Rescaldo

Estes dias passaram em ciclos de vazios e supérfluos, que procuro à falta de melhor alternativa, e que servem quase perfeitamente para fingir que encho o buraco negro da fome, da ânsia, da ganância daquele indefinível e quimérico tudo, que (ingenuamente talvez), acho que me encheria a alma. Absurdo e inútil, é claro, encher um buraco com vazios. E nestes tempos de névoa densa que me torna opaca, tempos em que um escudo invisível me desliga o motor da busca, e um filtro se impõe sobre o que assoma de dentro, recolho de fora, observando, captando, os detalhes que geralmente perco quando é mais o que projecto do que o que recebo. Há um egoísmo invertido quando nos damos demais. Tornamo-nos egoístas também assim, porque na azáfama ensimesmada de passar de nós a uns quantos que escolhemos, não recebemos o que vem de fora, sobretudo de quem não contemplamos na dádiva. Estranho autismo. E há tempo de dar e de receber, há tempo de nos revelarmos e tempo de destrinçar os outros, tal como há tempo de viver a mil e tempo de parar em contemplação, tempo de futilidades e tempo de coisas sérias. O meu tempo? Paradoxal, como eu, e anacrónico. Encontro-me num tempo introspectivo nublado, vagamente egoísta, projectando-me em périplos de mil à hora, entretida com futilidades que mascaram a angústia de sentir irremediavelmente impossível encher o tal buraco negro, e em extroversões paradoxais na companhia de gente animada, alguns amigos, companhia que ilude a fome, ainda que sob o pretexto de conversa fútil e assuntos triviais. Apressada e faladora mas contemplativa, observadora e, agora, embora aparentemente receptível, muito mais recolhida, mais sentida, mais triste ou dorida, por mais que me vista e calce em tons e formas arrojadas, em jeito de boost de auto-estima. Quem me veja hoje, imaginará de mim tudo o que as peças deliberadamente escolhidas para o efeito projectam com sucesso, e não imaginará o quanto mente o figurino sobre o que passa e pesa dentro do manequim que o veste. E depois irrito-me comigo própria, porque não cheguei até aqui para ser uma fotografia de revista de moda, um cliché ambulante, de valor variável em função da altura dos saltos, da cor do verniz e da harmonia do conjunto. Pois não, mas é o que me safa em dias assim - é o retorno possível. Esvazio-me mais adornando-me por fora, mas faço-o porque o vazio de dentro não posso encher. Não posso, porque hoje não tenho sequer as quimeras por que andei afincadamente a lutar e que, nesse processo, simulavam um animador “quase cheio” do buraco negro, a miragem do oásis mesmo ali ao virar da esquina. Hoje, nem sequer vejo esquina nenhuma, é deserto, não me interessa procurar, estou farta de me dar a queimar ao sol, e apetece-me simplesmente cruzar os braços e proclamar “demito-me”, não dou mais um passo, nem mais um milímetro de mim, sou mais um grão desta areia que me escorregou por entre os dedos e aqui me derramo, sou mais uma duna. E agora venham-me buscar. Virão? Claro que não. Morrerei da espera, ou acordarei um dia tarde demais, ou amanhã a nuvem passa e chove uma água abençoada, ou a minha pré-formatação impõe-se e volto à busca, à vida. Não sei ler o futuro nas cicatrizes que me atravessam, sei que a solução não está no passado, mas sei que o futuro não é indiferente ao que levo de trás em mim. Mas hoje, não posso voltar atrás, não posso andar em frente, e assim deixo cair, frente a esse canto seco-seco que não molha, uma cortina de chuva que me desculpa o não avançar, porque não posso dar cabo do figurino. E recordo uma frase de uma das personagens que admiro - Coco Chanel: "true elegance is refusal". Twisted. As coisas que eu consigo misturar...

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