Segue assim a parte 2

(...)

É um homem grande. Alto e de ombros largos, possante até, mas sem excesso de peso. É uma figura de força. Os cabelos negros levemente ondulados, pele morena e olhos escuros, grandes e luminosos, num rosto largo inequivocamente masculino. Consegue ver o brilho dos seus próprios olhos reflectido pelo espelho do outro lado do quarto, sem conseguir discernir mais pormenores naquela meia luz. Observa-se ali reflectido e sente um aperto ao saber o que se esconde para lá daquele brilho. Recorda-se da primeira vez que os seus olhos encontraram os dela. Pergunta-se como seria possível que tivesse passado tão pouco tempo desde aquela tarde solarenga, e como tinha sido possível ter merecido a sorte daquele encontro.

A sua vida era agora dois capítulos. O primeiro antes dela, e o segundo era ela. Antes dela, ele era um homem solitário, sem raízes, sem amarras, embrenhado no trabalho que lhe absorvia mais que o tempo, absorvia-lhe a alma. Era advogado criminal, passava os dias envolto em dossiers de histórias lúgubres, macabras, coisas doentes, e pessoas de alma negra. Entre o seu escritório confortável e movimentado, e o silêncio gélido de salas cinzentas atrás dos muros intransponíveis de prisões. Entre o Código Penal e os jornais do dia. Entre a sua casa fechada ao mundo e a exposição das salas dos Tribunais.

Estava bem de vida. Não lhe faltava nada que o dinheiro pudesse comprar. O dinheiro comprava-lhe o conforto em que vivia e comprava-lhe ocasionalmente a companhia, mais de uma forma física, de satisfação do corpo, do que propriamente de intimidade. Prostitutas de luxo entituladas de “acompanhantes”, a quem pagava jantares caros nos melhores restaurantes, e em cujos corpos se saciava em quartos de hotel de cinco estrelas. Com quem mal falava e que pagava com um misto de tristeza e de desencantamento. Por elas, e por ele. Ficava sempre vazio, na penumbra das recordações mais antigas que o tinham empurrado para aquele destino, para aqueles quartos e aqueles corpos pagos para o satisfazer.

Um dia tinha aceite um novo caso, mediático, mas pelos piores motivos. Envolvia a violação e o assassinato de uma mulher jovem, pelo seu próprio marido. O cliente era um homem de prestígio na sociedade, financeiro, detentor de uma enorme fortuna, filho de uma das famílias mais antigas da cidade. Pagava-lhe a peso de ouro e a estratégia passava por denegrir ao máximo a imagem da mulher morta, alegando insanidade temporária para o homem que lhe teria descoberto os podres. Passava por estabelecer a imagem de um homem loucamente apaixonado, um marido e pai exemplar, pilar da comunidade, que teria sofrido um choque tremendo. Crime passional.

Mas a verdade era outra e ele sabia-a. E nisso, nada neste caso era diferente do habitual. Era raro defender réus que julgasse efectivamente inocentes. Nunca tal o havia incomodado. Mas este caso tornara-se diferente a partir do momento em que vira as fotografias da cena do crime, como milhares que havia visto antes, e se deteve, não no horror da cena, que tinha visto já bem pior, mas na beleza e na expressão da mulher que ali se mostrava morta. Por instantes, julgou que aquela mulher lhe falava, que os seus olhos de terror gritavam por ajuda, e sentiu uma náusea incontrolável.

Saiu a porta do escritório e do edifício com a cabeça a latejar, e perante o ar atónito dos seus assistentes, que nunca o tinham visto sair sem comunicar onde ía e nem nunca lhe tinham visto outra expressão senão a inexpressão, excepto nos raros momentos de boa disposição em que se permitia uns sorrisos, em geral na celebração da vitória dos casos mais difíceis.

Saiu para a rua com uma ânsia de respirar ar fresco que lhe era totalmente desconhecida. Vagueou pelas ruas até sentir a pulsação voltar ao seu ritmo normal. Sentou-se então numa esplanada e pediu qualquer coisa, na tentativa de fazer passar o nó no estômago que era a única réstia do descontrolo físico que aquelas fotografias tinham provocado. Soube-lhe bem estar ali, naquela tarde fresca mas cheia de sol. Pensou que havia anos que não se sentava numa esplanada de rua, simplesmente a ver quem passava.

E de repente, numa fracção de segundo, os seus olhos detiveram-se numa mulher que mais lhe parecia um anjo. Estava parada no meio do passeio largo da avenida, a olhar para cima, para a copa de um dos frondosos jacarandás, com uma máquina fotográfica ao pescoço que tinha ficado suspensa a meio caminho, entre a posição de transporte e a posição de fotografar. Ela sorria, um sorriso plácido de encantamento, e ele pensou que ela estava tão ausente que nem se apercebia das cabeças que se voltavam para a olhar, a admirar. Era uma mulher bonita, sem ser deslumbrante, mas que transpirava uma leveza que não era deste mundo.

(Continua)

4 comentários:

LBJ disse...

Continua, continua, temos policial ou romance? Agora deixaste-me curioso.

Devias evidenciar melhor a passagem do real para a memória.

Fico à espera da continuação :)

Beijo

CB disse...

LBJ,
Agradeço o comentário e a crítica. Penso que a ligação é feita pelo último parágrafo do trecho anterior, quando ele vê os seus olhos no espelho passa a ser um momento instrospectivo. Não estou a publicar "capítulos", mas sim trechos da história que vou escrevendo. Mas estarei atenta à tua sugestão.
Obrigada pelo incentivo. Já há mais escrito e aqui estará em breve.
Beijo

Light Princess disse...

Este teu conto está a ficar mais "intrincado", estou a gostar :)
Espero por mais...

Beijo

CB disse...

Obrigada Luz. Ainda tem muito mais em espera e está a tomar vida própria...
Bj