"Destilar", cientificamente, é "separar componentes químicos que constituem uma substância através de vaporização seguida de condensação". Serve para muita coisa, nomeadamente, para produzir bebidas espirituosas. Aqui, é uma tentativa de purificação da mistura de tudo o que sinto, penso e vivo. A aguardente do que sou.
Verdade
De Carlos Drummond de Andrade:
A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
Acho que por isso é tão difícil ver a verdade de quem amamos. E por isso duas pessoas podem ver duas verdades sobre a mesma realidade. Vemos o que queremos ver, escolhemos a verdade que queremos aceitar, e muitas vezes conformamo-nos com meias verdades, recusamos a parte da verdade que nos fere, porque é muito mais difícil aceitá-la. Quando não lhe podemos fugir, ou quando não nos contentamos com menos do que toda a verdade, há sempre alguém que nos critica, porque estamos a olhar para o que não devíamos, por estarmos a dar relevância ao que não é importante. Porque para muitos o importante é pintar tudo de côres bonitas e harmoniosas, mascarar os escuros e os imperfeitos. O meu maior problema é não ser míope e ser eternamente inconformada - não gosto de metades.
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10 comentários:
"O meu maior problema é não ser míope e ser eternamente inconformada - não gosto de metades."
Ora ainda bem. Haja quem queira ir até ao fundo de tudo, em vez de enterrar a cabeça na areia para não ver. Às vezes sofre-se mais, mas também se vive mais. :)
O medo é lixado...
mf,
Que se sofre mais - sem dúvida. Se se vive mais, já não sei. Eu só sei viver assim.
13,
O medo... Sim, é medo. Como diz a mf acima, é enterrar a cabeça na areia. Eu detesto fazê-lo.
Com essa história das metades, fez-me lembrar o Sísifo de Torga.
Demóstenes,
Pelos vistos passa a vida a ir lá bater... O pior é que por muito que se não desita e recomece,m por muito que "De nenhum fruto queiras só metade", também se "Vai colhendo / Ilusões sucessivas no pomar / E vendo / Acordado, / O logro da aventura".
Não será que todos nós somos meias verdades? Quem conhece verdadeiramente o seu Eu profundo?
Maria Teresa,
Penso que não somos meias verdades, mas quase sempre vemos apenas metade (e com sorte). Quem o conhece? Talvez ninguém. Quem procura? Poucos, muito poucos. Mas o que importa é procurar, não aceitar a metade. Chegar a mais do que 50% já é um feito.
Penso que o importante é acreditar em nós próprios, podemos não se hoje a verdade que fomos , de certeza que não seremos a mesma de amanhã, porque vivemos, porque evoluimos, porque a vida nos transformou: matou ilusões mas deu-nos força para lutarmos por outras. E nós vamos em frente porque temos a certeza que somos capazes, apesar daqueles dias em que o cansaço nos vence. E acho que não gostar de meias verdades é bom. Beijinho.
Catwoman,
Tens razão em parte - como dizia Fernando Pessoa "Quem ontem fui já hoje em mim não vive". Não concordo inteiramente porque muitas vezes sobrevive em nós, não é o que fomos, mas o que sentimos. E fez-nos o que somos hoje, uns porque tiveram a força de seguir caminho, outros porque não a tiveram. Mas mesmos os que lutam por continuar, têm os seus dias maus. Têm dias em que só vêm metades, e dias em que acreditam que podem vê-la toda.
Beijinho :)
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