Literal

Dei-lhe as respostas possíveis, tendo ressurgido a conversa da morte. Ele tem 5 anos, não é altura para grandes metafísicas. Mas tenho que ter cuidado em não contrariar o que o pai já lhe disse (e diz sempre demais), por isso tenho de ir tentando perceber o que ele já ouviu. Os dilemas, desta vez, eram o facto de ser ou não verdade que o "céu" é um sítio bom e se realmente "todos temos de morrer". Pois. O melhor é aligeirar a coisa, portanto digo-lhe que sim, que o "céu" é um sítio fantástico, onde estamos sempre felizes, e que sim, todos nós temos a nossa hora, que não podíamos viver até aos 200 anos, se não ficávamos tão velhinhos, tão velhinhos, que nem nos conseguíamos mexer. Ele começa logo a fazer filmes, com a ideia de sermos velhos de 200 anos, que não podíamos isto, e não podíamos aquilo, (e mal sabe ele que pouco podemos mesmo ainda antes dos 40), e sobre o que se passaria no "céu" para ser tão divertido. "Há escola?" "Podemos jogar à bola?" Não, acho que não há escola, e sim, podemos jogar. Remata com a pergunta: "mas com estes pés e com uma bola à séria?". (Oh shit.) Bem, não com estes pés, não precisamos deste corpo para nada, quando vamos para o "céu". "Então como é que chutamos a bola?" É que levamos o que temos por dentro do corpo, que é o sítio onde sentimos alegria e que nos faz sorrir, por isso fazemos as coisas todas de maneira diferente. "Pois. Mas só quando morremos". Sim. Pareceu satisfeito, mudou de assunto, e passadas umas horas quando o fui deitar li-lhe um livro como sempre. Desta vez, escolheu a história do Tarzan, que começa logo com a gorila Kala, que acabou de perder o filho, a ouvir um choro de um bebé a quem morreram os pais. (Is this twisted or what?) Estava eu a tentar passar aquilo depressa (e a pensar: a morte outra vez, God damn it!), e ele interrompe-me para perguntar: "Mãe?... A que horas é que a mãe vai morrer?"... 

Pronto, não consegui evitar escangalhar-me a rir. Levou à letra o todos termos "a nossa hora", achou que quer dizer que temos todos a morte agendada. A ideia não anda muito longe - essa hora é inevitável, está, de facto, agendada, não sabemos é para quando. De forma que, entre risos e mais disparates, lá lhe digo que ainda falta muito, muito tempo, e que não vale a pena ele pensar nisso. No meio da galhofa, acho que era isto que ele precisava de ouvir. Acho que o que mais o assusta é ter de se deparar com a experiência da morte na sua vida e espero que isso seja - mesmo -, daqui a muito, muito tempo. Acho que, pelo menos, a ideia não o atormentará mais por agora, mesmo que continue a explorar o conceito. E pelo menos enquanto depender de mim, a verdade vai-se explorando de permeio com risos e brincadeira. Sei que nem todos concordam, mas eu acho que é legítimo, é necessário, ser menos rigoroso e preciso na discussão das coisas mais crueis da vida, enquanto eles não têm de as enfrentar com a brutalidade do sentido literal. Mas ao mesmo tempo é preciso cuidado, porque eles levam as nossas metáforas e eufemismos ao pé da letra.

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