Corpo ou Alma

Quem me vê não sabe. Quem me ouve a fala e o riso não me alcança. Só quem me lê as palavras que não digo consegue construir o meu mapa. Quem me vê a roupa e o corpo faz-me um ser material que não existe. Quem me lê a alma faz de mim um ser virtual que é o meu ser real. E, salvo raríssimas excepções, não consigo mostrar o meu mapa, a minha alma, o meu ser real, a quem me vê roupa e corpo, me ouve palavras e risos. A quem não consigo confiar as lágrimas, não posso levantar o véu. E a quem me viu a alma, não posso vestir o corpo. Corpo e alma sou só para mim, na minha intimidade impartilhada. Alma sou aqui – palavras e textos de dentro de mim. Corpo sou na vida – existência física que guarda oculta a essência de mim.

Não há como misturar as duas coisas sem um cimento de mais do que mera curiosidade. Entregar a alma a quem vê o corpo só quando há um sentimento muito forte, uma confiaça cega, uma intimidade conquistada, que tornam natural que se levante o véu. E vice-versa – entregar o corpo a quem viu a alma só se há sentimento e confiança suficientes para acreditar que a materialização da alma em corpo não corrompe nem substitui a imagem da primeira pelo segundo.

Serei sempre esta dicotomia com quase todos os que passam na minha vida. Protejo a essência com o anonimato do nome e do corpo, e protejo o corpo pondo a alma na sombra. Faço mal, dizem-me. Devo revelar-me mais aos que estão na minha vida, à minha volta. Mas esse caminho que tenho feito não se tem revelado nem fácil nem seguro. E a cada revés que me acontece, mais me convenço que há quem não mereça mais que isso de mim – a alma na sombra, as dores ocultas, a minha essência protegida. São poucos, muito poucos, os que me merecem por inteiro, e eu inteira sou o meu mais precioso tesouro, que tenho de guardar para quem mereça e reconheça, e aprecie, e na volta me enriqueça. Prezo os tesouros desses poucos que me vêm inteira e se mostram inteiros, tanto mais valiosos quanto mais raros são. Só nesses poucos confio, e guardo essa confiança como uma pedrinha na mão.

12 comentários:

Francis disse...

e fazes tu muito bem.
não nos devemos dar a conhecer, por inteiro, em vão.

CB disse...

Francis,
Nem mais."Em vão".

Apple disse...

O "ser inteiro" é algo de tão precioso e frágil que não pode ser entregue, tem de ser merecido...conquistado.

1REZ3 disse...

O não nos darmos a conhecer (eu próprio sou uma dessas pessoas) acaba por ser um paradoxo, pois não somos menos que seres de partilha.

Sinto que acabas por te dar, sim, a conhecer. Talvez mais do que pensas.

Quanto ao tal segredo, depende sempre de ti mas se calhar mais importante que a forma como te vês perante esse segredo revelado, é a forma como quem o ouve reagirá.
Se lhe dará mais importância que merece ou se o encara de forma natural e na disposição de te "ajudar" a ultrapassa-lo.

Talvez esteja aí o "medo" de todos quantos carregam os seus "segredos".

Alguém saberá enfrentá-lo contigo, descansa :)

CB disse...

Apple,
É um exercício difícil, mas sim, tem de ser merecido e conquistado, e reciprocado.

Pronúncia disse...

Princesa, eu sou daquelas pessoas que deixo sempre que os outros vejam um pouco da minha alma (não toda). Como tu, já me arrependi muitas vezes disso, mas as vezes em que acabei por conhecer os outros como pessoas inteiras... valeu bem a pena e compensou todas as desilusões!

Penso sempre nessa meia dúzia de pessoas inteiras e que agora também me conhecem inteira como os diamantes que adquiri depois de ter garimpado muita tonelada de terra inútil... valeram, e valem bem a pena :)

CB disse...

Treze,
Na verdade, não dou mesmo. Até pode parecer que sim a alguns, mas não dou.
Não sei porque referes o "tal segredo", porque isso é apenas uma parte daquilo que não partilho, nem aqui. Mas embora seja uma coisa importante de mim, que me deixou cicatrizes que hoje condicionam a forma como me dou aos outros, não é nada que eu esconda pela reacção dos outros. Escondo por mim, porque não quero recordar, não quero analisar, não quero sofrer mais com isso. Um dia alguém me mostra que já não interessa, não faz diferença, e isso ajudar-me-á a fechar esse passado definitivamente.
:)

CB disse...

Pronúncia,
Gostava de poder dizer que compensei as desilusões, como tu dizes. Mas é difícil dizê-lo sinceramente, porque custa mesmo, e custa cada vez mais, sobretudo quando é recorrente com algumas pessoas a quem decidimos dar segundas e terceiras hipóteses.
As pedras preciosas dos que não me desiludiram (ainda), fruto dessa "garimpagem" (bonita maneira de o escrever), guardo mesmo como tesouros e valem mesmo muito a pena. :)

PS: Ainda andas por Sintra?...

1REZ3 disse...

Referi-me a isso porque tinha ficado com a impressão que era o que mais te pesava daquilo que não dás a conhecer (na tua vida física).
Só falei nisso porque é perfeitamente normal haver assuntos que desejamos a todo o custo apagar e "mostrar-te" que tudo se ultrapassa (desde que com a pessoa certa).

A não ser que tenhas andado a maltratar velhinhas ou roubar doces a bebés, aí sim, seria maís dificil, mas não impossivel de ajudar a ultrapassar :) (só para descomprimir...)

Pronúncia disse...

Pois, o problema é que eu dificilmente dou segundas hipóteses e terceiras... nunca! Nem pensar!

Ainda ando por Sintra! Amanhã rumo a Viseu... é tão bom estar de férias :)

CB disse...

Treze,
Credo!!! Não andei a fazer mal a ninguém, pelo contrário, e muitos menos velhinas e bebés! :)
Não é o que mais me pesa não revelar, mas é o que mais condiciona, ainda, a forma como me revelo (ou não revelo). É talvez o maior peso do passado que ainda arrasto, que ainda me custa, que ainda me assombra. Um dia passa.

CB disse...

Pronúnica,
Geralmente também não dou, a não ser a pessoas com quem tenho laços especialmente fortes, como é o caso da família.
Boa viagem e continuação de boas férias! :)