Segue-se a Parte 6

(...)

Enquanto Sofia tomava o seu duche, umas ruas acima, Pedro estava de volta ao escritório, ao seu mundo. Era a hora em que muitos já tinham saído e os poucos que restavam se preparavam para o fazer em breve. Os telefones já não tocavam e o silêncio voltava gradualmente a encher o espaço. Fechou a porta do seu gabinete onde só se ouvia o trânsito da avenida, ainda em hora de ponta, que chegava ao 7º piso através de boas janelas de vidros duplos, por isso já bastante abafado. Sentou-se e voltou-se para a enorme vidraça, que raramente contemplava, e recapitulou os acontecimentos da tarde, enquanto as luzes dos carros se moviam lentamente no lusco-fusco do fim do dia e tomavam conta de lhe manter todo o resto do cérebro dormente.

Que mulher aquela... Sabia tão pouco dela e tanto ao mesmo tempo. Que vontade que tinha dela. Quase explodira com aquele beijo ardente. Relembrava o primeiro contacto, o primeiro toque dos lábios dela, a surpresa agradável de os encontrar à mesma temperatura dos seus, a boca dela húmida e moldável à sua boca, receptiva e responsiva à exploração da língua, e à pressão dos lábios que se tinham encontrado com força e procura equivalentes. Sentia um frio na base do estômago e sentia a resposta do seu corpo à recordação daquele momento quase como se o revivesse. Sentia-lhe o sabor.

Esfregou a cara com as mãos, como fazia sempre que precisava de se impor auto-controlo, sobretudo quando o desejo por uma mulher explodia, o que se tinha tornado raro, raríssimo. Tinha repetido esse gesto muitas vezes por um longo período, uns anos antes, sempre por causa da mesma mulher, e isso não lhe trazia boas recordações. Sentiu de novo uma certa inquietação de perigo. Mas ao mesmo tempo queria mesmo voltar, como prometera, precisava de entender o porquê daquela atracção por uma desconhecida que lhe falara de almas. Almas... Ao tempo que sequer pensava em coisas tão metafísicas, quanto mais articular frases como a que lhe tinha dito. E lembrou-se da sua frase, palavras suas a supreendê-lo. “ A minha alma está há muito vendida para se manter em silêncio”. E era mesmo.

Na sua mesa estavam as fotografias que o tinham nauseado, diversos processos e inúmeros recados em post-its amarelos. O ecrã do computador, que tinha ficado ligado, voltou à vida ao seu comando, revelando-lhe vários novos emails dessa tarde na Inbox, muitos marcados como urgentes. Decidiu nem olhar para os papeis, nem para os emails. Pegou no telemóvel que tinha deixado para trás na urgência de sair umas horas antes, e viu que tinha também várias mensagens e chamadas perdidas. Desligou o computador e resolveu que tinha de ir à procura dela. Saiu determinado a voltar ao hotel e esperá-la.

Enquanto descia no elevador, ia crescendo nele a excitação da antecipação de a ver de novo, de tocá-la, de beijá-la, e crescia a adrenalina por aquela sensação de desafio, de perigo. Deu consigo a sorrir. Nem reparou no Segurança que lhe dizia aflitivamente “Sr. Doutor, olhe que...”. Respondeu um automático “boa noite” enquanto saía para a rua, para ser assaltado por um bando de jornalistas, e encadeado pelos holofotes. Estava perante câmaras de directo, no meio de uma balbúrdia de perguntas de que não conseguia fazer sentido.

Não tinha lido os recados ou os emails ou os post-its. Não tinha recebido as chamadas nem ouvido as mensagens do voice mail. E agora percebia que havia desenvolvimentos no caso que aceitara dias antes e estava em directo para o mundo, exposto como conivente numa história que sempre tinha sido sórdida, mas que era agora publicamente escandalosa.

Desembaraçou-se dos jornalistas o melhor que pode sem responder a perguntas, com a cabeça a explodir e o coração a bater a um ritmo pouco saudável enquanto se dirigia apressadamente à garagem onde estacionara o carro. Trancou-se e instintintivamente dirigiu-se à segurança da clausura da sua casa. À porta havia mais jornalistas, mas o acesso à garagem fazia-se pelo portão automático que se fechou deixando a confusão lá fora.

Entrou em casa transpirado, já com o nó da gravata desapertado, e enquanto desabotoava o colarinho dirigiu-se de imediato à sala onde se serviu de um generoso whiskey. Deixou-se cair no sofá, exausto e com uma sensação terrível de estar a viver um pesadelo repentino. Sabia que devia ouvir as mensagens e ler os emails e meter mãos à obra para conter os estragos e proteger o seu cliente. E no entanto, não o queria fazer. Pela primeira vez em muitos anos, sentia-se contaminado pelo caso que aceitara, pelo cliente que representava.

Era óbvio porquê. Só pensava nela e se saberia, o que pensaria dele depois de saber. E incomodava-o o que ela pudesse pensar. Sentia vergonha. E medo de a perder.

Deambulou pela sala a tentar desacelarar a vertiginosa velocidade do seu pensamento, a debater-se com a imagem dela tal como a vira naquele primeiro instante, a reviver o beijo, a senti-la ali mesmo nos seus braços, a ver-lhe os olhos verdes mergulharem por ele adentro. Até à alma, que ele agora sentia mas sabia escura. Apetecia-lhe gritar de raiva. Porque é que isto tinha de acontecer? Naquele preciso momento em que, por algum desígnio misterioso, aparecia alguém na sua vida a devolver-lhe a consciência e a acordar sentimentos e sentires esquecidos, a fazê-lo sentir-se humano? Turtuoso destino.

Sabia que esta era uma encruzilhada difícil da sua vida e que tinha de tomar uma decisão importante. Decidiria com a razão ou com o sentimento? Queria o quê para si, por si próprio? Deitar a perder uma brilhante carreira de advocacia e perder uma invejável carteira de clientes? Ou perder a hipótese de se sentir humano outra vez, digno do ar que respirava e do chão que pisava, e dela?

Calculou que os jornalistas se tivessem ido embora e resolveu chamar um táxi. Ía procurá-la, explicar-lhe e dizer-lhe que abandonava o caso, que não queria voltar a ser aquele homem. Ía beber dela a redenção e afogar-se na pureza da alma dela para reencontrar a sua. Ía voltar ver o mundo com o olhar limpo da imundice em que se tinha deixado prender ao longo dos anos. Ía por um novo caminho de paz. E o caminho no táxi foi feito em silêncio de contemplação da cidade que redescobria, no resenho dos prédios e as suas janelas iluminadas em padrões do acaso, no traçado das estradas que percorria e nas gentes que ainda se viam pelas ruas. Cada vez mais próximo do destino, cada vez mais próximo dela.

Chegou ao hotel e dirigiu-se à Recepção para a chamar. Só nessa altura se apercebeu que não sabia o seu apelido, apenas o nome próprio, Sofia. Por um instante, assaltou-o a dúvida. O que estava a fazer era uma loucura, era perigoso. Mas sentia a força de algo maior que ele próprio e pulsava-lhe nas veias a determinação de lutar contra tudo e contra todos para seguir aquele caminho. O empregado reconheceu-o e, antes que pudesse fazer a pergunta que não sabia como fazer, disse-lhe:

- A senhora saiu. Deixou o hotel há cerca de meia hora.

- E não sabe se demora?

- Se demora? Não, ela não volta hoje com certeza! A senhora fez mesmo check out. Disse que tinha uma emergência e que tinha de voltar mais cedo. Cancelou o resto da estadia e nem se importou de ter de pagar uma taxa. Eu até nem queria cobrar-lhe, coitada, e até era uma senhora tão simpática. E educada. Olhe que hoje em dia já é raro encontrar alguém assim, e digo-lhe que neste ramo conhece-se muita gente...

Pedro sentiu-se gelar às primeiras palavras do empregado e continuou a ouvir aquele discurso de quem não tem quem o ouça com a cabeça a latejar. Sofia fugira. Tinha a certeza que fugira dele. E ele não tinha como segui-la, como procurá-la. Mesmo fazendo uso da sua perícia e da vontade de falar do empregado, apurou apenas que tinha chamado um táxi. Não conseguiu que lhe desse o apelido ou a morada dela. Nada. Mas o empregado, ao vê-lo desesperado, tentou consolá-lo dizendo-lhe que ela tinha ido para a estação de combóios. Solícito, estendeu-lhe um panfleto de horários e Pedro agradeceu, pegou no panfleto e saiu à deriva.

(continua)

8 comentários:

Light Princess disse...

Encontros e desencontros, a trama adensa-se...

CB disse...

Luz, assim é a vida... :)

Anónimo disse...

Tum, tum, tum ,tum...
Jaws drumming sounds creeping down my spine in atecipation....

Mana... 'pressa, menina quer mais!!!

CB disse...

Jesus!!! Calm down! It's not "that" exiciting... More is coming soon, slowly growing... :)

Anónimo disse...

I bet you say that to all the lads...lololol!!!

CB disse...

Ahahahahahah!!!

LBJ disse...

Hum...?

Desconfio que estás a fechar o circulo ;)

Vá continua :)

Beijo

CB disse...

LBJ,
Quase, mas ainda vai correr alguma tinta. :)
Um bejo