Felizes daqueles

Desconfio sempre das pessoas que acham que haver quem passe pior é quanto baste para mais ninguém se poder queixar. O "passar pior", naturalmente, é uma coisa relativa e subjectiva, como o são os problemas, por serem de cada um e cada um ter escalas de valor e sofrimento próprias. Não fica bem dizer "com o mal dos outros posso eu bem", não fica, mas porque é que ficará melhor se o mal dos outros é de natureza mais metafísica em comparação à natureza mais material dos problemas próprios? Acho, por um lado, uma tremenda injustiça e surpreendente que alguém conclúa que não faltar comida na mesa e conforto material significa uma vida feliz q.b. e "contenta-te". Parece que tenho de me sentir algo ridícula por achar que aquilo que não tem preço por ser de graça faz muito mais falta do que, por exemplo na infância, o bife do lombo e a colecção de brinquedos caros. Deixo-me ser ridícula, pois seja, que acho simplesmente redutor concluir que a felicidade humana se mede pela satisfação de necessidades físicas e económicas. Naturalmente, estando satisfeitas essas, todas as outras se podem apreciar melhor. Mas se as outras falham, as primeiras não chegam para definir ninguém como feliz. Aliás, há provas por aí de que as pessoas aguentam melhor as dificuldades práticas da vida quando não lhes falta amor, e já o oposto nunca vi acontecer, muitas vezes tendo até desfechos trágicos.

Uma vida de dificuldades económicas, de trabalho no duro, que se invoca como se de um estalo na cara se tratasse a quem não passou pelo mesmo e se queixa de outras faltas, mesmo admitindo que se conhece de facto o que viveu o outro, é de uma enorme arrogância e presunção, no mínimo. Porque uma vida assim, por si só, não faz de ninguém melhor que os outros, e usá-la como justificativo para que os outros não tenham o direito de se queixar, quando isso é na verdade uma queixa,  isso sim, é ridículo. Aliás, se alguém se arroga superioridade por ter tido ou ter uma vida difícil, segundo os seus critérios, e acha que tudo o que os outros perseguem de metafísico é irrelevante por comparação, para mim só pode ser uma pessoa pequenina e infeliz, que ainda por cima acha que ter uma vida miserável e infeliz é normal e superior, e que no fundo acha que ninguém merece ser feliz.

O conceito de pessoa feliz é abrangente e próprio. Mas para mim, sobre tudo o resto, o mais importante que temos a fazer nesta vida é não desistir de lá chegar. Com esforço, com determinação, com sofrimento. E seja o que for que se procura, se o caminho não é fácil, se é sofrido, se é problemático e azarado, é legítima a queixa, o desânimo ocasional, as lágrimas quando calha. É verdadeiro o sofrimento. E avança-se é assumindo-o como tal, vivendo-o, aprendendo com ele, reconhecendo que ainda não estamos lá, e tentando não perder de vista que a meta que se procura é ser feliz. Nessa meta, uns verão um valor material, uma conquista profissional ou intelectual, ou uma família feita de amor. Talvez conforme o que falta, ou não tendo nada, conforme dita a sua essência. Cada um é como cada qual, a cada um a sua verdade, a cada qual o seu tipo de felicidade.

2 comentários:

1REZ3 disse...

«o mais importante que temos a fazer nesta vida é não desistir de lá chegar». O pior é quando não se sabe como...
Quanto ao resto, de facto, é também coisa que nunca me ajudou por aí além haver quem passe pior que eu...

CB disse...

Noya,
Nunca se sabe como - até aí eu já cheguei. O importante é não desistir de chegar.