Os Eus Refractados

Passa por nós a fora o brilho do que nos vai dentro, refractado pelo que encontra à sua passagem, que varia a velocidade da luz e assim faz variar a cor e a intensidade da luz de dentro, essa autêntica, que não damos a ver a qualquer um. Não, não somos telas, nem tintas, nem cores. Somos luz. E somos brilhos e efeitos de arco-íris resultantes não só do que permitimos, e como permitimos, passar, mas também resultantes da perspectiva de quem olha, da inclinação, da distância, das lentes que os outros põem, e nos impõem.

Somos sempre variações de nós mesmos, muitos Eus assim refractados, por vezes mais puros, por vezes mais baços. Evoluindo para cada um consoante o espelho onde a luz embate e nos é devolvida. Não há nenhum relacionamento imune aos feixes de luz dos outros em nós ao longo do tempo. Não há relacionamento nenhum que não tenha um passado, e que seja imune às lentes e filtros que esse passado vai deixando, de parte a parte. Por isso, não há relacionamento nenhum que não seja recíproco, não no sentido de equitativo retorno, mas no sentido de permanente adequação, quase mímica, em ciclos iluminados ou sombreados.

Pena que, quando se reconhece que se ensombrou a luz, apenas se saiba justificar a falta dela pura em alguém como sua escolha exclusiva. Esquecendo, porventura, que o que filtra a luz é um conjunto de lentes de cada lado, e um acumular de filtros semeados pelos dois lados. Não querendo admitir a própria culpa, que haverá sempre de parte a parte, fica mais fácil relegar esse alguém a uma categoria inferior, e culpá-lo pela escolha de já não passar luz. Mas esses que assim pensam ignoram, porventura, que se refractaram também em momentos menos bons. Escolhem invocar de si apenas os momentos de glória e esplendor luminoso, achados "quanto baste" para corresponder esse alguém, e invocam dele, pelo contrário, apenas os seus momentos de tristes e feios. Esquecem, até, que há sombras que apenas devolvemos, projectadas de tristeza e decepção.

Não é bonito, nem justo, fazer do outro menos, numa auto-exaltação comparativa de cima de um arrogante e egocêntrico pedestal, condensando o outro abaixo, num espelho baço de mentira que se lhe atribui - ao outro, para não se admitir própria, e assim sentir justificado sentenciar o outro ao não merecimento. Esses  preferem ignorar que, na verdade, talvez tenha sido o outro alguém que os viu já espelhados em demasiadas sombras menos favorecedoras, que não lhes reconhece o pedestal, e, em algum momento, esgotou a compreensão e o perdão. Por isso, tornou opaca a sua luz, num respeitoso resguardo - próprio, alheio e do passado mais luminoso, sem querer discutir culpas ou razões, mas que afinal ofende aqueles para quem se apaga. Na cegueira do escuro e da necessidade de auto-validação, esses não reconhecem uma diferença, antes uma inferioridade alheia. E apesar dessa rudeza de princípio, mascarada com tanto artefacto, é ao outro que impõem o rótulo da brutalidade. 

Nenhum relacionamento vive de um sentimento, de uma vontade, ou de uma verdade. Há sempre dois de cada, em dois pólos diferentes, e há uma reacção em cadeia entre todos, sejam os pólos positivos ou negativos, atraindo-se ou repelindo-se. Talvez em ciclos, que podem, a dias, ser positivos, convergentes, confluentes, numa reciprocidade de crescendos, ou o oposto. Mas por muito que todos tenhamos direito a momentos menos felizes, por muito que devamos aos outros a generosidade de lhos perdoar e a humildade de no-los reconhecer, não acredito em meios-termos, meias-tintas, meias-cores. Sem ser maior ou menor, ora jorro o tudo da luz límpida, ora derramo o nada do opaco escuro.  E sim, sou exigente na mesma medida com os outros, mesmo que isso me deixe apelidada de insaciável, ou de desistente.

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