Reedições Do Passado

O que fomos e o que somos não tem tempo. O que tem tempo são os factos, os acontecimentos, os detalhes e os momentos. Mas também eles nos são gravados, como em pedra, esculpindo-nos mais uma forma, uma ruga, uma prega, ou abrasivamente desgastando arestas, rugosidades e pormenores. São do tempo em que somos a cada dia e a cada noite, são desse tempo sem data que só se fechará quando na pedra se gravem os números do último dia. E vamo-nos tornando a esculptura que a vida nos faz, vamo-nos enriquecendo com os arabescos que esse escopro nos vinca e vamo-nos apagando pelo desgaste da pedra que o tempo da vida produz. Pensamos que deixamos para trás muita coisa, muita gente. Fechamos capítulos, abrimos outros novos, reescrevemos algumas páginas até. Lidamos com o que foi, o que passou, da melhor maneira que conseguimos, para que não nos impeça o passo de novos caminhos. Mas... o passado permanece connosco, esculpido em nós. Na caixa das recordações que sempre encontra um espaço nosso, debaixo da cama, num armário recôndito, ou no fundo de uma gaveta, há tanto de factos e momentos como de nós próprios. Há partes de nós inteirinhas, há bocados da estátua que mutilamos por vezes para sobreviver. Que não queremos carregar connosco no dia-a-dia, que queremos enterrar, chorar e esquecer, no processo do luto que nos ensinam a fazer. Mas faltam-nos, esses bocados, e também não nos larga a sua ausência. Cobrem-se com o pó dos anos, dilúem-se no ruído da vida que vamos amontoando em cima, e continuam lá, debaixo da pilha de coisas que teima em não se equilibrar. É verdade que é importante fechar passados, deixar coisas e outros para trás, e até bocados de nós. Mas isso não é simplesmente esquecer. Às vezes, é morrer um bocadinho. Diz que águas passadas não movem moínhos. Mas, às vezes, movem vidas inteiras.

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