Espelho meu

Há um reflexo no espelho à minha frente. Ali está a imagem de mim. Redescubro os meus traços e contornos. Era menina de sardas, agora mulher madura. As sardas estão lá ainda, menos óbvias no rosto. A menina ainda brilha nos olhos. A mulher vincou-se em algumas pequenas rugas de expressão. São marcas do que ri e do que chorei. Do que vivi, intensamente. Apanho o cabelo para me olhar melhor. Já fui adolescente, depois projecto de mulher, com o cabelo muito curto num impulso de rebeldia. Ficava-me bem, lembro-me. Mas a minha avó chorou - adorava o meu cabelo. Solto-o e sinto-o envolver-me os ombros e cair até quase meio das costas despidas. Gosto do meu cabelo assim, bastante comprido e solto, caido numa leve revolta, não rebelde. Observo o meu corpo que já adquiriu um leve tom de Verão. Nunca bronzeia, apenas doura. Continuo a ver-me tão menina, talvez pela magreza de que sempre fui vítima. Já foi demais, já foi tormenta. Hoje é a certa para mim. Há quem a inveje e quem me queira fazer engordar. Eu gosto assim. Sortes e destinos. Penso em equílibrios divinos. Mais disto, menos daquilo. Hoje percorro as minhas curvas, que já não são de menina franzina nem de adolescente espigada. Também têm algumas marcas do meu percurso de mulher. Uma cicatriz de mulher feita mãe, num ventre que adquiriu já contornos tão diferentes para gerar vida e para a soltar se cortou. E fica a marca, cada vez mais ténue, cada vez mais minha, e o desenho da cintura voltou. Como é espantoso. Curva de destino. Apesar de tudo, reconheço ainda o meu corpo, mantenho até as mesmas pernas que não parecem, ainda, querer envelhecer. Sorte ou azar. Estes são os caminhos que os meus homens percorreram em mim, com os dedos por cabelos ora curtos ora longos, por esta pele ora branca ora dourada, ora antes ora depois de cada ruga e cada cicatriz. Engraçado, parece-me que nos sentimos mais no toque dos outros. O tacto dos outros desenha-nos, faz-nos sentir a existência da pele, materializa-nos os limites do ser. Como também nos vemos tantas vezes pelos olhos dos outros, e tantas vezes nos perdemos por nos significarmos apenas aí. Hoje o espelho é os meus olhos, penso. As minhas mãos, os meus dedos, o meu próprio sentir de mim. E olho-me, e sinto-me. Desenho-me e delimito-me. E sorrio. Não é perfeito o meu rosto, nem o meu corpo. Mas eu gosto de mim assim. Tenho-me ali no espelho, todos os meus antes e depois, e só eu me tenho sempre a mim. Vesti a minha pele.

8 comentários:

Apple disse...

Adorei este texto..tão intímo, tão belo, tão ao toque da pele e ao fundo da alma...

CB disse...

Apple,
Obrigada. É muito íntimo, sim. Pele e alma, nem mais...

Anónimo disse...

E na ternura do ser, as marcas do viver. São elas que te fazem ser...

Parabéns por as teres.

CB disse...

John Doe,
Ternura é uma boa palavra. E obrigada.

Pronúncia disse...

Retive: "vesti a minha pele"!

É importante, é sinal de que nos aceitamos tal e qual somos, com o que gostamos em nós, com as nossas cicatrizes e com o que gostamos menos, mas mesmo assim não trocaríamos :)

CB disse...

Pronúncia,
É, de facto, o que há a reter. Como escrevi a outra pessoa, descobri que mesmo as minhas imperfeições são minhas, partes do todo, que no conjunto me agrada, sim. Sem falsa modéstia mas sem vaidade no mau sentido. É mesmo vestir a pele serenamente.

Dry-Martini disse...

Uma antítese que se toca. Num sentimento e num partir de [outro] espelho. Reflexo de uma estranheza curiosa. Muito curiosa.

Adorei!
XinXin

CB disse...

Dry-Martini,
Obrigada. É de facto um espelho de inverso, coincidência antagónica. Mas sem dúvida curiosa.

XinXin