Soltaram-se

As palavras ganham vida quando se materializam na voz ou nas letras. Só são nossas até esse momento de liberdade, e uma vez largadas não nos voltam nem nos respeitam. Porque as palavras têm uma forma subtil de tingir sentidos distintos, por vezes muito diferentes dos que lhes quisemos imprimir. Eu uso as palavras com propriedade, em todas as línguas que falo. Procuro as palavras certas sempre, procuro as que transmitem exactamente o que pretendo, tal como vou procurar no dicionário uma que oiço ou leio e não entendo. Mas se nem um dicionário nos dá de cada uma um único e inequívoco sentido ou definição, como podem dois seres humanos retirar o mesmo sumo de cada palavra que cai ao chão? E que sentido fará para alguém que tanto gosta de uma metáfora preocupar-se com o sentido literal das sílabas com que a grafa? Mas as minhas palavras fixam-se num sentido, metafórico ou não, quando lhes dou forma num texto mais ou menos cabal. Ganham vida e dão-me vida, porque tornam o que sinto e penso real. Transpõem-me para um articulado onde me reconheço, plasmada no momento, onde por vezes regresso, para relembrar, reafirmar ou contestar. E até quando me releio já sem sentir ou pensar o mesmo, extraio delas exactamente o que lhes dei - chego a re-sentir, a re-pensar, a saborear as mesmas emoções e a recapitular as mesmas lógicas que me guiavam no momento. Sou certeira com elas - para mim, não faço ideia se acerto o alvo com os outros. Penso muitas vezes que as palavras que escolho com tanto cuidado serão lidas em linhas diferentes do mesmo ou outro dicionário. E, da mesma forma, penso muitas vezes se lerei bem as que não me pertencem. Provavelmente, nem todos terão o mesmo zelo com elas, as palavras; nem todos lhes darão o mesmo peso, nem terão o mesmo rigor quando as libertam. E depois dizem que sou dura nas palavras, porque não esbanjo nem profano as que me são mais sagradas; e ao lê-las nos outros, se penso faltar propriedade na escolha, digo-os levianos, julgo-as profanadas. Porque a mais bela palavra é vazia se mal empregue; e esvaziar uma palavra é usá-la sem sentir; e dizê-la ou escrevê-la assim é mentir. Confude-me por vezes, mas conforta-me contudo, que me leiam as palavras que só sei escrever assim, e ainda me digam que sou doce, destilando dos meus significantes rigorosos um mel que diz que habita em mim.

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