Cheiros de Memórias

Ela tinha uns doze anos e a noite era de trovoada. As férias da família, de volta às raízes, dividiam-se por duas casas – a “de cima”, onde vivia um dos seus tios, e onde se juntavam às vezes ao jantar, e a “de baixo”, que albergava os que estavam de passagem. Eram serões de longas tertúlias de adultos, em que ela já queria participar, mas onde só o avô lhe garantia presença, com ouvido atento e palavras provocadoras a espicaçar o intelecto. Quase todos desceram numa aberta da chuva, carregando ao colo os mais novos já adormecidos. Ela quis ficar e o avô (sempre o avô) garantiu a extensão excepcional da hora de deitar. Mais tarde, noutra aberta das águas, desceram juntos. Era noite escura-escura, no meio do campo sem o brilho dos candeeiros de rua da sua noite citadina. Era terra e gravilha que não se via por baixo dos pés, não era calçada de pedras claras à vista. E todos os sons eram silêncios estranhos. Ao fim de uns metros, teve medo. Ouvia os passos pesados no compasso militar do seu avô, que abafavam o som dos seus passos hesitantes, que tentava em vão ritmar de igual modo; via os relâmpagos, que por breves instantes a deixavam vêr o caminho, e ouvia os trovões que a deixavam a tremer. Mas calada. Sem um ai. Que ele não era homem dessas coisas. E ela não queria perder-lhe o respeito.


A meio do caminho silencioso entre as duas casas, ele diz: “Inspira bem. A que te cheira?”. Ela apercebe-se então do odor forte que enchia o ar e, um pouco espantada, responde: “cheira a molhado”. Ele ri-se e diz: “é o cheiro de terra molhada. Um dos melhores cheiros do mundo”. Seguiu em silêncio mais uns passos, gravando aquele cheiro na memória. Continuava com medo, mas tinha-se esquecido da trovoada. Até que surge mais um relâmpago no céu e, de imediato, ele explica-lhe o fenómeno e ensina-a a contar os segundos entre o clarão no céu e o som do trovão, para saber a que distância está a tempestade, e assim saber também se se afasta ou se se aproxima. E contando os segundos, ela vai percebendo a tempestade a distanciar-se - e faz o resto do caminho em total tranquilidade.

A que lhe cheira hoje a terra molhada? Cheira a ternura e saudade, do seu avô. Aquele Grande-Homem-grande que, na sua imensa inteligência e generosidade, soube confortá-la sem a diminuir numa noite tempestuosa, guiando-a por um caminho escuro-escuro de medo, no seu espírito de liderança de oficial do exército, deixando-lhe mais uma gota de sabedoria que não havia nunca de esquecer. Aquele homem de afectos profundos, sentidos, mas muito pouco demonstrados às claras. Não dava beijos nem abraços – não era mesmo homem dessas coisas. Mas sabia ouvir, sentir, e o que dava, dava de coração. Por isso, nessa noite, como tantas vezes, sem a tocar, soube dar-lhe a mão. E, hoje, a chuva traz-lhe sempre a memória de um dos melhores cheiros do mundo.

(Inscrito no desafio de Outubro da Fábrica de Letras)

2 comentários:

Bípede Falante disse...

Eu que não tenho um nariz arrebitado, tenho um nariz de longo alcançe, capaz de detectar sutis odores e perfumes a uma boa distância, tanto os reais quanto os que já se esconde.
bjs

CB disse...

Bípede,
Nariz, é fundamental. O cheiro é das coisas mais primordiais, mais autênticas, mesmo quando escondido na memória.
Bjs