Inspirado e expirado

"O que é o amor, em concreto? Não perguntes o que é sem este «em concreto», acabarás com arbitrariedades verbais, piedades, coisas vãs. O que é o amor em concreto, concreto como cimento, como betão, concreto como uma pedra, imagem tão diferente do complicado e impudico coração? O verbete «amor» fala em emoção, estética, ideologia, doença, e nada disso interessa agora mas apenas o amor em concreto, corpos, cortinas, cheiros, cães, o amor que com ou sem aspas mostramos aos outros para que acreditemos também, vejam a minha felicidade, a minha normalidade, a minha desistência. Com o teu amor concreto o mundo encontra uma base estável no meio dos vendavais. E agora suportas todas as decepções. O amor é um vício, uma gangrena, faz mais falta um amor concreto, hábitos, fotos, impostos, torneiras, é contra o amor que o amor concreto triunfa, onde estavas, amor, quando foste preciso, quando ela precisava, ao passo que eu estive sempre aqui ao seu lado? Que importam as tuas escaladas, os teus mergulhos, que tristes acrobacias são essas, que escusado espectáculo, quando eu dou (diz o amor concreto) a desculpa, o descanso, os domingos? O amor perdeu porque é seu costume, saiu para a rua com a roupa errada, enquanto o amor concreto trouxe agasalho, é prudente e precavido, tem botões, chaves, ferramentas. O amor diz que ama mas desconhece o tempo e o tédio, é por ser banal que o amor concreto o humilha, não há amor mais forte que o amor em concreto, o amor que te toca, protege, exaspera, o que é o amor ao pé disso, simples hipótese rabiscada num guardanapo, devaneio de asténicos, vida alternativa. Vinhas com os teus exércitos, amor, mas foste dizimado, o amor em concreto é o único, escondo-me agora na vergonha dos indignos enquanto em concreto o amor concreto está onde sempre esteve, tranquilo no inverno com o teu amor nos braços."


(Aqui, do blog A Lei Seca)

2 comentários:

Anónimo disse...

em concreto é isso... bem,não sei definir concretamente, mas sei que também é. É para além de… sobretudo e acima de tudo o é. também é apenas.
será que o concreto se sobrepõe à substância da matéria dos corpos? o corpo o aroma dos corpos os contornos deste. Será mais? O que é esse ponto de luz brilhante, diz-me concretamente.

CB disse...

Anónimo,
De cada vez que releio este texto ainda gosto mais dele. Sobretudo porque põe, em concreto, algo que poucas vezes se consegue materializar, cimentar, nas palavras.
O amor em concreto, é esse, sim, que se define por "ser" apenas, por ser real, palpável, temporal - como os domingos. Não se sobrepõe aos corpos - o amor em concreto é corpo. Como diz o autor do texto, "o amor que te toca, protege, exaspera", ou mais sarcasticamente, "hábitos, fotos, impostos, torneiras".
Já "esse ponto de luz brilhante", caro Anónimo, arrisco dizer que não é nada - em concreto. Fica bonito num poema, mas quem sente o calor de um beijo de luz?