Abismo


A vida vai-se desenrolando em etapas e ciclos, às vezes fechados, às vezes maliciosamente viciosos. Vamos avançando carregando a cada dia mais um peso e ao mesmo tempo uma leveza. O peso do que aprendemos a custo, a leveza das boas revelações. Somos cada dia mais um bocadinho de qualquer coisa, que nos faz variar tonalidades, variar caminhos. Mas às vezes repetimo-nos e repetimos os caminhos. Por vezes parece que, depois de voltas e mais voltas, lá nos encontramos outra vez na beira do salto. Como se de um lado estivesse o mundo do real que nos prende, e do outro a promessa do que desejamos. Mas invariavelmente no meio está um abismo. Às vezes mais estreito, a convidar ao salto de fé na esperança de aterrar com os dois pés do outro lado, onde o caminho pode continuar a direito, liberto dos círculos viciosos de antes. Às vezes tão largo que sabemos que o salto nos é impossível, porque o mais certo é caír no fundo e nunca chegar ao outro lado.

É o medo que nos pára. É o medo que nos encalha na areia e é o medo que alarga o abismo. É o medo de saltar porque se tem medo de caír. É o medo de saltar porque se tem medo de que o outro lado seja também um engano. É o medo de ter medo quando se aterrar os pés no chão e não se souber para onde ir num novo caminho desconhecido, do outro lado. É o medo do arrependimento, tanto de ficar, como de arriscar.

Comanda o instinto e o nosso instinto geralmente varia entre a ousadia do risco e a cobardia da preservação. Há demasiados graus pelo meio, tingidos por sentimentos ou emoções assoladoras, como a paixão, a fúria, ou até o desespero e o abandono, que tanto nos pode encher num impulso de saltar, como esvaziar na cobardia de ficar. É na luta interior de compatibilização entre a razão e esses instintos, sentimentos e emoções, que me meço, e que tantas vezes me perco. Uns dias sinto-me corajosa, ousada, sinto que tenho de saltar porque não quero estagnar, quero acreditar, quero continuar a lutar, e não quero arrepender-me de não ter tentado. Outros dias sinto-me cobardemente presa ao medo de sofrer mais, outra vez, presa à negação da esperança, sentindo as minhas pernas curtas para a largura do salto sobre o abismo.

Não sei já se é pior sofrer de um lado ou do outro. No lado de cá, sofro por me saber negada a felicidade que julgo vislumbrar do outro lado, mas que sinto atrás de uma parede de vidro intransponível. Do outro lado, tenho medo de sofrer o engano, de embarcar na viagem e descobrir a meio que me afundo em alto mar. O salto é um duplo risco – a queda no abismo antes de aterrar e o afogamento pelo caminho se lá chegar. Aqui é mais tranquilo, menos arriscado, sei o que sofro e sei que não será nem melhor nem pior, mas perpetuamente um sofrimento morno que deixará de doer porque me deixará cada vez mais dormente. Só que nos meus dias de coragem, que são mais do que os outros, lá estou eu a medir a distância, a sentir o vento e a olhar para a largura do abismo a diminuir, a tentar certificar-me de que é ali que quero saltar. Nesses dias até me pergunto se não haverá outras passagens, outros lados e outros abismos, e apetece-me procurar. No final desses dias, acho que sou louca e devia era estar quietinha no meu canto, instalar-me sentada na beira do abismo, de malas prontas, mas esperar pela ponte. Só não quero morrer à espera.

6 comentários:

XR disse...

Ai Princesa ... também não quero morrer à espera da ponte. Quero atravessar e ver o que há do outro lado mas o medo da queda também me tolhe (mais do que o de não gostar do que afinal lá esteja).

Se calhar devia ter ido para engenheira emocional e aprender a fazer pontes sobre os rios do medo.

Beijinho

CB disse...

XR, todos devíamos ter umas aulas obrigatórias de engenharia emocional... O maior problema é que parece que, em vez de refinarmos a arte de construir pontes ao longo da vida, vamos perdendo a capacidade e, sobretudo, a vontade. Cada uma que nos caiu antes devia ser uma lição que nos deveria permitir construir a próxima melhor. Mas em vez disso, enche-nos de medo de mais uma ponte no chão.

XR disse...

Acho que talvez o nosso maior medo enquanto engenheiras é dos terramotos e tempestades emocionais. É que às vezes não há ponte que resista a um extremo desses.

CB disse...

XR, acho que abres uma questão muito interessante: porque caiem as pontes? É erro de concepção? É falta de manutenção? Ou é uma catástrofe natural imprevisível e incontrolável pelo engenheiro? E se é catástrofe, não deveria o engenheiro ter previsto folgas e flexibilidades que aguentassem as tensões dessas catástrofes, mantendo as pontes de pé?... Ai o que eu escrevia agora a partir daqui! :)

XR disse...

Princesa, olha que não era má ideia desenvolveres isto.
Até se poderia abrir à votação dos teus leitores ...

"Porque caem as pontes?
A) Erro de concepção/construção
2) Falha grave de manutenção
III) Catástrofe de origem humana (como um carro de encontro a um pilar e não necessariamente de forma acidental)
d) Outro (especificar)"

Por mim, digo-te o que acho: a menos que seja um engenheiro com uma formação irrepreensível acompanhada de uma experiência alargada, é difícil prever todas as possíveis catástrofes que possam suceder; e se calhar por vezes anda-se tão preocupado com a possibilidade de catástrofe que se descura a manutenção ...

CB disse...

XR, ok! Vou elaborar... :)