa de arrumar gavetas traz sempre uma fase de maior caos ainda. Ou talvez seja que apenas torna o caos mais visível, mais óbvio. Certo é que, por agora, o sentir que já comecei a mexer nas coisas, não me deixa tranquila pensando que estou a fazer alguma coisa por resolver as confusões, e que já vou a caminho de maior organização e clareza. Não me deixa a pensar e sentir que, pelo menos, estão começadas as arrumações. Pelo contrário: faz-me sentir que abri as hostilidades. E não sei se, agora, tenho a coragem e capacidade de ganhar a guerra.

Ao mesmo tempo, estou já no meio do campo de batalha, tudo é caos à minha volta, sei que assim é que não posso viver, e não me resta portanto grande alternativa se não ir à luta mesmo. E dos fracos, e dos vencidos, não reza a história. E já caminhei demasiado para me render sem glória, para chegar a esta fase da minha vida e desistir, deitando a perder tudo o que até aqui conquistei e me fez sempre, no fim das contas, resistir. A meio, não fico.

In the Closet

Hoje é dia de arrumações. Se me escondo detrás da confusão nos dias em que prefiro não me ver, então é bom que arrume o disfarce de quando em vez. São coisas, só coisas. Tralhas e trapos de estação que me entretenho a reavaliar e reconjugar com as peças novas que integro, enquanto me despeço das que já não fazem sentido. Enquanto percebo o que ainda me faz falta, e enquanto me rendo ao clima, ao tempo. Não só com as coisas - os trapos.

Hoje arrumo, arejo, limpo e deito fora. Amanhã, quero ver-me no espelho composta, e ajustada aos tempos que correm, e quero sair para dizer um enorme bom dia ao mundo. Já chega de desarrumação, já chega de negação, já chega do armário fechado. Preciso de respirar. E de Prozac - verdade. Mas ainda prefiro procurar outras coisas que não comprimidos.

Missões

"(...) Olhamos à janela de olhos fitos
Longe a claridade além dos rios
Queremos ir com o vento com o perigo
Queremos a injustiça do castigo
Somos nós que a nós mesmos nos matamos
E com mais amor do que quando amamos
Sentimos sobre nós descer o frio"

Sophia de Mello Breyner Andresen

Empirismo

Percebo muito bem o que faço e porque faço, e porque não faço, não digo ou disfarço. A posteriori. Sei porque erro e sei onde está, e porque está, cada cicatriz que me doi. E essa constatação experimental serve de quê? De nada. A não ser fazer doer ainda mais. Quanto maior a lucidez, maior a dor.

Change of Heart


Há coisas que não consigo exprimir em Português. Uma delas é “change of heart”. E porque é tão diferente de “change of mind”. Não sei qual delas manda na outra, acho que têm uma relação às vezes um pouco promíscua. Mas sei bem que dói diferente. Uma“change of heart” é tão mais difícil de suportar, quanto o é de acontecer.

Na cabeça, funciona lógica, factos e provas. Deduz-se uma acusação e proclama-se a sentença racional. Muda-se de ideia em vista de boas razões para o fazer. Já do coração, o processo é mais complexo. Não se podem sentir razões. Sentem-se apenas emoções. Às vezes também despoletadas pelos veredictos da lógica (por isso a promiscuidade - não devia ter nada a ver uma coisa com a outra, mas por vezes misturam-se e dá muito mau resultado), mas geralmente são apenas coisas que se dão, que nos dão, ou que ficam, ou que vão. O processo é alquímico.

Somos capazes de amar um escroque que sabemos que não vale um cêntimo, e não podemos amar alguém que sabemos que merece e nos quer bem. E ora somos capazes de nos lançar em aventuras insanas na vida, num salto de fé que o coração grita, ora não somos capazes de deixar o coração saír do cárcere que a rígida mente dita. E somos capazes de viver com uma fundamentada mudança de opinião, mesmo que seja uma desilusão, mas não somos capazes de viver com uma “change of heart” que nos deixa a sentir sem perdão, que nunca tem propriamente uma razão. Mais ainda quando é dos outros, porque sabemos que não há nada a argumentar, nada a ripostar, nada mais a esperar. Até se dar a nossa própria “change of heart”, provavelmente a custo, penosamente, depois de muita lógica destilada, e muita noite chorada. E mesmo assim, talvez não se dê nunca. Porque é mais fácil o coração imiscuir-se na cabeça e turvar o pensamento, do que a lógica forjar um sentimento, ou forçar outro a mudar.