Meio cheio é vazio

Quando me sinto um vaso lascado, ou até estilhaçado, dói mais a ausência de um outro, um receptáculo de amor, para onde pudesse verter tudo o que guardo dentro e que me enchesse a mim também do mesmo, apesar das falhas e defeitos do vaso, com o carinho de quem sabe que tem sempre de continuar a encher para compensar o que vai escoando pelas fissuras e pelas faltas de pedacinhos do vaso que nunca se recuperaram do chão, ou que cola nenhuma conseguiu prender de novo no lugar. Todos temos imperfeições nos nossos vasos.

Eu quero voltar a sentir amor real, quero. Quero voltar a ser porto de abrigo, tanto quanto quero voltar a sentir o peso de uma âncora que me prende ao lado bom da vida. Mas na definição de um sentir assim, não me chega hoje a noção romântica do amor. É verdade que procuro tudo isso dos românticos inveterados: a paz, os sorrisos e os risos, os silêncios e a leve tranquilidade de uma coisa pura. Mas também acho que essas coisas assim tão pacíficas e leves, tão românticas - lá está, não são possíveis sempre quando há amor forte. Quando há amor desse à séria, e é desse que eu quero ser vaso de dar e receber, não conseguimos dominar a natureza humana e teremos sempre, alternadamente a dias leves, dias de coisas mais extremadas. Portanto, a minha definição inclui, além da pureza de sentimento, da paz e da tranquilidade de fundo, umas boas alternâncias de momentos intensos, uns ciúmes, uns amuos, até uns conflitos e uma ocasional discussão, uns "chiliques" se for preciso, um bocado de adrenalina e jogo de guerra, nem que seja pelo comando da televisão.

Mas isto sou eu que sou meio esquizofrénica e descompensada, e um bocado assim para o super-aquecida, tendo já sido classificada até de "primária" nestas coisas do amor, pois por mais frios e ajuizados planos que faça e decisões que tome, no momento da verdade, tendo a aquecer até ao cérebro e a razão vai para as urtigas. Ofendi-me com isto na altura, devia sentir-me levemente envergonhada - quem sabe? Mas não me envergonho hoje e acho que devia tê-lo sido mais vezes. Talvez assim não tivesse perdido o único que me deixou vazio o pedestal de homem ideal.

Acho que essa fogosidade ou ímpeto primário que tolda a razão é condição do amor e do ser humano, na pureza das coisas, dos sentimentos: se é amor, ama-se e sofre-se intensamente, não no meio termo. Isso não existe. Não há ninguém que se chateie “um bocadinho” com o outro que ama quando alguma coisa corre mal. Não – pode acabar por perdoar, mas o termo será sempre derivado de “fúria” ou começado pela mesma letra, mesmo que a coisa seja uma total insignificância. Da mesma forma, não ficará apenas ligeiramente alegre quando a coisa corre bem. Não – o termo ou o verbo será sempre também extremado, será derivado de “adorar” ou terá um complemento como “tão” ou “tanto” pronunciado com brilho nos olhos e sorriso nos lábios. Na verdade, ou é amor e é fogo, é ardente, é a sério, ou não é, ponto final. Um "meio amor" não existe. Se está meio, está vazio. Para o meu vaso, basta cheio.

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