Caminho do fim



Faz-me uma cara de espanto e clama “olha!”, repetidas vezes, enquanto parece querer absorver-me com os olhos. Não consegue dizer mais nenhuma palavra, mas repete o “olha!” de tantas maneiras diferentes, passando da surpresa e do contentamente à comoção de um timbre mais baixo e lento, que me comove a mim também.

Passo com ela uma manhã, tratando-a como se fosse uma criança. Que anda devagarinho e com apoios porque pode cair, que não consegue segurar em nada que pese mais do que umas quinhentas gramas, que não consegue vestir-se sozinha, quase não consegue comer sozinha, e nem sequer consegue articular as palavras que permitam estabelecer a sua vontade. Penteio-lhe os cabelos já todos brancos, mas muito macios, e ela fecha os olhos em frente ao espelho. Ponho-lhe os ganchos com cuidado, que sei que é frágil e duvido da minha competência, tenho medo de a magoar. Depois pergunto-lhe se ficou bem, e ela olha-se e diz com um sorriso “ena!”. E “ena!” repete-se também um número de vezes em diferentes entoações.

Não me larga as mãos das suas, muito magras e quase tranparentes, que evito olhar porque me ofende ver-lhe os ossos e as veias, e a vida a fugir dali. Olha-me para dentro dos olhos, com os seus lindos olhos verdes raiados de azul, que parecem ser a única coisa que não envelhece. À sua maneira, com o pouco que consegue articular, vai-me perguntando pelo meu filho. Lembra-se do abraço que ele lhe deu no Natal, sabe o nome dele mas não consegue dar-lhe a volta na boca. Franze a testa enrugada, contorce a expressão e fecha os olhos num misto de frustração, zanga e tristeza, a cada palavra que quer dizer e não consegue. E eu tenho de lhe dizer que não faz mal, já se lembra e diz-me mais tarde, devagarinho avó, com calma.

Saio de lá sem conseguir almoçar, um nó no estômago. Doi-me a cara de tanto me forçar sorrisos para disfarçar. Invade-me uma tristeza e uma revolta, e sinto o peso da culpa. De facto, não sei lidar com isto, com a morte a chegar, a comer aos poucos os corpos e as palavras dos que amo. Devia ser mais forte, devia saber vesti-la sem me chocar com o corpo definhado, devia aceitar que o braço direito já não mexe e ficar feliz porque ainda mexe o esquerdo, devia contentar-me com as palavras que ainda me consegue dizer e ler o resto no olhar. Mas não consigo, estrangula-me, agonia-me, numa recusa mista da realidade dela hoje e do que pode ser o meu próprio destino. Percebo que já encerrei dela as memórias que quero manter de quando “era uma senhora tão alta”, como diz tristemente a empregada que me vem render e apoia suavemente o braço daquela senhora agora tão pequenina, curvada, mirrada.

Pergunto-me como não enlouqueceu ainda, sabendo que a cabeça ainda funciona perfeitamente, entende tudo, ouve muito bem, reage com a expressão ou com o riso com todo o entendimento do que se lhe diz, mas perdeu a capacidade de falar. Tem as palavras na boca e não as consegue articular. Que sofrimento há de ser. Fico a pensar que tantas vezes calo as minhas palavras de dentro, e o que daria ela por poder fazer-se ouvir. Diz-me que lhe faz impressão olhar para os meus olhos. Mas não consegue explicar porquê. Faz apenas um sorriso triste, mexe em tudo o que pode à volta dela, mas não me larga as mãos nem desvia os olhos, e eu fico sem saber que me viu ela no olhar, que memória ou identificação lhe terá cruzado o pensamento e ficado presa na garganta. Na minha ficaram as lágrimas, que me faltou chorar. As lágrimas que lhe devo no dia em que não a puder mais olhar, mas puder vê-la como a quero recordar.

10 comentários:

Apple disse...

E é um nó na alma o que me ficou ao ler-te... e a saudade também, bem acordada e viva, de quem vi partir.

Bjs

catwoman disse...

Como dói vê-los partir, todos os dias um bocadinho e sabermos que não podemos fazer nada. :(
beijinho.

CB disse...

Apple,
É tão triste, sim. A saudade nunca nos larga.
Bjs

CB disse...

Catwoman,
É verdade. Nada podemos. Apenas recordar outros dias melhores.
Beijinho

LBJ disse...

Passo por aqui para te deixar um beijo.

Não te queria deixar palavras de consolo porque nestas coisas és tu quem as tens que formular, mas pelo que me descreveste a tua amiga não deixa de te falar, apenas deixou de usar palavras para o fazer.

Deixo-te agora o beijo...

Francisco disse...

Ainda há bem pouco tempo o escrevi, a saudade de a quem já disse "Adeus". Que te falte muito para essa palavra te sair da boca e do coração é o que te desejo e que nunca lhe falte conforto e amor.

Um beijo

CB disse...

LBJ,
Não é bem isso. A minha avó está a morrer aos poucos, como as palavras delas, que não consegue dizer, e muitas vezes não consegue substituir por mais nada se não um doloroso silêncio. Mas obrigada.

CB disse...

Francisco,
A saudade já cá está, porque o "adeus" que falta já não é o que quero que fique. É apenas uma formalidade. Mas sim, não quero que lhe falte conforto e amor até ao último suspiro. Só isso lhe podemos dar agora.
Um beijo

fd disse...

As circunstâncias concretas de envolvem os problemas associados à velhice variam de caso para caso mas partilho algumas das angústias que sentes, por ter as minhas 2 avós debilitadas. Mantenho a minha consciência apaziguada com alguma presença, os nós no estômago e as dores nos maxilares, que também sinto, de me forçar a sorrir. Não sei se já encerrei as memórias ou se já nem tenho memórias mas quero continuar os momentos e as conversas que temos, perceptíveis ou não, apesar de já não me sentir com forças para dar muito.

CB disse...

fd,
Entendo-te, mas não me apzigua a consciência a minha presença, e preferia não continuar estes momentos. Por egoísmo, porque me custa, mas também porque acho que é doloroso para ela. É difícil de gerir isto.