Gavetas

Depois de várias noites de insónia ao longo dos últimos meses, e muitas longas conversas com a minha mana, a minha psicanálise, veio-me à cabeça uma imagem do que sinto se tem passado comigo: ando a tentar arrumar as minhas gavetas, arejar umas, deitar umas coisas fora, re-organizar outras. E de cada vez que me parece que está tudo direitinho, arrumadinho, fechadinho na sua individualizada gaveta, umas obscuras molas soltam-se lá atrás e cospem tudo cá para fora outra vez.

E é o caos, outra vez o caos.

E o cansaço, muito cansaço.

Qual é a mola?

O passado, sempre o passado, a herança, o lastro, o que quiserem chamar-lhe. A arrepiar-me numa conversa aparentemente inofensiva entre amigos, ou a apertar-me o coração num comentário aparentemente insignificante que um quase estranho faz sobre mim, ou a gelar-me de medo nos braços do homem por quem me apaixonei tontamente.

E se é assim, são frágeis as minhas gavetas, é falsa a minha ordem e inconsequente a minha lógica. Quem é que eu ando a enganar, pensando que sei bem o que faço, o que sinto, onde estão os porquês, onde estão as saídas? Afinal, não posso nada, não comando nada, não me comando - não me oriento.

E quando decidi que queria ser mais "eu", fazer aquilo que sentisse, confiar mais no instinto, tentar assim ser mais feliz, solta-se a mola, apodera-se de mim o medo, e lá estou eu a ser tremendamente castradora comigo mesma, a impôr-me uma lógica, qualquer "lógica", mesmo que não lhe consiga encontrar sentido nenhum...

Esse homem por quem me apaixonei teve um impacto tremendo em mim, sobretudo porque me deixou num estado tal que me pôs a abrir demasiadas gavetas ao mesmo tempo. Foi uma onda de choque na minha vida. Percebi então que não conseguia arrumar tudo ao mesmo tempo, e essa incapacidade tinha-me feito entrar numa espiral de caos, recriminação e cegueira.

Percebi que precisava de fechar algumas gavetas sem arrumar, para poder arrumar como deve ser uma de cada vez. A dificuldade era escolher qual arrumar primeiro. E então decidi que “ele” era a primeira gaveta que tinha de fechar atafulhadamente, que não podia pensar mais naquilo. Aceitei que tinha sido, para mim, uma coisa espantosamente intensa, transformadora, mas percebi também que ainda não era o tempo. Um dia, claro, uma qualquer mola obriga-me a arrumar a gaveta.

Depois fechei a gaveta dos afectos familiares. Os meus ressentimentos com a minha mãe, a nossa história desencontrada desde, literalmente, a minha primeira infância, a falta de colo, de mimo, a marca de que sou “menos” nos afectos dela. É minha mãe, não posso fugir a isso. Sei que, no fundo, ela quer o meu bem, e sei que até gostava de ser mais próxima, mas tenho de reconhecer que ela também tem as suas gavetas, se calhar mais desarrumadas do que as minhas. Ela não sabe chegar a mim e não passa por mim fazer o caminho dela. Que alívio. Com o meu pai foi diferente e soube fazer o caminho para nos encontrarmos. Esse caminho será destilado noutra altura.

Finalmente, quiz voltar a fechar sem arrumar a gaveta do meu primeiro casamento. Incrivelmente entendi como era isso, ainda, que dominava a minha vida. Porque para ali fugia, daí vinham os meus pesadelos, os meus flashes de memória, os paralelismos que estabelecia, os alertas de perigo que de repente rebentavam na minha cabeça e no meu peito. Vinha tudo daí, e ía sempre para ali, quando me sentia “menos”, quando me sentia só, desamada, envergonhada, perdida ou até simplesmente arrebatada. Foi daí que veio o momento de insanidade que estragou a magia da minha paixão e me deixou de rastos – e com mais uma gaveta por arrumar... Foi até daí que veio o erro do meu segundo casamento. E é por isso que sabia que era uma gaveta que teria de arrumar um dia.

Só que, também sabia que mexer nessa gaveta seria rasgar-me por dentro, outra vez. Revolucionar-me por completo e re-equacionar todo o meu passado e tudo o que sou. Primeiro pensei que não era o momento em que consiguiria fazê-lo e tentei proteger-me de situações que me ameaçassem, valorizar-me ao máximo para andar o mais longe possível de me sentir “menos”. Tentei abrir-me mais para o mundo, e ser mais mãe, e “olhar” para mim e para a minha vida com olhos de ver. Abrir os meus olhos. Decidi trabalhar no duro, ser fashion, usar baton, ir ao ginásio, ligar aos amigos (os velhos e os novos), dançar até à exaustão, e andar por aí. Afinal, não se encontra mesmo o que não se procura.

Mas afinal, à medida que ía fazendo essa marcha para a frente, lá fui destilando estas três gavetas. E hoje tenho a primeira aberta outra vez, apenas um pouco mais arrumada. Arrumei boa parte da segunda, e acho que, finalmente, deitei fora quase tudo da terceira, numa catarse que fiz em escritos soltos, num exercício de aceitação e fecho do passado. Muito embora saiba que o que fica não está na gaveta mas em mim, é parte do que sou forjada na dor que senti, e continue sem saber se saberei crescer o suficiente para enterrar também isso no passado e dar-me a mim, e a um novo amor, uma oportunidade de forjar algo maior, melhor, feliz.

E deste longo processo ficaram-me revelações espantosas. Aprendi, por exemplo, a enorme responsabilidade que temos para com os outros. Porque se eu sofro em mim, e na minha vida, tão profundamente, o impacto dos outros, também deverei fazer o mesmo na vida dos outros da minha vida. E não quero ser um fantasma na vida de ninguém, não quero assombrar os passos dos outros, não quero marcar coisas feias e sofridas nos outros. E caminha-se muito melhor quando percebemos que temos o poder de ser maiores e melhores, e com isso fazer os outros maiores e melhores. Dos outros do meu passado quero ser apenas morta. E enterrada. E também cá ando a enterrar os meus mortos e expulsar os meus fantasmas.

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