Essencialmente

Camadas e camadas de pó de vida assentam sobre nós como pele que se calcifica. Passamos anos a perscrutar por dentro, à procura do sentido da nossa própria existência, a sentir as faltas, a chorar os erros, a tentar aprender a dar passos mais certos em cada novo caminho, a definir o que procuramos. E enquanto mergulhamos por dentro, e enquanto tentamos fazer sentido de tudo o que vai falhando na nossa vida, e enquanto vamos enchendo alguns espaços com as coisas boas que vamos alcançando, enquanto não chega o que sonhamos, o pó assenta por fora. Teremos noção da espessura que acumulamos? Sentindo-nos tão seguros de que nos conhecemos bem por dentro, por causa dessa incessante busca interior, sentindo-nos orgulhosos com as coisas boas que sabemos ter e sentindo-nos maiores com os desafios que ultrapassamos, os erros que corrigimos, os defeitos que melhoramos, as mágoas que perdoamos, saberemos admitir que o que vemos de nós não se vê de fora? De fora, está o tal pó em camadas rijas, que nos oculta a essência que estranhamos não descubram em nós. Vêmo-la tão bem, tão clara. E achamos que não é pedir demais, que é a coisa mais simples do mundo, esperar que alguém seja capaz de a descobrir.

Mas quantos deixamos realmente entrar? Quantos nos conhecem os recantos interiores onde somos essência? Quantos nos vêm a alma nos olhos e nos ouvem o coração nos lábios? Na verdade, quantos conseguem ou se querem dar ao trabalho de dinamitar carapaças – próprias e alheias? E quanto é que não alimentamos nós próprios a espessura da carapaça, sentida concha, protecção, cada dia mais vital? Mas sozinhos, ali por baixo, só sobra a angústia e a solidão, tudo o resto se desperdiça. Às vezes, parece-me, esvaziamo-nos em nós próprios, empedernidos debaixo do pó. Talvez um dia se descubra que, por baixo, está apenas um enorme vazio de nós.

Também acontece, por vezes, descobrirmos muito mais nos outros, e outros perceberem-nos muito mais, que a tal camada de pó calcificada. Nunca deixo de me surpreender, com ambos os fenómenos, e acabo sempre com a mesma ideia: "it takes one to know one". Por mais que se defenda a imagem do coração empedernido, por detrás de figuras mais ou menos bélicas, mas sempre levemente cínicas e frias, há alguns - ainda há alguns, que na sua essência serão sempre bons corações, e isso transparece eventualmente, mesmo que seja através da pedra, aos olhos de outros iguais. Sempre é um consolo. 

Sem comentários: