Seguindo na parte 4

(...)

Fizeram o mesmo movimento sincronizado em espelho, descendo da visão improvável do céu para o encontro horizontal do olhar de um no outro. O sorriso dela era agora diferente, mais fechado, inquisitivo, mas doce. Os olhos grandes a quererem mergulhar para lá do vidrado dos olhos negros dele. Ele estava num suspenso, como se realmente não tivesse peso, e estava preso no olhar e no sorriso dela, que inevitavelmente mimetizou. Foi apanhado de surpresa, tanto pelas palavras como por toda a situação. Era como se não fosse ele, o que conhecia de si próprio, que tinha construído ao longo dos anos e que domava. Alguma força maior se apoderara dele, sentia-se literalmente enfeitiçado.

Um homem inteligente, como era, saberia o que responder num ápice, mas não conseguia articular nada. Ficou apenas a contemplá-la e então ela baixou o olhar e disse-lhe - Mas não sabe o que fazer com isto. Deu-se conta da máquina fotográfica suspensa a meio caminho, levantou-a, voltou-se de novo para cima e disparou. O som do disparo da máquina fê-lo voltar à realidade e conseguiu finalmente falar-lhe: - Você foi os meus olhos. E sim, agora não sei o que fazer.

Ela abriu o sorriso enquanto ainda olhava para cima, sem se mexer. - Mas foi a sua alma que viu o que os meus olhos apontaram. E foi a sua alma que sentiu, e é ela que tem a resposta à pergunta do que fazer.

Ele estava totalmente confuso, até porque conversas sobre almas não faziam parte da sua realidade. Mas aquelas palavras ecoavam numa parte de si, bem dentro, que já nem se lembrava que existia. Aquelas palavras feriram-no.

- A minha alma... a minha alma está há muito vendida para se manter em silêncio. Já não sabe dizer-me o que fazer. - Ela voltou-se para ele, estendendo uma delicada mas decidida mão.

-O meu nome é Sofia. E deixe-me dizer-lhe que a nossa alma permanece, mesmo que deixemos de saber ouvi-la. E podemos sempre reaprender.

O seu sorriso era agora desarmantemente aberto, quase condescendente, como se percebesse o desconforto dele, a sua insegurança. Ele estendeu também a sua mão levantando os olhos para a olhar de frente.

- Chamo-me Pedro - enquanto as suas mãos se encontravam, num primeiro toque físico electrizante, que ele sentiu no corpo todo. Em mais um impulso perguntou-lhe se aceitava tomar um café e ela anuiu, sempre sorrindo, enquanto os dois faziam a travessia da avenida em direcção à mesma esplanada de onde a tinha visto pela primeira vez minutos antes.

Dada a generosidade que tinha patenteado, o empregado arranjou-lhes de imediato uma mesa simpática. Foi diligente no serviço, e assim rapidamente se encontravam frente às suas bebidas, ele um café e uma água, ela um chá gelado. Ele sentia-se ligeiramente ridículo, e não fazia a mínima ideia nem porque tinha voado pela avenida em busca de um contacto com aquela mulher, nem porque queria manter-se na sua presença, nem muito menos o que lhe havia de dizer. Acendeu um cigarro para disfarçar o nervoso. E mais uma vez, ela salvou-o.

- Podemos falar apenas do tempo... - disse-lhe num tom leve, com um sorriso ligeiramente irónico. Ele não conseguiu evitar soltar uma pequena gargalhada, que ela acompanhou, derretendo instantaneamente o gelo entre os dois.

Passaram uma hora à conversa naquela esplanada, entre risos e olhares inquisitivos, mas escaldantes. Mantiveram um registo leve, sem mais conversa de almas, anjos ou demónios. Falaram um pouco de si e do porquê de ali se encontrarem. Falaram do que faziam, onde viviam e das coisas que mais gostavam de fazer. Passaram a tratar-se por “tu”. Descobriram afinidades de preferências gastronómicas e de destinos de viagem. Partilharam pequenas estórias de viagens a esses destinos. Ela ficou a saber que ele era advogado, solteiro, nascido na capital. Que trabalhava no centro e vivia numa zona antiga e prestigiada da cidade.

Sofia estava de passagem, em turismo. Era professora numa cidade a norte, de onde era originária e onde vivia num pequeno apartamento de um dos prédios mais antigos, e estava de férias na capital. Não revelara muito de si àquele estranho, por quem se tinha sentido tremendamente atraída, que pressentira aproximar-se na avenida sem ter olhado para ele, e a quem sentira o desconcerto da visão que lhe indicara. Tinha intuído nele uma tristeza imensamente profunda, um vazio, um desnorteamento, que lhe despertava uma certa pena. E intrigava-a aquele homem em quem era palpável uma enorme força e inteligência, e porém tinha uma sensibilidade especial adicional. Sabia que ele também era capaz de mais do que lógica e razão – sabia que ele também via. Mas estava preso algures.

Quando olhou realmente para ele, teve uma sensação estranha de “dejá vu”. Tudo o que observava nele, pela primeira vez, era como uma recordação. A aproximação dele e o convite para tomar um café foram vividos como capítulos de um livro que já tinha lido, e a conversa com aquele estranho sabia-lhe a lembrança de outros tempos. Até a forma como acendia o cigarro, o cheiro daquele tabaco, e o cheiro dele, sabiam a memórias de tempos idos. E no entanto, cada olhar dele, cada gesto, cada detalhe que lhe re-descobria em surpresa, incendiava-a numa vontade inegável de mais.

Tinha sentido o aperto de mão com que se apresentaram como uma onda de calor que a percorreu da ponta da mão ao seu interior mais profundo. Tinha sentido que Pedro também não tinha sido indiferente àquele toque. Via perfeitamente nos olhos dele, ouvia claramente nas suas palavras, que tinha por ela a mesma ânsia inexplicável que ela tinha por ele. Era um homem inegavelmente atraente, do ponto de vista físico. Mas não só. Sofia tinha vontade de o tocar de novo, imaginava-lhe o beijo ao observar o movimento da boca enquanto falava ou quando tirava uma baforada de cada cigarro que acendia. Mas tinha também uma vontade louca de percebê-lo, de se entranhar na aura de mistério que o envolvia.

Ao fim de uma hora de conversa, o empregado pousou a conta na mesa, e ambos se aperceberam que tinham esgotado aquele tempo. Sofia não se recordava de algum dia ter sentido nada semelhante por homem nenhum e de uma forma estranha, que não conseguia explicar, sabia que aquele encontro era destino, e não ficava por ali. Ambos sorriram com um misto de pena pelo fim do momento e de vontade de mais. Pedro perguntou-lhe para onde ía e Sofia, por sua vez, não recusou nem temeu a oferta dele para a acompanhar ao hotel onde se alojara, que era próximo.

Deixaram a esplanada para trás, mais uma vez atravessando a avenida larga em direcção à grande praça central, antes de se embrenharem pelas perpendiculares muito mais estreitas. Subitamente tinham deixado de falar e caminhavam simplesmente lado a lado, sem se tocarem, ambos a fervilhar por dentro num caldeirão de sentimentos e pensamentos desconexos, tudo fervido pela força de um desejo de toque que era quase visível. Mas ambos evitavam os olhos do outro, suspensos na mínima inflexão de movimento ou respiração do outro, a tentar controlar os seus próprios movimentos e a sua própria respiração. Agora, nenhum deles sabia o que dizer.

(continua)

5 comentários:

CB disse...

Esterilização Obrigatória,
Não acertaria com certeza. Não concordo com a vossa "teoria" e acho que isto é spam, por isso nem posso agradecer a visita.

Light Princess disse...

Principessa, eu estou a gostar deveras da tua história! A cada bocadinho que desvendas vai apetecendo saber mais, e mais... :)

LBJ disse...

Isto está a crescer :)

Estás a manter o suspense :)

Sem ter nada que ver espero que estas disléxicas bestas da esterlização não me apareçam pelo meu buraco senão desta é que me passo...

Assertar... Incrivel :))

CB disse...

Obrigada, Luz. É bom saber. :)
Já há mais em produção, mas precisa de amadurecer antes de vir aqui parar...

CB disse...

LBJ,
Obrigada. :)
Quanto às "bestas", optei por simplesmente ignorar e não alimentar o blogue deles, nem com mais visitas nem muito menos com comentários. Não merece a "publicidade"...