Memória do Tempo

Dei por mim a lembrar-me tanto do meu avô materno. Com uma saudade tão dorida. Ainda consigo ver-lhe o rosto, aqueles lindíssimos olhos azuis, quase transparentes, a brilhar para mim. O sorriso inteligente e franco, mas sempre um pouco irónico, reservado para os poucos que lho mereciam, e para o humor - ele adorava anedotas e histórias anedócticas, e era exímio a contá-las.

Eu tinha-lhe o sorriso e o brilho do olhar. Tanta ternura me invade lembrar-me dele. Lembrar-me de algumas conversas que tivemos, palavras dele que guardo no coração até hoje, livros que me deu que guardo como tesouros, mas, mais que tudo, aquele olhar. Foi a única pessoa em toda a minha vida que me olhou assim, que reflectiu nos olhos um amor total e transparente, por tudo de mim que “sou”, como ele via. Via mais que eu, via maior que eu...

O meu avô morreu na semana em que me separei do meu primeiro marido, uns dias muito maus de tormento, de fuga literal, enfrascada em drogas por causa do estado deplorável em que me encontrava. Não comia e mal me tinha em pé. Tremia de medo e de desgosto. E além disto tudo, tinha o meu avô, a pessoa mais querida do meu coração, num hospital, em coma, a respirar por uma máquina.

E lembro-me de o ir ver, logo no início da semana, e de desatar num pranto agarrada à mão dele, a não querer perdê-lo mas a pensar que se ele soubesse... se ele soubesse... se ele pudesse ver o que eu era naquele momento, se ele visse no que me tinha transformado, o que tinha deixado acontecer, a mim e à minha vida, não me olharia com aqueles olhos nunca mais. Senti que não merecia aquele olhar, senti tanta vergonha, e ao mesmo tempo fiquei tão aliviada que ele não pudesse ver. E não sabendo se ele algum dia voltava a abrir os olhos, foi aquele momento que me sossegou, confirmou a decisão que já tinha tomado, e decretou que nunca voltasse atrás. Eu não queria perder aquele olhar e aquele sorriso de orgulho, que eram só para mim, e devia-lhe a força de me salvar.

E por isso sei que, até na morte, ele me amou, tanto e tanto. E tanto, tanto que ainda hoje o sinto, e sorrio quando mergulho na memória dele, apesar das lágrimas que não consigo conter por causa da dor da saudade. Funda, funda. Porque também o amei de volta assim: totalmente. Porque sempre vi nele um Homem grande, uma inteligência enorme, uma alma generosa e um coração puro, que me espelhavam linda num olhar de mar sereno e brilhante, na espuma de sonhos lindos que tinha para mim - ou via em mim.

Há-de ser um Anjo, que me ajuda ao conceder-me a sua memória, a visão do olhar e do sorriso, que me encheu de ternura e de orgulho, e me fez vislumbrar de novo um pouco do melhor de mim, que ainda cá está, eu sei que está.

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