Parte 8

(...)

E enquanto o combóio seguia para Norte, levando Sofia adormecida, Pedro seguia para casa entorpecido. Sabia que lhe tinha sido negado mudar o seu destino. Que não tinha escolha, ou salvação. Sabia que tinha de esquecer aquele dia e continuar a pagar a sua penitência de existência. Ler os emails e ouvir as mensagens, usar a cabeça para fazer o que melhor sabia: ilibar um criminoso e depositar o cheque no banco.

Apesar dessa constatação factual do homem racional que era, tinha tentado saber mais dela, tinha voltado ao hotel, até lá tinha mandado um detective particular com quem trabalhava por vezes. Mas o que sabia dela materialmente era muito pouco e não conseguira obter mais informações.

Num impulso, um dia meteu-se no carro e rumou a Norte, pensando infantilmente que o destino se encarregaria de permitir o reencontro. Passeou horas pela cidade, nas zonas mais antigas que poderiam encaixar com a breve descrição que Sofia tinha feito da sua rua e do seu prédio. Mas não a viu, não a ouviu, não a cheirou. Apenas sentiu, sabendo que ela estava ali, naquela cidade algures, debaixo da mesma luz e a respirar o mesmo ar que ele. E senti-la tão perto e tão perdida acabou por fazê-lo, finalmente, largar as lágrimas que a razão continha havia tempo de mais. Soluçou-a ali, incontrolavelmente, naquelas ruas escuras onde talvez ecoassem às vezes os passos dela, pensando que não havia melhor lugar para deixar o seu sal.

Depois voltou, à realidade, à sua vida, à sua cidade a Sul, onde prosseguiu os dois meses de trabalho intenso em que conseguiu habilmente dar a volta à má publicidade que o caso gerara, escudando-se em subterfúgios legais e capas de ética deontológica. Tinha afastado as dúvidas sobre a sua tese de defesa, que fora posta em causa com a publicação de umas cartas que a vítima teria escrito pouco antes de morrer. Pedro conseguira gerar suficiente dúvida sobre a autenticidade e proveniência das cartas para que o assunto deixasse de ser notícia. Chegava a passos largos a data do julgamento.

Mergulhava incansavelmente no trabalho e saía do escritório tarde e directamente para casa, onde se fechava na companhia de uma garrafa qualquer e da sua música a tocar. Breves instantes de paragem que usava para a tentar esquecer, mas que apenas a traziam para mais perto, mais real e nítida quanto mais a garrafa ficava vazia, a pairar desenhada no fumo azul dos seus cigarros. Quase sempre adormecia de exaustão na sala, onde acordava às vezes de madrugada, outras vezes já de manhã. E assim seguiam os seus dias, cada vez mais magro, cada vez mais cinzento, mais hermético, mas alheado. Algumas pessoas sugeriam que tinha um ar adoentado, que estava a trabalhar demais e que devia ir ao médico. Ele desprezava estes conselhos. Sabia que a doença dele era da alma, e que médico nenhum o podia curar.

Ansiava o julgamento daquele caso. Era mesmo como uma penitência, e uma de que ele se queria livrar o mais rapidamente possível. Queria fechar aquele capítulo, aquela história, não ter de pensar nela, instintivamente, a cada momento que tinha de dedicar àquilo. E finalmente chegava a data. No primeiro dia do julgamento tudo correu como pevisto e, nessa noite, pela primeira vez em dois meses, adormeceu na sua cama, sem garrafa por companhia. Sentia o fim perto.

Mas depois, em mais um dia de julgamento, um acontecimento inesperado atirou-o de novo para o turbilhão do pesadelo. O Ministério Público chama uma testemunha. Pedro lera o seu nome de passagem, pois estava arrolada numa longa lista e tinha lidado com a personagem nas suas teses de defesa – mas era um personagem abstracto, apenas um nome. E no entanto, por algum motivo que não entendeu, gelou ao ouvir chamar aquele nome com voz, o nome que já tinha lido sem comoção. E virou-se instintivamente para ver entrar na sala a irmã da vítima, Maria Sofia Atena Claro, o anjo de olhos verdes e cabelos côr de avelã dourada que lhe fugira meses antes, depois de lhe ter aberto a alma à luz do dia, deixando-lhe aquelas palavras e aquele beijo cravados no coração.

Sofia. Ali estava ela. Ali estava a razão da fuga tão desesperada. Ali estava o olhar da vítima a saír do papel da fotografia nauseante. Ali estava a promessa de redenção dos seus pecados, feita tormenta maior que o inferno.

(continua...)

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