No tempo dividido


As horas passam lentas, demoradas. Dias, manhãs frescas, tardes quentes, crepúsculos de promessa de noite. Luz coada pelas janelas da casa e de mim, rodando a sombra ao longo das horas. Noites compridas ainda quentes, madrugadas lentas mais frescas. Dia e noite, manhã e tarde e madrugada. Idas e vindas esporádicas, para manter a sanidade de saber respirar um ar de liberdade. Vou e venho, enquanto o tempo passa sem eu ver. Melhor quando me foge assim. Fico entretanto e espero, enquanto vejo o tempo passar. Compassado, lentamente. Mas fugindo a cada momento. Cada agora é um segundo que já foi, já passou. Em alternâncias de divisões, em antes e depois.

“E agora ó Deuses que vos direi de mim?
Tardes inertes morrem no jardim.
Esqueci-me de vós e sem memória
Caminho nos caminhos onde o tempo
Como um monstro a si próprio se devora.”

De Sophia de Mello Breyner Andresen, num livro de 1970, 2ª Edição de “Antologia”, que tenho naquele papel velho e amarelecido pelo tempo e por todos os muitos olhos e mãos que já o percorreram. Cheira a todas as casas por onde passou, a todos os tempos a que sobreviveu. Guardo-o com muito carinho. Tem uma dedicatória de Sophia a uma das minhas tias, que mais tarde me legou mais do que o livro - deu-me a poesia que eu sempre busquei, a que volto de vez em quando para me perder e encontrar, sem tempo.

15 comentários:

Pulha Garcia disse...

Em geral não sou fã de poesia. Prefiro a prosa. Mas há um punhado de excepções e a Sophia é uma delas...

1REZ3 disse...

Como tu escreves, Princesa...

Se o fazes nesse estado de espírito e sentimental, nem quero imaginar quando esse coração estiver a funcionar em pleno...

Anónimo disse...

"Espírito que passas, quando o vento
Adormece no mar e surge a Lua,
Filho esquivo da noite que flutua,
Tu só entendes bem o meu tormento...
Como um canto longínquo - triste e lento-
Que voga e sutilmente se insinua,
Sobre o meu coração que tumultua,
Tu vestes pouco a pouco o esquecimento...
A ti confio o sonho em que me leva
Um instinto de luz, rompendo a treva,
Buscando. entre visões, o eterno Bem.
E tu entendes o meu mal sem nome,
A febre de Ideal, que me consome,
Tu só, Gênio da Noite, e mais ninguém!"
Antero de Quental

Pronúncia disse...

Estou sem palavras. Gostei do teu sentir do tempo... ora lento, mas com a consciência de que afinal passa demasiado depressa!

Bom texto! ;)

Ana GG disse...

Também (ainda) não sou muito muito ligada à poesia, penso que estou, pouco a pouco a aprender a gostar. Tenho contudo alguns poetas que gosto bastante. A Sophia colocou magia em tudo o que escreveu.

E tu, és definitivamente uma mulher da escrita.

Apple disse...

Belíssimo...

forteifeio disse...

Belo poema.

Lição nº1 : Aproveitar o tempo que resta.

Lição nº2 não nos descontrarmos com outras lições

forteifeio disse...

desconcentrarmos

CB disse...

Pulha,
É normal que haja excepções - e a Sophia é excepcional por si.

CB disse...

Treze,
Obrigada...

CB disse...

John Doe,
Certeiro. Obrigada.

CB disse...

Pronúncia,
Obrigada. ;)

CB disse...

Ana,
Que elogio... Obrigada. :)

CB disse...

Apple,
Obrigada. :)

CB disse...

Forteifeio,
Obrigada pelas lições...