Longa Catarse Natalícia

Naquele tempo, o Natal era sinónimo de expectativa, de festa de família, cantoria e presentes. Era o tempo de montar o gigantesco presépio que surgia não se sabia bem de onde, num monte de caixas com centenas de figurinhas embrulhadas em jornal. As caixas, depois de vazias, convertiam-se em montes e vales que ocupavam largos metros junto a uma parede da sala, cobertos com um pano verde e grosso, artisticamente enrugado e salpicado de algodão ou esforovite a fazer as vezes de neve, e povoado com todas as figuras que três pequenas alminhas entusiasmadas colocavam, sob instrução da mãe, em forma de peregrinação em direcção ao ponto mais alto do presépio. Aí, estava uma cabana com telhado de palhinha, e as incontornáveis personagens centrais, várias vezes maiores que todas as outras, e tão mais valiosas que era à mãe que cabia desembrulhá-las e colocá-las lá. Por cima da cabana era onde assentava a estrela, e os três reis magos, montados nos seus camelos, começavam por ser colocados no ponto mais distante do presépio, para serem movidos para um nadinha mais perto cada dia, por meio de pequenas mãos que alternavam criteriosamente cada dia. Não havia árvore de Natal, nem se falava do Pai Natal. O Natal era do menino Jesus e pronto. Anos mais tarde, o pai lá se rendeu e deixou entrar a herege representação natalícia do pinheiro lá em casa. Claro que, já que tinha de ser, que fosse em grande. E as mesmas três alminhas, aí já não tão pequenas mas ainda entusiastas do Natal, lá viram entrar um pinheiro que tocava no tecto da sala, e o feito a repetir-se todos os anos a partir daí. A concessão: a estrela continuava no presépio, mas este passou a ser montado na base da árvore. Nesse tempos, espalhavam pela casa fitas e bolas, compunham arranjos de mesa e enfeitavam os castiçais. Havia uma enorme coroa de flores e enfeites natalícios pendurada na porta da rua, e amontoavam-se os embrulhos por todos os cantos da sala, consoante a “família” a que se destinavam.

E realmente era um Natal de muitas famílias, do lado do pai, do lado da mãe, do lado da mãe do pai e do pai da mãe, mais tias velhas e idosos senhores, a quem se devia uma deferência qualquer, e que nos custavam mais uma viagem de carro e mais uns beijos que detestávamos para entregar mais embrulhos. E também trazer sempre qualquer coisa, é certo, quase sempre guloseimas. Desde a tarde de dia 24, até à noite de dia 25, corriam-se todas as capelinhas das várias famílias a que estavam ligados, livrando a sala, aos poucos, dos montes de embrulhos. Para a família da casa, sobrava muito pouco. Restava a manhã do dia 25, em que tomavam todos o pequeno almoço de pijama e roupão, e trocavam os presentes dos pais para as filhas e vice-versa, e depois também entre irmãs. Mas a correr, porque era preciso estarem todos prontos para a missa do meio dia, e a seguir lá entravam no périplo de mais um dia, com um almoço com os avós paternos, visitas várias pela tarde, e jantar com a família do avô materno. E esse último jantar, esse é que era Natal, esse é que era o momento em que se sentia família, em que os rituais até faziam sentido, desde a cantoria solene em frente ao presépio, até à cerimónia de beijar o menino, que um dos mais novos da família, seguido de perto pela avó, tinha a honra de circular por entre todos, seguro numas mãos pequeninas atrás de uns olhos muito brilhantes e um ar compenetrado, ciente da responsabilidade assumida.

Não sei em que ponto exacto, mas algures pelo caminho da sucessão impiedosa dos Natais, uma daquelas meninas perdeu a fé. O presépio passou a ser apenas um amontoado de figuras kitsh, e uma obrigação aborrecida. A árvore de Natal gigantesca passou a ser apenas um estorvo que levava horas a enfeitar, e a correria daqueles dois dias deixou de compensar, não tanto pela falta das guloseimas que foram sendo substituídas gradualmente por presentes sempre desadequados, mas porque se tornou cada vez mais claro, mais óbvio, que não havia família própria, no meio de tantos familiares em tantas casas, almoços, lanches e jantares. E depois, já não era menina, tentou ser feliz mas deu um enorme trambolhão, e logo nesse ano da queda, faltou-lhe o avô. E assim o serão de dia 25 passou a ser apenas um hino à sua memória, recalcando a ferida da saudade a cada ritual que se repetia sem ele por perto, sem o seu sorriso, sem o seu abraço atrapalhado mas muito forte, muito sentido, entregando aquele que era sempre o presente perfeito. Geralmente um livro, quase sempre reprovado pelos pais, mas que o avô declarava indiferente que era perfeitamente adequado. E sem essa recompensa final pelos dois dias de farsa insana, o Natal morreu para ela.

Durante os anos seguintes, ainda tentava replicar a alegria natalícia, embora sem grande convicção, sobretudo quando acreditou que havia construído, finalmente, a sua própria família. A árvore era muito mais pequena, as decorações muito mais bem escolhidas, o presépio era pequeno e simbólico, mas também enchia a sua casa de cores e doces de Natal, e tentou fazer, finalmente, um Natal da sua família, passados tantos anos, uma refeição mais importante e demorada do que um simples pequeno almoço de pijama. Mas a coisa nunca correu lá muito bem, e quando afinal descobriu que tinha um filho, mas não tinha família, nem a primeira que herdara, nem a segunda que tentara criar, também ela morreu para o Natal. Tudo passou a incomodá-la nessa época, provavelmente pelo tanto que fazia doer, não só da saudade dos que passaram a faltar, como até da perdida alegria ingénua, tão própria das crianças, que via reflectida pelo seu próprio petiz, e tão impossível para quem passou já a curva do desencanto, quem se compenetrou do seu próprio fracasso, do seu próprio vazio, da frieza das expectativas ajustadas, por baixo, muito baixo, e assim, lucidamente, tem de enfrentar a derrota.

A pedido insistente do seu filho, comprou há 2 anos uma árvore de natal pequena, da loja dos chineses. Este ano, teve de a montar e enfeitar com luzes, com bastante antecedência, para não desgostar a criança animada e estupidamente natalícia que lhe calhou. Mas entregou-lhe a responsabilidade da decoração, por isso, pela primeira vez, não tem uma árvore exemplo das tendências da moda e cores da estação. Tem uma árvore com tudo aquilo que uma criança crente, e ingenuamente alegre, se lembrou de lá pendurar. Desde recortes de revista a alguns dos seus bonecos preferidos, à mistura com uma quantas bolas vermelhas e uns bocadinhos de “neve” feita de algodão, uma fita dourada com estrelas, que tinha guardada e que fez brilhar os olhos ao seu pequenote, e uns enfeites de madeira. Se o presépio monstruoso de casa dos pais era kitsh, e ela o desprezava então, que diria agora essa menina sobre a sua nova árvore de Natal...

O presépio que desembrulhou do jornal, o único que tem porque o único que alguma vez quis, tem apenas quatro pequenas figuras de barro cozido, em linhas muito simples, e a originalidade de mostrar Maria sentada, de pernas cruzadas, com o menino no regaço. Tem um S. José longilíneo, de cabeça ligeiramente curvada, e duas ovelhas. Como quase tudo nesta criatura morta para o Natal que morreu para ela, e para mais umas quantas coisas da vida, até a escolha do presépio se pautou pela selecção do mais invulgar, quase insólito. Quem não achou graça foi a criança da casa, desolada pela pequenez do presépio e pela simplicidade das formas, e porque “nem tem um burro e uma vaca”. E faltava “chão” e tantas outras coisas mais, que acabou por colocar as figuras em cima de um lenço verde da mãe, juntou-lhe umas bolas da árvore de natal e mais “neve” de algodão, e ainda se atreveu a sugerir à mãe que tinham de pintar as figuras. Ao que esta lhe respondeu, aterrorizada, que não era para pintar nada, que era assim, com aquelas figuras sem rosto desenhado e de linhas muito simples, um presépio de cabia num quadradinho de 20 centímetros de lado, que ela gostava de se lembrar que era Natal. E aquela criança lá tirará as suas conclusões sobre o episódio, que ninguém imagina hoje quais sejam, não sem antes ter explicado à mãe que, assim, "sem cores nem nada, nem se percebe se o bebé é o S. José pequenino, se é um anjinho que caiu do céu…”.

Este ano, pela segunda vez, essa menina que não queria celebrar mais o Natal, tem de o fazer de modo repartido, porque deve à sua criança a celebração, ainda que seja uma pequena farsa, mas cede o dia 24 para o pai. Assim, quando regressar no dia 25, lá será a criança arrastada pelos périplos que os avós ainda mantêm, embora já mais reduzidos com a inevitável morte a dizimar as várias famílias e os novos elementos a serem cada vez mais distantes, muito embora a criança não se importe, que ainda venera o presépio imenso da avó, e gosta de tentar tocar no topo da árvore às cavalitas do avô, e proclamar que a árvore chega “mesmo” até ao tecto, e porque ainda traz guloseimas e brinquedos de que gosta, de cada paragem que fazemos, e ainda não sente que lhe falte ninguém especial, ou nenhum abraço fundamental. Ainda bem. Essa é a única alegria do Natal da sua mãe.

2 comentários:

Apple disse...

Minha querida, tenho a certeza que a tua árvore está linda e todos os dias são Natal (aquele que importa e tem significado de amor e luz) no sorriso do teu principe perfeito, ainda inocente e feliz na proteção do teu amor.

Bjs feitos de saudade

CB disse...

Querida Apple,
Está linda aos olhos dele, isso sim. E é realmente um bocadinho Natal de cada vez que paro para o ver sorrir. :)

Bjs e saudades também!