O que quer dizer com isso?

As palavras escritas são, geralmente, mais reflectidas. Há tempo para reler, clarificar, encontrar sinónimos mais apropriados. Suavizar mensagens duras arredondando a escrita, ou endurecer mensagens que a nossa voz não permitiria transmitir com a mesma segurança, ou dizer aquilo que não sentimos mas queremos ou precisamos de exorcizar. As palavras escritas só são lidas após este processo, são diferidas. As palavras faladas são mais espontâneas. Saiem-nos da boca com muito menos filtros. Podem-se suavizar ou embelezar com mais palavras, tentar clarificar quando não são bem ouvidas, ou quando nos traem a vontade, o sentir ou o pensar, mas não se podem apagar ou substituir as que já se disseram. As palavras faladas são instantâneas e imutáveis.

Um texto pode-se sempre interpretar de várias formas, é certo, mas é essencialmente uma articulação lógica de palavras cuja maior carga emocional é de quem lê. Quem lê um texto tenta geralmente perceber qual a verdadeira mensagem do escritor e, quando não entende, relê as mesmas palavras, a mesma cadência de pontuação, esforça-se por se afastar das suas próprias condicionantes emocionais, até que o todo faça sentido. Se o escritor não é uma nulidade, a mensagem passa.

Uma conversa, uma fala ou um discurso, carrega emoções de quem emite as palavras, antes de mais nas cambiantes da voz, na expressão do rosto e na linguagem do corpo, e quem ouve interpreta isso tudo ao mesmo tempo que significa as palavras em si. Se quem ouve não entende, só lhe resta pedir uma repetição ou uma clarificação, mas nunca ouve nem vê exactamente o mesmo que antes – ao contrário do texto escrito. E às vezes, quem fala também esconde as suas emoções num esforço cénico de esconder a alma, tornando mais complicada a interpretação das palavras. É muito mais difícil falar assim, mas há quem o consiga fazer e até se “profissionalize” nessa arte.

Hoje pergunto-me se essas pessoas, de tanto encenarem, não deixarão mesmo de sentir. Há uma pessoa assim que me é muito próxima e não lhe vejo emoção, sentimento, expressão. Reparo que falo com ela da mesma maneira, no mesmo tom frio e calculado, com pouquíssimas inflexões de voz, e o mínimo de contacto visual. Com uma diferença: a emoção e o sentimento estão cá, espartilhados pelo tal esforço cénico recíproco, e depois as minhas emoções exprimem-se em discursos interiores silenciosos a tentar apaziguar aquele desconforto que fica, e a pensar o que raio exactamente ela queria dizer com certas palavras, ou em revoltas partilhadas com quem me sabe ouvir e sentir.

Ao meu filho eu escondo as lágrimas, mas nunca o enorme amor que tenho por ele, que tenho a certeza que se vê nos meus olhos e se ouve na minha voz, mesmo quando lhe prego um raspanete. E só por ele mesmo é que me ponho a jeito destas setas envenenadas. Cinco dias disto valeram a pena por ele e por me recordarem porque tive tanta pressa de saír de casa. Luto tanto, ainda hoje, para me libertar da encenação que cresceu comigo, mas que detesto, e que sei que não é minha. Na escrita consigo libertar-me dela. Na fala, ainda não. Não sempre. E cada vez me apetece menos conversa, menos som. As palavras de mim são cada vez mais fundas mas cada vez mais silenciosas, e cada vez mais preciosas e impartilháveis. E não me apetece explicá-las, suavizá-las, contorná-las. Apenas materializá-las e deixá-las escritas, a definirem-me aos poucos apenas a quem me sabe ler, a quem consegue decifrar o código.

10 comentários:

Light Princess disse...

É bem verdade, as palavras faladas não passam por filtros, ou pelo menos a sua consistência acaba por ficar mais ou menos invulnerável após alguns filtros mais resistentes.
Já as escritas podem ser bem mais pensadas... mas só se o quisermos! Podemos continuar a destilá-las directo do coração, se o deixarmos falar através da boca... (este será sempre o meu "queixume" preferido... o que fala bombeando emoções!)
Beijo

CB disse...

Luz,
Pois é. A escrita que destilo aqui é directa, mas não escrevo para ninguém em particular, ou melhor, escrevo essencialmente para mim. Quando se escreve a alguém é diferente. Eu referia-me mais à diferença entre falar com alguém ou escrever-lhe, um carta, ou um email, por exemplo. Memo usando as mesmas palavras, de certo que a mensagem não chega da mesma forma.
Beijo

LBJ disse...

Haverá sempre pessoas, com quem por uma razão ou por outra nunca consegues falar de uma forma natural, a escrita tem essa vantagem uniformizas o teu preconceito e as tuas limitações, mas é verdade que quando escreves, corres o risco de estares a interpretar um papel e poderes ficar refém do cambiante emocional que esse personagem carrega, eu sinto isso por vezes.

Com o tempo quem nos lê, começa a conhecer-nos, a perceber o nosso código, mesmo que o arredondemos com figurinos, mesmo que a mensagem seja um dialogo onde só se ouve um dos lados, conseguem perceber se estamos tristes ou um pouco mais felizes, conseguem até descobrir nas nossas mensagens ,significados que nem nos tínhamos dado conta que os nossos subconscientes lá tinham colocado, isto não me deixa de espantar porque na sua maioria são pessoas que só nos conhecem do pouco que contamos, mas que criam connosco laços virtuais de amizade muitas vezes mais fortes que os reais.

Se te apetece escrever, escreve, não te deixes tentar, pela tua imobilidade temporária em querer analisar o porquê de coisas que te dão prazer e satisfação, a experiência ensinou-me que há coisas que é melhor não entender, sobre pena de elas perderem significado.

Olha um exemplo das variações da comunicação escrita, este comentário estava muito mais completo, mas o PC fez-me uma partida e decidiu fazer reboot e agora a memória só me deixa recordar fragmentos do que tinha escrito , que diga-se de passagem era a minha obra prima dos comentários ;)

Beijo

CB disse...

LBJ,
Realmente que obra prima. Nem sei por onde começar para te responder. Apetece-me escrever sim, precisamente porque não me obriga ao esforço cénico. Porque aqui escrevo tal e qual me sinto e tal e qual o que penso. Nunca me senti um personagem aqui, ao contrário do que sinto quando "converso" com pessoas que me conhecem na vida real.
Quanto aos porquês, com ou sem mobilidade reduzida, são e foram sempre, o meu principal alimento. E no dia em que me deixar de perguntar porquê, no dia em que deixar de analisar, é o dia em que desisto de viver. A escrita também me permite fazer essa análise, porque é um diálogo de mim para mim, através do qual consigo, muitas vezes, chegar lá, encontrar umas respostas, e descobrir novos porquês. Quando aqui tenho ecos do que escrevo, geralmente são manifestações de concordância, raras vezes de discordância, de apoio ou incentivo. Muitas vezes me têm dado que pensar - me têm dado outras formas de olhar os porquês que destilo.
Como sabes, algumas coisas que escrevo não publico, mas preciso de as escrever e ainda não escrevi todas. E o que hoje percebo é que tenho de escrever mais, ainda mais, para falar de viva voz ainda menos.
Beijo

1REZ3 disse...

Bem-vinda de esses dias (por certo) bem passados :)

E sim, continua a escrever como e o que sentes sem receios de filtros ou incompreensões. Até porque escreves muito bem (para além de dar "gozo" decifrar e comunicar por intermédios dessas palavras) :)

A escrita é obviamente de mais fácil execução precisamente pelo tempo que envolve na sua apresentação aos olhos de quem "ouve".

Um aparte, como vês (pela resposta ao LBJ) sempre te dás a conhecer :) Ainda que não na tua totalidade mas certamente a tua verdadeira essência. E é essa a faceta mais bela e encantada :)
Mas isto sou eu a pensar... ;)

Pronúncia disse...

Há uma frase que eu não sei de quem é, mas ouvi-a há uns anos e fixei-a:

"Somos donos das palavras que não dizemos, mas somos escravos daquelas que proferimos"

Penso que esta frase encaixa aqui perfeitamente, quer a palavra seja escrito ou falada :)

forteifeio disse...

Principeza

adorei este texto, que delicia,que forma exemplarmente bela de expores o teu ponto de vista. Claro como água.

CB disse...

Treze,
Obrigada pelas boas vindas e pelo elogio à escrita - mas o "gozo" de decifrar afinal é de quem?... :)
Escrever para mim é fácil no pôr das palavras no ecrã, mas nem sempre na leitura do resultado final.
Quanto a àparte, eu sei que vos revelo, a vocês que me lêem, a minha essência, não a toptalidade, tal como não revelo a essência a quase ninguém que me conhece noutras esferas. Gosto de saber que essa essência que aqui mostro é vista com tão bons olhos. :)

CB disse...

Pronúncia,
Magnífica frase, mas a mim costuma-me parecer exactamente o oposto com a escrita. Se com a palavra falada ficamos, de facto, escravos do que dizemos, palavras instantâneas e imutáveis, o que escrevo liberta-me. Para mim, as palavras que não escrevo são precisamente as que me prendem, e só sou dono delas quando as materializo.
Mas gosto da ideia... :)

CB disse...

Forteifeio,
Muito obrigada. Confesso que, apesar de não ser um dos meus melhores textos sob o ponto de vista "literário", também é dos que gosto mais. Também o senti "claro", e foi clarificante escrevê-lo... :)