Normalização

Uma manhã passada no hospital. Longa lista de medicamentos: para isto, para aquilo, para prevenir aqueloutro. Para a tristeza e desmotivação, não passa? Nem para azias de amor, temos pena. Abasteço na farmácia, o anúncio dizia que tinham de tudo, da paciência à felicidade, ou qualquer coisa do género. Não consta, saio de lá mais leve no bolso, e as porcarias que trago todas juntas nem sequer conseguem ter o aspecto colorido e diverido dos anúncios. Somos tão enganados pela publicidade. Já não bastava os bancos, a contar a história dos três porquinhos para nos convencerem que uma aplicação qualquer é como uma casa com telhado e o lobo no caldeirão, mas... mas depois, bem de corridinho, dizem que o capital não é garantido, e "rendibilidades passadas não garantem rendibilidades futuras". Francamente.

Mas também, dado que andamos a ser enganados desde que nascemos, com promessas de que a vida é fantástica, o amor é lindo, etecetra e tal por aí fora, se não fosse a publicidade, ao fim de uns anos nem nos lembravamos já do que é suposto ser essa tal vida fantástica e divertida. E não é dela colorida que falamos quando dizemos "é a vida" - sabemos muito bem o que ela é realmente. Habituamo-nos tanto a descortinar as expectáveis trapaças da publicidade, que achamos estranho é que algo seja vendido sem um bocadinho pelo menos de mentira. Ficamos logo desconfiados se nos dizem que é um produto decente, que é aquilo que muitas vezes queremos mesmo: um produto decente, que valha o que custa e que cumpra a sua função, sem malabarismos e extras de fogo de artifício, que não fazem falta nenhuma se só queremos dar um suissinho saudável às crianças, ou deixar a casa perfumada.

Pensando bem nisto, acho que já chegou às pessoas, em grau 7 ou 8 da escala de Pouca Vergonha, e eu é que ainda não apanhei a coisa. Na verdade, olho à volta e o que vejo é um monte de gente que se quer vender pelo que não é, numa imagem mais positiva e colorida de si mesmo, mas que vende, e a verdade é essa, mesmo que quem compre admita calmamente que sabe que não é "isso tudo", mas que pensa saber em que é que está a ser enganado, porque obviamente que não vai haver malabaristas ou fogo de artifício. Grande tranquilidade. E depois há uns aparentemente imunes, mas que são os doentes, valha-nos deus, porque mostram apenas o imperfeito que são, que é o que somos, o que não tem graça nenhuma e deixa os outros desconfiados por não verem onde está a marosca, e por isso não compram. Hei de procurar essa coisa na farmácia, a próxima vez que lá for. É uma bisnaga de cinismo e um frasco de dissimulação, se faz favor. Era nascer normal, temos pena.

4 comentários:

Bípede Falante disse...

Entendo perfeitamente essa sensação, mas tenho de te confessar que adoro uma drogaria cheia de remédios e cremes milagrosos, principalmente aqueles que não está nos anúncios, que parecem ter sido esquecidos nas prateleiras ou recém saídos da ponta de um lápis. Beijos
ps. A manhã no hospital é de verdade ou de faz de conta???

CB disse...

Bípede,
Também confesso que gosto de boa publicidade e adoro a publicidade antiga, sobretudo ao nível do design. Essa coisa da "publicidade pessoal enganosa" que vende é que lixa. Que um creme me engane, que eu caio se quiser, ainda vá. Mas uma pessoa??
Bjs
PS: verdade-verdadinha, infelizmente, mas já estou a melhorar

1REZ3 disse...

Estive numa farmácia no Brasil em que os sacos que nos davam para levar as compras tinha a seguinte frase: "Amor. Esse é melhor remédio". Demais!

Bj.

CB disse...

Noya, muito bom (e pelo menos não prometem vender).