Primordial

Crescer com falta de afecto é um frio que se carrega para a vida, que tantas vezes me faz temer um destino gélido. Da minha infância, lembro-me de muito pouco. Lembro-me de ser maria-rapaz apesar dos tu-tus do ballet, a mais velha da minha geração, sempre a comandar as tropas para a asneira. E a ser constantemente castigada, mesmo quando não tinha culpa, simplesmente, dizia ela (quando o admitia), por ser a mais velha. Lembro-me sempre da frieza dela, quase desprezo, dos desabafos de enfado. Algumas vezes com todas nós, outras vezes em especial comigo. E lembro-me de ter ciúmes das minhas irmãs, mas andar sempre a protegê-las. A dar-lhes os abraços e os mimos que não tinha, e a cumprir os castigos que não merecia. Lembro-me de me sentir sempre “menos” para ela. Menos que elas, e todas nós menos que tudo o resto. É triste sentir essa clara marca de inferioridade naquele que é o laço mais primordial, sentir que nenhum amor pode ser seguro, nem o de mãe, esse que é suposto ser maior que tudo, e para mim não foi. Dele, lembro-me da ausência e da distância, das viagens, do cachimbo e dos jornais no silêncio que não podíamos quebrar. Lembro-me de não me lembrar da cara dele a certa altura, de não me lembrar de um abraço dele, de não lhe conhecer o colo.

Mas hoje, não sou gélida. E comovo-me ao ler da minha irmã caçula que me adora (e que eu adoro), e que me "adorou imensamente" quando só eu me lembrei de um valente abraço face à notícia da chegada da cegonha. Comovo-me, porque gosto tanto dela, porque sei que esse abraço sentido assim por mim me revela ainda quente, que esse abraço sentido assim por ela a revela ainda quente, e esse nosso abraço sentido assim pelas duas não deixa margem para dúvida que a frieza em que vive a nossa família não é normal, mas não nos venceu.

Deseja ela, a caçula, ser mais “competente afectivamente como mãe”, enquanto se angustia já com o saber que nada será como dantes. Mas eu sei que ela será uma mãe maravilhosa. Digo-lhe isso e mais, como já escrevi aqui: que um filho é uma dádiva, mesmo quando nos exaspera, e faz birra, e faz asneira, e nos azucrina o juízo, porque também nos dá um amor total, nos permite dar um amor total, receeber um sorriso puro e todos os grandes abraços de que precisamos. Todos esses que nos faltaram e faltam ainda tantas vezes. Podemos falhar em muitas coisas, que sei que falho - e ela falhará, no seu natural caminho de aprendizagem. Mas num colo, num carinho, num abraço, com um filho não falhamos, porque sabemos o que dói faltar. E essa falta pode ter-nos feito um bocadinho avariadas, pode até nem nos ter feito mais fortes, mas se não nos gelou, fez-nos muito mais conscientes de onde não podemos faltar, para não falharmos nós no amor primoridal que queremos dar.

2 comentários:

Bípede Falante disse...

Eu cresci na era do gelo mas luto pela guerra do fogo incansavelmente!
bjs.

CB disse...

Bípede,
Eu sei. Não há outra forma mesmo.
Bjs