Não seremos velhos

Eis que, assim de repente, parece-me que entrei numa segunda adolescência. Um bocadinho menos óbvia, mas com mais que óbvios paralelos.

Diz-se que a adolescência é a passagem da infância para a idade adulta, mas realmente quem é que é capaz de considerar "adulto" um desses seres de 20 anos dos dias que correm? Acho é que a adolescência hoje em dia é a passagem da infância para a juventude. Uma "juventude" que dura até cerca dos 35. Mas e a partir daí? Quando deixamos definitivamente de ser “jovens”, também ainda não somos velhos. Entramos então noutra época de transição, a caminhar inexoravelmente para longe dos loucos trinta, e a vislumbrar assustadoramente rápido os quarentas - tremo só de pensar, que quarenta soa tanto a porta de entrada para a velhice, que hoje alguém de quarenta e tal já é visto como velho, mesmo que insitam em dizer-me que os 40 são os novos 30, e por aí abaixo. Mas há indubitavelmente uma passagem do "miúda" para o "senhora", um constatar, mais ou menos turbo-lento, que já não podemos mesmo dizer que somos jovens (a não ser, e perante uma certa generosidade, que reclamemos a juventude de espírito). E é o que chamo de velhescência.

Tal como a adolescência, a velhescência é um período de alterações a todos os níveis, marcado pela ambiguidade do que fomos e do que seremos, pêndulos ambulantes, na adolescência oscilando entre a criança que já não somos e o adulto que ainda não conhecemos, na velhescência oscilando entre o jovem que dizem que já não somos, e o adulto que já é suposto sermos e não reconhecemos. Para mim, é a dicotomia da miúda louca que quer ir dançar até às 6 da manhã no Lux, e a senhora ajuizada que pensa que tem é de se deitar cedo, que no dia seguinte tem de ter a cabeça fresca por motivos profissionais. Oscilando entre a miúda que gosta de vestir uns trapos modernos e cool, e a senhora que tem de se vestir apropriada e decorosamente para as funções que desempenha. Ou a miúda que quer ir a uns concertos e festivais, e a senhora que já não está muito na onda de comer pó e ser pisada, e empurrada, e andar assim genericamente em manada. Ou ainda, a miúda que quer é programas todos os dias, e a senhora mãe de família que tem de equilibrar o tempo que passa com a cria. E finalmente, a miúda que se quer lançar num relacionamento com a fé do "como se não houvesse amanhã", e a senhora que sabe bem o que o ontem lhe reservou para hoje, e que tem de pensar nas consequências desses impulsos sobre as suas cicatrizes e sobre o filho que tem de proteger.

É tudo muito semelhante no processo, com as devidas diferenças no conteúdo - por assim dizer. Ao nível físico, o corpo muda, e não o controlamos, e não percebemos que raio se passa com ele; ao nível mental, reequacionamos tudo, até os gosto - com a surpresa do "gosto disto!" ou "já não gosto?!", o "nunca tinha pensado nisto desta forma", ou o "nunca tinha reparado naqueloutro"; e a nível social, e emocional, basicamente resumidos à angústia da pergunta "qual é afinal o meu papel nesta droga de filme??". Paralelamente, também há muito que muda em nós em relação à forma como vivemos a nossa sexualidade, num complicado processo que envolve imagem e auto-estima, amadurecimento intelectual e cicatrizes emocionais. E acho que também a exposição a estímulos diferentes, talvez a alteração do que são as práticas e tendências comuns entre os grupos em que nos inserimos, e o acesso, agora sim - diria mais adulto, à experiência erótica em geral. A mim, parece-me uma segunda libertação.

Certo é que ambas as idades implicam uma coisa muito importante: aprendizagem. Descobrimo-nos diferentes, descobrimo-nos novos papeis e novos objectivos, e nem sempre nos descobrimos capazes de lidar com tanta novidade. Precisamos de aprender muita coisa de novo, desenvolver outras competências, adaptarmo-nos. Porque são ambas fases de re-definição de identidade, alturas em que precisamos, vitalmente, de conseguir responder à pergunta: "quem sou eu?". E na velhescência voltamos a sentir não pertencer a lado nenhum, ao mesmo tempo que voltamos a ter vontade de outras experiências, e até a arrogar-nos esse direito - por virtude do que sentimos ser um novo estatuto.

Nem quero imaginar o que será mais tarde, talvez algures lá pelos cinquenta e muitos, se tiver de enfrentar mais uma transformação profunda para me admitir definitivamente velha. Ou talvez isso seja só na reforma, lá para os 80 pelo andar da carruagem, e se lá chegarmos vivos (que o estado espera que não, para não pagar reformas). Talvez ainda nessa altura me venham exortar à vida a dizer que os 80 são os novos 60, que uma década de desfasamento entre idade oficial e idade real (ou lá o que seja) será aí já demasiado banal. Tudo isto para reflectir sobre se, de facto, o busílis não é simplesmente que nos recusamos a envelhecer. E para quê.

2 comentários:

Êne de Nuno disse...

Envelhecer...desde o primeiro dia que fazemos de forma permanente isso. No enatnto, só de tempos a tempos é que sentimos o peso do "envelhecimento diário".
Nada receies, o teu espirito manterá jovem a "miúda que veste uns trapos cool". Que assim seja até aos 80!

Bonito texto e excelente análise.

CB disse...

N,
Obrigada (desde logo por teres lido). Realmente, o que varia é a consciência do processo inevitável de envelhecermos. E gostei da ideia de ser octagenária a vestir uns trapos cool. :)