Sísifo – o herói absurdo



Sísifo é um personagem, não é só o o título do famoso poema de Torga. Sísifo-personagem é a metáfora do esforço inútil e incessante do homem que vive uma vida sem sentido mas que o procura eternamente.

Albert Camus (filósofo e escritor francês que ganhou um Nobel) utilizou a metáfora de Sísifo para sustentar a sua “filosofia do absurdo” segundo a qual as nossas vidas são insignificantes e não valem mais do que o valor do que criamos. Como o homem em geral nos dias de hoje não cria nada de valor, vivendo num mundo estéril e desumanizado que aceita, diz Camus que a alternativa a ser-se Sísifo é o suicídio. Porque Sísifo-personagem foi cruelmente castigado pelos Deuses devido às suas virtudes, condenado à cegueira no fundo de um vale, de onde só pode sair se escarpar uma perigosa falésia e ainda por cima empurrando o enorme peso de um pedregulho. E Sísifo não desiste, escala a falésia vezes sem conta apenas para rebolar de novo até ao fundo sempre que está prestes a alcançar o topo.

Para Camus, Sísifo é o expoente daquilo que chama o “homem absurdo” ou o homem com uma “sensibilidade absurda”. Este é o homem perpetuamente consciente da inutilidade e futilidade da sua vida, que ainda assim não desiste de a transformar em algo maior. Os Sísifos de hoje serão aqueles que desejam e procuram claridade e sentido num mundo e numa condição que não oferece nenhuma das duas coisas. Na metáfora, Sísifo um dia chega ao topo, e antes de voltar a caír na sua repetitiva e eterna desgraça, quer olhar à volta e experimentar a sensação de liberdade. Mas é cego. Não verá o que se espraia à sua volta com os olhos. Verá apenas com a alma, e mesmo que por um breve instante apenas, sentir-se-á grandioso e feliz. E isso fá-lo-á recomeçar, preferir a dureza da sua caminhada ao suicídio, à morte. Por isso, Sísifo é o tal herói absurdo.

O poema de Miguel Torga anda por aí. Já quase toda a gente o conhece e, no entanto, quase todos o citam e gostam dele pela primeira estrofe. Mas tem mais, muito mais. A primeira estrofe é positiva, a exortação à coragem, palavras que parecem de esperança, apenas com as ressalvas do “se puderes” e a adjectivação do caminho como “duro”. Mas a segunda estrofe é essencialmente um aviso, é a constatação das agruras inevitáveis e do perigo da loucura – são fatalísticas as “ilusões sucessivas” e o “logro da aventura” – porque Sísifo sempre cai de novo e sempre tem de recomeçar, e mesmo no breve instante em que alcança o topo, não pode olhar à volta porque é cego. As duas últimas linhas são fortíssimas – seremos loucos se nos reconhecermos na loucura, e a loucura é parar, é achar que nos conhecemos. Porque aqui parar é mesmo morrer, e morrer às nossas próprias mãos.

Recomeça...
Se puderes,
Sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,
Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomar
E vendo
Acordado,
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças.

Por muito que custe, por muito que às vezes não veja onde vou buscar a força, por muito o desespero da consciência da inutilidade do esforço, anseio por esse breve instante de libertação no topo do penhasco, de alguma profundeza minha acredito que chego lá, e a cada queda recuso-me a parar. Sísifo, na interpretação própria que faço dele à luz do que entendo da teoria de Camus, é irmão para mim, somos da mesma natureza, embora eu seja mais fraca e tenha os meus momentos de dúvida. Mas somos ambos absurdos.

18 comentários:

Paulo Lontro disse...

Este post está fantástico!
Nem acreditas como entendo a tuas palavras.
Obrigado por esta excelente interpretação filosófica do poema.

CB disse...

Paulo,
Muito obrigada! :)

ruth ministro disse...

Gosto sempre muito de te ler. Camus, assim como Voltaire e Boris Vian, é um dos meus ídolos na literatura francesa. Estou certa de que ele aprovaria o que escreveste.

Beijos :)

Apple disse...

Conheço Sísifo...sinto-me a caminhar nesses passos a maior parte das vezes, mas não quero nem sei desistir, não posso... e arrasto-me, forço-me, esmagada sob o peso da realidade que se engana e dos sonhos que se desfazem...

CB disse...

Nuvem,
Muito obrigada. Gosto de saber que me lês e ainda bem que achas que não insultei Camus... :)

Beijos

CB disse...

Apple,
Partilhamos também esse caminhar - é bem verdade. Mas acreditamos, somos "absurdas" - o que fazer?... :)

1REZ3 disse...

"O homem absurdo". Ora aí está algo que se me serve na perfeição.
Não deixa de ser triste, essa sina...

Demóstenes disse...

Sabe que mais?

Estou speechless...

Anónimo disse...

Mana,

Sísifo teve uma cruel sentença dos Deuses numa puniçao tortuosa cuja antecipação da quase libertação o agrilhoa e força num perpétuo fogo fátuo de mais do mesmo.
A diferença entre ti e ele, é que a sentença é tua e a crueldade dessa viagem está nas tuas mãos esconjurar. A cegueria, o heróico ou o nosso mais absurdo e dorido pscicodrama é alimentado pela nosso fatalismo ou espírito de missão. Eu também reconheço os contornos desses remakes.

Aqui, hoje, já não é cronometrar a dor, é assumir que os sortilégios são nossos e reflectir se queremos mesmo continuar a levantar o mesmo fardo, às vezes desenterrado vezes sem fim como se tivessemos medo de não viver outra história maior, ou sentir tanto como nesta que um dia vaticinámos como a nossa unica e épica demanda.

Já passou, já não é, é um anacronismo em constante flashback. É um original mutante pelas tantas vezes que o tentámos recriar.

Se puderes, larga o lastro pesado pela falésia e segue. Deixa que Síssifo expie as nossas fraquezas.

Um beijo grande.

CB disse...

13,
Ou não... A alternativa é?...

CB disse...

Demóstenes,
Assim fico também. Obrigada?

1REZ3 disse...

A pergunta é engraçada porque estive precisamente para deixar ficar no comentário anterior que com este texto começo a compreender muita coisa, tendo em conta que a alternativa é o suicídio, metafórico ou físico. No meu caso metafórico, claro.

Mas é "triste" no sentido em que ao contrário de Sísifo - que não sendo real tornou a história num exemplo maior - a tendência é a força ir-se gradualmente, mesmo que a capacidade inata para chegar ao topo permaneça. A pedra - por exemplo - torna-se mentalmente mais pesada.
"Triste" (entre aspas não para citar) porque há aquelas alturas que por mais que vá contra a crença do que se quer para si próprio, o que apetece é mesmo baixar os braços, ainda que por uns instantes e não poder...

CB disse...

13,
Tens razão que é um destino difícil, mesmo para Sísifo, e para nós, mortais reais, é "triste". Para nós, esses momentos de quase desistência são inevitáveis. Mas para nós, mortais, a eternidade da condenação de Sísifo não tem, de facto, de ser eterna.
Sinto precisamente o mesmo que referes - que às vezes a pedra se torna mais pesada, mas também há vezes em que a sinto mais leve, ou em que tenho mais força, aquela força de ímpeto que caracteriza cada recomeçar.

CB disse...

Mana,

Confesso que tive de lêr o teu comentário várias vezes até perceber que falamos, aqui neste post, de dimensões totalmente distintas. Sou Sísifo no sentido em que, com tudo na vida, acredito em mais e melhor, e a cada revés recomeço a viagem. Já recomecei a vida várias vezes, em vários sentidos, e sei que o farei até um dia chegar ao topo da falésia. Sei que, por muito absurdo, e por mais as desilusões que tenho tido e terei, continuarei a acreditar que a vida é mais do que isto, e um dia chego lá.

É também assim no Amor. Acredito que ele existe e por isso não posso deixar de o procurar. De cada vez é uma subida, a última por ti bem caracterizada, mas ao longo da qual não recrio, na minha interpretação de Sísifo, várias subidas e descidas. Essa acabou, por isso agora será tempo de uma nova subida, não sei quando, não sei se de dor e ou de alegria, não sei se com uma pedra mais leve ou mais pesada, não sei se com remakes e flashbacks, e probabilisticamente com uma nova queda no final.

A pedra dessa última vez a que te referes está largada, chorada e escrita. A única sentença que me impus foi fazer tanta, demasiada caminhada, com uma pedra maior do que a que podia empurrar. No plano em que neste post me expressei, não deixo a Sísifo o expiar da minha fraqueza, nem me iludo pensando que este caminho de procura se pode fazer sem pedra. Não creio que seja fatalismo, e eu almejo a ser tão forte quanto Sísifo para que nunca desista, nomeadamente, de alcançar a liberdade do verdadeiro Amor.

Anónimo disse...

Mana, Vais chegar sim, sempre mais longe e mais forte. E mais que Sísifo, ver e sentir todo o outro lado dessa conquista.

CB disse...

Obrigada mana.

Terráqueo disse...

Não conhecia essa lenda, mas reconheci nele um irmão. Maravilhoso o teu texto e o poema. Muito obrigado por ter compartilhado. Bjs.

CB disse...

Terráqueo,
Ainda bem que gostaste do texto e obrigada. Também achei que te reconhecerias neste Sísifo. Corajoso e persistente, mesmo que a nossa condição humana, por vezes, quase nos faça desistir.
Bjs