O fim de uma Senhora especial


Apagou-se esta madrugada. Acabo de saber. Estava em sofrimento já há dias, e há uns anos que já não vivia – existia num estado vegetativo, sem contacto com o mundo, que me revoltava e que me fez desistir de a visitar. Primeiro senti tristeza, depois também alívio por ela. Já merecia descanso, ao fim de mais 90 anos de existência e desta recta final tão pouco dignificante. Era uma sobrevivente, agarrada à vida, que suportou muita coisa sem nunca perder o sorriso e a compostura de uma verdadeira Senhora, enquanto podia sorrir. Era afectuosa, carinhosa, brilhavam-lhe os olhos nas minhas visitas dos tempos em que ainda sabia quem eu era. Tenho memórias dela desde a infância à idade adulta. Lembro-me que foi ela que me acompanhou e tomou conta de mim aos 12 ou 13 anos, quando estive 2 semanas isolada num quarto por causa de uma doença. Lembro-me das tardes na infância, demoradas e encantadas, que passei na casa dela, às vezes sozinha, outras vezes com as minhas irmãs, em que vestíamos as roupas antigas dela, os chapéus e as luvas compridas, os sapatos de salto alto onde nos cabiam dois pés, e ela ria, ria connosco, numa alegria tão genuína. Lembro-me dela sentada comigo e com os albuns que mostravam o seu percurso de vida, contando as histórias que viveu nos países por onde passou, as viagens, o marido que perdeu muito cedo, que ainda me conheceu mas de quem eu já não tenho memória. Lembro-me da mão dela a passar sobre aquelas fotografias com uma ternura e uma saudade que, na altura, eu não podia compreender. Lembro-me dos postais que guardava de quando andou por outras paragens, num tempo em que as palavras voavam ou navegavam em papeis e não no éter do espaço cibernáutico. Lembro-me de, na adolescência, me mostrar todas as cartas, desenhos e postais que eu criança lhe tinha enviado, nas férias ou apenas por saudade. Lembro-me da forma como olhava para mim adolescente e de um dia resolver que eu já era uma senhora. Lembro-me das conversas e dos mimos todos que me dava. Das comidinhas que fazia de propósito para mim por serem as minhas preferidas. Dos fins de semana que passava em casa dela, tratada mesmo como uma princesa. Lembro-me do orgulho com que apresentava às amigas. Lembro-me dos cafés onde tomava um carioca escaldado. Lembro-me da gentileza com que tratava toda a gente, apesar de ter uma personalidade fortíssima e ter as suas manias incompreensíveis. Lembro-me que era acarinhada por todos nas redondezas. Lembro-me, lembro-me, com saudade, tanta saudade. Estou triste nesta saudade, que já não é de hoje, mas que agora se instala definitivamente num tempo acabado. Boa viagem. Mas que saudade.

7 comentários:

Ana GG disse...

Bonita homenagem!
Confesso que me arrepiei ao ler o texto.

Sinto muito pela tua perda...
Um beijo

mf disse...

Conheço bem essas saudades...

Abraço apertado

Apple disse...

E permanece o doce perfume das memórias gratas enquanto a saudade cresce um bocadinho cada dia...

LBJ disse...

É sempre muito triste ver alguém de quem gostamos partir, serve sempre de algum consolo, saber que viveu muito anos e agora já não vivia e que descansou, mas isso não apaga nunca a saudade :(

Um Beijo

CB disse...

A todos vocês, muito obrigada pelo carinho das vossas palavras.

Dry-Martini disse...

O melhor que levamos desta vida - as memórias! Estou certo que te levou também, lá, onde quer que esteja .)

XinXin

CB disse...

Dry-Martini,
Eu acho que as memórias são antes o melhor ou o pior que "deixamos" na vida. Ela deixou o melhor. Obrigada.

XinXin