Apátrida

Acabei de ler o livro de Milan Kundera que aqui referi, confirmando que é um autor-mistério para mim: não sei porque é que gostei tanto de o ler a primeira vez e não as seguintes, e ainda não sei bem se gostei de o ler esta última vez ou não. As primeiras páginas foram difíceis de ultrapassar, com passagens que me davam a sensação de estar a ler a wikipedia, sentindo-me quase insultada pelo que parece um certo paternalismo do autor (mas olhe que não, olhe que afinal não), outras passagens que quase parecem uma dissertação de tese científica, e sem nada que me despertasse grande interesse. Aliás, confesso que a primeira página que me agarrou só surgiu a cerca de meio (página 63 para ser precisa), o que pelo menos revela a minha determinação em não o abandonar sem esgotar o benefício da dúvida.  

A história junta vários personagens ligados pelo fenómeno da emigração e debruça-se, essencialmente, sobre os mecanismos da memória e da nostalgia, muito em paralelo com a Odisseia de Ulisses, usando daí os conceitos de "Ítaca" e "grande regresso". Identifico-me muito com um personagem em particular, Josef, que sofre de uma “insuficiência de nostalgia” (em relação à sua Pátria, sua suposta Ítaca) mas, mais ainda, sofre de um tipo de memória "masoquista" que o "detestava, que não fazia outra coisa que não fosse caluniá-lo", que só lhe guardou os momentos maus. Consequentemente, ou não, revela-se frio e desprendido. Talvez por ser como ele em muita coisa me atraia a ideia de emigrar, o que já teria feito se não fosse pelo L. Este personagem perdeu a mulher com quem casou enquanto emigrado, com quem foi feliz, e assume que vive com "a morta", no culto dos seus objectos e rotinas, dada a rapidez com que lhe fogem as memórias. E no fim do livro, que me surpreende pelo ponto final que senti abrupto, depois de ter regressado à sua terra natal, sua suposta Ítaca, Josef opta por regressar à Dinamarca, confortado pela antevisão da chegada à casa "da morta", e aos braços abertos da árvore que ela havia plantado. 

Passados uns momentos de reflexão concluo, de mim para mim e não me interessa se é certo ou errado - é a minha conclusão, que mesmo na dor da ausência da mulher, aquela casa num país estrangeiro é que é a Ítaca de Josef, porque a nossa Ítaca é, realmente, onde chamamos casa, é onde fomos felizes, onde queremos regressar. Triste perceber isto e pensar que não tenho essa casa para onde voltar. Porque ainda não a encontrei, talvez não encontre nunca. E a falta dessa possibilidade de "grande regresso" é fria. Mas depois de uma noite mal dormida, primeiro reconforto-me numa visão mais serena que me diz que é o caminho que conta, o caminho que nos permite um dia identificar a nossa Ítaca, e nesse caminho persisto, ainda que com a velocidade do passo mais reduzida. Já depois de mais horas sem sono, volto atrás e percebo mais um pouco: Ítaca não é onde "fomos" felizes, é onde a nossa memória, enganosamente ou não, nos "diz que" fomos felizes. 

Faltava-me perceber o porquê do título do livro ("A ignorância"), mas acho que, depois duma segunda noite, estou lá perto. Provavelmente vou relê-lo, em saltos entre páginas de cantos dobrados e sublinhados, que é uma coisa que faça com raríssimos livros. Embora quase todos os que leio sofram dessas mutilações, quando releio algum opto por fazê-lo como se o lesse pela primeira vez. Talvez o que me incomoda tanto neste autor seja precisamente que uma só leitura não chega e não posso ignorar a primeira leitura dos seus livros, o que obriga a aprofundar numa releitura. Estranho - mas parece ser uma leitura de estudo e não de lazer, embora a motivação seja total e estupidamente discricionária. E estranho que eu queira reler.

"Ficaram no seu país porque se amavam a si próprios e porque se amavam com a sua vida, que era inseparável do lugar onde se desenrolara. Como a sua memória era malévola e não oferecia a Josef nada do que poderia tornar-lhe querida a sua vida no seu país, atravessou a fronteira com um passo lesto e sem arrependimento".


Partir quando a memória não traz alegria é sempre tão mais fácil.

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