Uma noite de desasossego

Uma dessas noites passadas... Às 4 da madrugada estava acordada, às voltas na cama, a querer forçar o sono que tinha a fechar-me os olhos, a tentar voltar para o embalo do sonho, a destilar memórias (boas). Mas quase às 5 da madrugada ainda estava acordada com a cama num desalinho, a ouvir os primeiros pássaros a cantar - e não achei lindo, não, fiquei foi bem irritada.

Teria sido do livro que estava a ler? Gosto do autor, Luís Sepúlveda, de quem li há muitos anos 3 livros que me apetece reler, o que é raríssimo. Este, comprado há uns meses, é uma colecção de pequenos contos, alguns de apenas 2 ou 3 páginas. Mas houve um que me tocou tanto, que nessa noite reli. Começa com umas citações fantásticas de uma obra que tem um título, no mínimo, curioso, e que me fez soltar uma gargalhada a primeira vez que lhe pus os olhos em cima: "Enciclopédia Popular do Fracasso Sentimental Latino-Americano"! E o conto tem um parágrafo que reli nem sei quantas vezes, que me assusta, que me atormenta um pouco, na consciência da inevitabilidade de certas coisas que nos transcedem, da impossibilidade de controlo da química da nossa própria alma...

Ou talvez tenha sido do choro do meu filho ao telefone, que ficou com os meus pais. "A mãe já está a caminho?...". Não queria lá ficar a dormir, queria dormir "na casa da mãe", e choramingava desconsoladamente... Várias vezes durante a noite tive aquela sensação de que estava a dormir ali ao meu lado e que se inquietava, como acontece tantas vezes, e eu naquele quase despertar atento, expectante do sossego ou do choro, para decidir se posso continuar a dormir ou se tenho de me levantar. E depois a lembrar-me que ele não estava ali, com uma pedrinha na alma...

Sensações estranhas de desasossego, de ausências, e de predestinação. Como a calma antes da tempestade, mas a electricidade no ar a eriçar-nos os pelos do corpo, alguma coisa a inquietar-nos o coração, uma quase euforia de expectativa sem razão, mas uma pontinha de um medo primordial, de sobrevivência.

Não sei o que seria isto.

Uma grande amiga minha chorou outra vez. Fiquei triste por ela. Não gosto de lágrimas, muito menos nos olhos das pessoas de quem gosto. Para ela, do tal livro do Sepúlveda, citação da fabulosa “Enciclopédia Popular do Fracasso Latino-Americano”:

Mozo, sírvame en la copa rota
Quiero sangrar gota a gota
El veneno de su amor


E, para mim, o tal parágrafo de assombro: “Quis rir, mas às vezes os dítames do cérebro confundem-se, cruzam-se, provocam curto-circuito, alguma coisa falha na alquimia da vida, alguma coisa que me agitou num espasmo antes de desatar a chorar.”

2 comentários:

Pulha Garcia disse...

Durmo péssimamente. Acredito que no teu caso tenha sido mais por saudades do teu filho do que pelo Sepúlveda. Esse é pacífico (não desgosto mas dos latino-americanos prefiro o Mario Vargas Llosa, Jorge Amado...).

CB disse...

Obrigada Pulha. Mais que saudades, com que agora lido muito melhor, na verdade é culpa, a maldita culpa... É mesmo uma coisa tramada. Jorge Amado também conheço e acho muito bom, sim. Mario Vargas Llosa hei-de descobrir.