Paradoxal

Acho que quase todos os seres humanos são seres paradoxados. Há os que o assumem, e os que o escondem. Há quem reconheça em si as várias, múltiplas facetas, e as tente compreender e fazer conviver pacificamente, e quem as recuse e "mate" algumas partes de si a bem da aparente normalidade. Como se pudéssemos programar a mente e a alma, não sendo mais do que simples máquinas produzidas em série e obedecendo apenas a um rígido padrão. 

Na verdade, por sofrer de uma incapacidade crónica de aceitação de dogmas, a que se juntou uma certa falta de fé em várias coisas, e que reconheço que me leva à insatisfação e ao inconformismo também crónicos, passei toda a vida a sentir o impacto de ser “diferente”, como me classificam carinhosamente amigos de longa data que nunca entenderam algumas das minhas opções (e que também, na verdade, nunca tentei explicar). Nesta sociedade padronizada, fui "o caso à parte". Mas não é que seja corajosa ou alguma outra coisa admirável. É rebeldia, da mais pura, e até, por vezes, uma forma de arrogância. Porque a minha história prova que eu nem sempre soube decidir o que era melhor para mim. O que sei geralmente é por onde não quero ir, e com isso armo-me de valentia e saio da caixa, sigo para outra, e acho que não devo satisfações a ninguém a não ser a mim própria.

Ao longo de muitos anos rebelei-me contra as tentativas de “normalização”. Mas, mais tarde, acabei a fazer comigo própria esse papel, dando por mim numa vida que não me dizia nada. Soltei-me de novo, mas subsistiram vícios de lógica e de comportamento. Foi um longo caminho de conflito permanente entre razão e emoção, espartilhada numa caixa de auto-controlo forçado, perdendo a espontaneidade, para me tentar adaptar pensando, a certa altura, que isso era crescer. Cada vez mais racional, à medida que todos os erros resultantes das minhas decisões emocionais me eram apontados como exemplo do mal que me fazia, mas a enredar-me em erros racionais muito mais perigosos. Hoje, luto ainda a pôr em prática a distinção entre emoção e impulsividade, porque sei, em teoria, que nem sempre decidir com o coração é uma fragilidade e um erro. Comecei por seguir o coração sem pensar, depois deixei de o ouvir, e agora tento segui-lo também com o sustento da racionalidade, com ponderação, sem a tal impulsividade.

Mas é uma subtileza que ainda muitas vezes me tira o sono e me mergulha em dilemas complicados, porque logo que se mete a racionalidade na equação deturpa-se o som da voz emotiva. E a essa voz não podemos negar existência nem a podemos amordaçar - ou revolta-se um dia. Um ser humano não é uma máquina, não é uma inteligência isolada, nem é um ser que tem de caber numa caixa standard. É fundamentalmente um ser de emoção e consciência e, por isso, também, um ser de dúvidas, paradoxos e dilemas, de erros e, eventualmente, alguns passos certos. Um ser que evolui, que tem de evoluír, muito para lá dos limites de qualquer caixa. Mas custa. Não quero matar nenhuma parte de mim, mas custa mesmo fazer todas as partes conviver pacificamente, e às vezes, paradoxalmente, custa sentir que não se cabe em caixa nenhuma.

"The only means of strengthening one's intellect is to make up one's mind about nothing -- to let the mind be a thoroughfare for all thoughts." (John Keats)

No coração é quase igual, mas a batalha campal faz mais baixas, sobretudo quando luta com o intelecto.


Versão revista passados mais uns largos meses de guerra, de uma época que não era escrita aqui, e que, como sempre, se repete.

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