Primeiro o verbo



Olho para esta página que quero encher e luto por encontrar o fio à meada dos meus pensamentos e sentires que se entrelaçaram e enovelaram, numa massa disforme e indistinta, mas de côr intensa e tamanho enorme. Quero puxar a ponta do fio e devagarinho desembaraçar a confusão de fios que são o mesmo fio em nós e voltas sobre si. Procuro o princípio, o primeiro verbo e o seu modo perfeito.

A página branca é oportunidade e desafio. Duas pontas. Não serve. A página branca é uma promessa de futuro, incerto e desconhecido, que não será uma página branca nesse futuro, será página tingida de linhas, os fios arrumados em palavras e frases direitinhas.

É isso que é agora a minha vida: uma página branca onde tenho de arrumar o fio do novelo que quero escrever. De repente, o tal tsunami de que aqui falei, apesar de ter trazido momentos de angústia, empurrou-me para a frente, fez-me voltar a página. De facto, estou agora capaz de, e capacitada para, fazer coisas que há muito adiava. Nos próximos meses, substitúo o escritório pela Universidade. Faço duas coisas de uma assentada: livro-me de um trabalho que não me realizava, onde não estava satisfeita profissionalmente, ainda me pagam para isso, e volto a estudar para resolver o handicap do meu background académico. Escrevi aqui há meses que queria ir fazer uma pós-graduação mas que não via como conciliar mais uma exigência na minha vida já tão atribulada. Eis que o destino me resolve o problema, pondo-me no bolso o que chamo de “mini-lotaria” e libertando-me o tempo. Não é a melhor forma de o fazer, mas é uma forma de o fazer, e sei que tenho de aproveitar a oportunidade. É agora ou nunca e este investimento em mim vai também permitir-me redireccionar a minha carreira profissional para uma área que sei que me satisfará muito mais. Paga é menos, em geral, e foi mesmo esse o factor essencial para me manter tanto tempo onde estava.

Mas agora, que o tsunami me fez perspectivar a relevância de algumas coisas, sinto-me tranquila na aceitação de que dinheiro nenhum no mundo paga o sentimento de realização pessoal, de orgulho no trabalho que produzimos, desde que as coisas básicas estejam asseguradas, naturalmente.

Está verdadeiramente tudo em branco, tudo em aberto. E eu senti-me crescer com isto, como uma bola de neve que foi ganhando tamanho dentro de mim. Cresceram as minhas vontades, as minhas certezas, as minhas verdades. Ainda estão um bocado desorganizadas, ainda não as encaixei perfeitamente num novo esquema mental, em gavetas arrumadas. Mas sinto-as. Também tenho medo, sim, sobretudo porque embarco nesta aventura de destino incerto com o meu filho. Mas também para ele sobra para já mais tempo, e sobra uma mãe mais feliz e disponível para embarcar nas suas intermináveis e inenarráveis produções cinematográficas. O resto virá. E tenho consciência de que nada nos faltará e sei que, infelizmente não é assim para todos os que apanham com estes tsunamis privados.

Quero olhar para esta página branca como uma benção, a segunda oportunidade que muita gente não tem na vida. Quero escrevê-la toda de linhas que, no fim, façam mais sentido do que as linhas que deixei em páginas anteriores de mim. E de repente dei comigo já a fazer o caminho, com os dias preenchidos de milhares de coisas de que ando a tratar, e a começar a ver traduzidos em factos concretos, papeis e carimbos, o princípio do que era até há um mês atrás apenas um sonho, um desejo, que impassivelmente me resignava a não prosseguir, que julgava não poder realizar.

O verbo é mesmo começar. O modo é o presente, primeira pessoa do singular – eu começo.

PS: De pura ironia, é que a empresa de onde saí bloqueou ontem o acesso aos blogues.  Sem isso é que eu não tinha lá sobrevivido!...

4 comentários:

Apple disse...

"O verbo é mesmo começar. O modo é o presente, primeira pessoa do singular – eu começo."

Creio que esta frase sintetiza tudo. Cabeça erguida, olhar em frente, o que passou ficou lá atrás, importa o agora que te leva ao amanhã...Acredita sobretudo em ti, no teu instinto, naquilo que dentro de ti sabes ser o certo, nos sonhos que tens e que estás a realizar. Não te contentes nunca com menos do que aquilo que mereces. Estou feliz por ti, porque no meio do caos aparente, vais ao encontro do rumo que o teu coração pedia… A partir daqui, tudo só pode melhorar.

CB disse...

Querida Apple,
Obrigada pelas tuas palavras. Também acho que, apesar de pequenas angústias ocasionais, e de uns altos e baixos numa primeira fase de adaptação a tanta mudança, vou na direcção do que queria, de coração, mas que a razão me impedia de arriscar.

mf disse...

Boa sorte, minha querida. Segue o teu instinto e os teus sonhos. Há alturas para tudo e a tua altura de concretizares esse sonho terá chegado... :)

CB disse...

Obrigada mf. Crei que sim e farei por isso, mesmo, mesmo, com toda de mim. :)