Atrás da porta

Há muitos anos atrás eu era uma alma solta no mundo, sociável e de muito fácil conquista, porque não fechava a porta a ninguém. E conquistadora também, que gostava de bater a outras portas que se me abriram com imensa facilidade. Um dos adjectivos que usavam para me definir era “desarmante”. Com o tempo, com os roubos e assaltos, rapidamente fui pondo trancas à porta, alarmes e armadilhas, correntes e cadeados. De tanto trancar a porta, tranquei-me, isolei-me, afastei muita gente que até queria entrar, ou foi expulsa num repente.

Mas essa não é a minha verdadeira natureza. De origem, eu era uma porta aberta. Por isso ver-me ali trancada foi um susto e um sofrimento. De porta trancada não entra ninguém, mas também não saímos para entrar em outras portas. Mas acostumamo-nos a não querer os outros por perto, por dentro.

De vez em quando, há alguém que sabe bater à porta, que não se assusta com os avisos de que o cão morde e de que o alarme está ligado directamente à central. E acho que é precisamente a coragem que isso revela, a vontade mesmo a sério de entrar, que torna essas pessoas tão especiais para mim tão rapidamente. E nessa altura, a minha verdadeira essência apodera-se de mim, tolda-me o juízo, curto-cicuita o alarme, adormece o cão que morde, abre as fechaduras e correntes, e tenho tendência a escancarar a porta depressa demais. Só que exponho-me ao perigo da invasão do meu território tão diligentemente preservado, à devassa do espaço que cultivei só para mim e que já não sei partilhar. E, claro, num instante de dúvida, de desconfiança, por menor que seja o gesto ou quase inaudível a palavra, desperta em mim o medo de sobrevivência e é cerrar fileiras com as tropas para expulsar o intruso, o mais rápido que consigo. Acorda o cão, morde mesmo com ferocidade, trancas, fechaduras e cadeados na porta. E atrás dela, ficam os restos de mim, numa segura solidão, mas com o pesar do arrependimento, o sufoco da minha própria prisão.

Esforço-me genuinamente por encontrar um meio termo que me permita entreabrir a porta, sem me expôr demais, mas sem me fechar por completo à hipótese de valer a pena deixar entrar. E acertar no “ângulo de abertura” é uma dificuldade tremenda porque também depende de quem quer entrar.

Há quem bata vigorosamente à porta na exigência da imediata admissão. Há quem bata já entrando. E há quem entre sem pedir licensa. Não gosto – é a tal devassa, a invasão, que acaba por me pôr em guerra. Depois há quem queremos convidar a entrar, mas que fica ali na soleira da porta, “obrigada, mas tenho de ir andando”, a pensar “que susto!” à vista de tanta defesa para ultrapassar. Ou quanto muito no hall, com um olho na besta e outro na porta (não vá a primeira acordar e a segunda fechar-se), com a cerimónia do “não quero incomodar”. Mas incomoda. Também não gosto. Talvez por isso raramente entreabra a porta sem que ninguém bata, sem que alguém me demonstre essa coragem, e pachorra, e determinação em entrar. Já passei por aí, já chorei lágrimas por isso, não quero lá voltar, não me quero "pôr a jeito" como ensino ao meu filho.

Tal como a minha história de antes, ele entrou sem bater e sem pedir licensa, e eu escancarei-lhe a porta num impulso que acho que ele nem percebeu. Quando me assustei com a devassa, fechei-lhe a porta, com tal estrondo que ele me fechou a dele a seguir. O pior é que não consegui que as tropas o expulsassem por completo, a sombra dele permaneceu e, quando deixei de lutar contra isso, e lhe abri a minha porta outra vez, ele já não quis entrar. O susto foi demasiado, as dificuldades muito óbvias, e impôs-se a distância que levei muito tempo a entender. Que continuo sem perceber se ele quer realmente ultrapassar.

De mim, neste momento, sei que a porta está encostada, levemente aberta, sem trancas nem cadeados. O cão dorme, e também anda mais manso. O alarme está no silêncio – mas continua ligado à central... Aqui estou à espera que ele bata à porta de mansinho, “posso entrar?...”, e entre cerimoniosamente devagar. Estou à espera disso e capaz de abrir. E até quase tenho vontade de me encher de coragem e fazer o convite – “bates-me à porta?”. E acrescento-lhe que as tropas estão tranquilamente aquarteladas...

Mas não sou capaz de dar esse privilégio de mim a quem não mo mereça. Se calhar sou egoísta, retorcida, ou simplesmente um bocadinho louca. Provavelmente projecto hoje a imagem, não dessa alma solta e de porta aberta, conquistadora e de fácil conquista, que já fui, mas de uma pessoa distante, fechada, complicada, e pouca gente verá motivo para enfrentar tanta dificuldade. E sei que assim, nem os sapos terão pachorra para me aturar. Mas a minha verdadeira natureza já não é a de origem, a outra enraizou-se, e não sei se ainda vou a tempo de me recuperar porque há cicatrizes que nunca vão desaparecer, que vão lá estar sempre a lembrar-me, a alertar-me, a fechar-me a porta.

14 comentários:

1REZ3 disse...

Interessante o contexto das portas...

Questionas bem mas só tu saberás a raiz dos teus medos e a história d'"ele".
Só tu saberás se o não faz por medo também (do seu passado) ou se por não ter força suficiente para enfrentar de peito aberto as tropas, paciência para "amansar" o cão e genica subtil para evitar disparar o alarme.

Só tu saberás a resposta.

O que que que seja - e aqui ressalvo que posso ser injusto, visto só ter uma versão da "história" - é da minha crença que ninguém merece alguém que sofra, assistindo a tudo impávido. Porque até os medos têm limites...

LBJ disse...

Não sei porquê agora apetecia-me ouvir Jim Morrison :)

Engraçado que eu nunca me assusto com os cães, dou-lhes a mão para cheirar e normalmente lambem-ma.

Desculpa lá o despropósito, faz de conta que é um dos meus privilégios fora de portas ;)

CB disse...

Treze,
Estou um bocado baralhada com o último parágrafo do teu comentário, desculpa. O que melhor resumo disto para mim é "casa roubada, trancas à porta". D'"ele", não sei o que é. Levei muito tempo a conseguir dar uma razão aos sinais contraditórios, nomeadamente a expressão de desejo e a fuga da intimidade não física. Porque o fez, realmente não sei. Já uma vez disse aqui que ele também tem direito aos seus fantasmas e pode ser essa a razão. Ou posso ser eu, alguma coisa que não estou a saber fazer. Mas é que já não sei mesmo fazer de outra forma e até já me expus por ele muito mais do que alguma vez o fiz por qualquer outra pessoa. Ou simplesmente pode ser porque ele não sabe bater-me à porta da forma certa, para mim, e eu sou o que sou, com qualidades e defeitos, e códigos próprios de admissão. Como será ele também. Se calhar somos apenas incompatíveis, mas não me escapo de um certo sentimento de culpa, não com ele especificamente, mas pelo que sou hoje em comparação ao que fui um dia. A Princesa de antigamente não sofria estes dilemas, porque abria a porta e não havia ninguém que não quisesse entrar. Porque batia às outras portas e entrava sempre também.

CB disse...

LBJ,
Pois é... acuso. Era Jim Morrison mesmo... :)
Sabes que aqui tens sempre o privilégio de propósitos e despropósitos. E também o cão é virtual, não lambe as mãos a ninguém, mas também morder não morde. :)

Anónimo disse...

Quando voltas para lá, é quando salto para te lembrar do lado de cá. Resvala sempre que tiveres de escorregar um passo, mas lembra-te o imenso que vês de onde já vieste e onde já chegaste. Andaste tanto meu anjo, mais um bocadinho, é só mais um bocadinho, eu empurro a saber que vais chegar.

CB disse...

Meu Anjo Anónimo,
É que isto de tanto andar cansa. O que tenho atrás da porta deu tanto trabalho a colar - sabes bem, pois que ajudaste na bricolage... Não estou capaz de arriscar outro estilhaçar de mim, que já não sou o que fui e nunca mais voltaria a ser sequer o que sou. Cada passo é "mais um bocadinho" sim, mas é de mim. Não empurres agora, que eu posso cair.

Anónimo disse...

Não o farei. Entendo o teu compasso. Estou lá e atenta.
No entretanto, tenho chá e biscoitos (daqueles enjoativos dulcíssimos que só tu consegues comer mesmo)para falar do tempo soalheiro que se avizinha.

CB disse...

Obrigada minha querida. Faz-me falta o açúcar, pois é, que de alguma forma tenho de me adoçar e adoçar a vida... :)

1REZ3 disse...

Princesa,

ele não te merece - e ressalvo novamente, pelo menos pelo que dás a conhecer - é o significado do último parágrafo.

Penso que a mf já o referiu aqui antes, visto estar por perto mas não se chegando o suficiente (dando-lhe tu já tanto algo que nunca deste a ninguém - "até já me expus por ele muito mais do que alguma vez o fiz por qualquer outra pessoa").

Acredita que alguém saberá ir para além dos próprios medos e mais que isso, ir além dos teus medos, enfrentando-os contigo.
Acredita que reconhecerás essa pessoa.

Amor é sofrimento mas é também - e principalmente - luta.
Só quem está disposto a lutar está disposto a amar. E no caso, a amar-te.
Desconecta, Princesa.
É duro mas é bem mais saudável.
E olha para ti e para o que tens, a nível interno e externo (personificado ao máximo na figura do teu filho).
Agarra-te a esses dois factores e vais ver que te surpreendes. Sei do que falo...

:)

CB disse...

Treze,
Não é ele que não me merece - sou eu que não mereço o esforço dele. Essa luta de que falas, e que ele não quer travar por mim. Eu também já não sei lutar mais por ele.
A mf foi muito clara desde o início, sim. Sei que tem razão em muita coisa que me disse aqui. Fui-me dando tempo, fui-lhe dando tempo, na esperança de um encontro. Disposta a enfrentar medos, meus e eventualmente dele.
"Desconecta" é o teu conselho. Tentarei. Mas primeiro tenho de "esvaziar-me" dele e isso é arrancar um bocado de mim e declarar morte ao sonho.

1REZ3 disse...

Princesa,

morte a um sonho, não ao sonho.

Só para finalizar esta questão acerca dele.

Lembra-te sempre disto, tu é o exemplo pragmático de que apesar de tudo - independentemente do que se passou que te é difícil contar - ainda te dispões a ir mais além de ti por outrém. Que há "vida" depois da "morte". Que há sonhos para lá de um sonho.

Morre um sonho, Princesa, mas não morres tu.

Será mesmo que após este "luto" colocarás mais trancas ou simplesmente crescerás um pouco mais e melhor?

Sê fiel e sincera contigo própria e saberás os "porquês", os "comos" e os "quandos".

:)

forteifeio disse...

Princesa

E Porque é que a pessoa tem de estar preparada para essa panóplia de alarmes. É que se essa pessoa também tiver muitos alarmes as portas não se abrem, continuam fechadas.

E se deixares fluir, relaxar, inspirar..... e ver o que vai ou não dar.

E não vais precisar de licença de uso e porte de arma, cada vez que alguém queira abrir a porta.

CB disse...

Treze,
A análise está feita e tens razão: cresço com ela, mas com mais trancas na porta sim, não ao mundo em geral, mas à possibilidade de um relacionamento amoroso. Fui capaz de dar de mim o que não pensava possível, mas francamente não tenho vontade de o voltar a fazer. Ele não foi "um" sonho, ele era "o" sonho. Sei que me levanto e continuo, como sempre fiz ao longo da vida, depois do luto, que mesmo assim irei fazendo com uns :)s aqui e ali. Obrigada. :)

CB disse...

Forteifeio,
Eu sou hoje produto de tudo o que vivi. Sou cicatrizes do que sofri. E essa "panóplia de alarmes" está lá em resultado disso, e para me proteger. Se alguém se quer aproximar de mim, aproxima-se da minha história e da minha essência e terá mesmo que conseguir passar essas barreiras. Também terá as suas, e todos temos, e eu estava disposta a desbravar o caminho. Mas é uma estrada de dois sentidos, que eu já percorri sozinha vezes de mais. "Arma" é um bocado drástico, mas o cão agora morde.