Empírico

Gosto imenso da série Grey's Anatomy, por várias razões, e uma delas porque gosto daquelas observações e resumos da Meredith em voice over. Gosto da forma como espreme o sumo da história e geralmente concordo com as conclusões, bem sei que nada geniais, quase sempre básicas (mas não simples) verdades humanas. Mas por vezes irrito-me com alguns episódios, como este em que me explicam a razão científica do poder de um abraço. É que, para mim, um abraço tem a força do mundo, é o melhor refúgio, é o melhor conforto, é a melhor forma de conjugar o verbo amar. Para mim, tem um poder curativo insubstituível, a exclusividade dos que partilham amor e a raridade da intimidade de peito aberto. Não quero pensar que é um truque para enganar o cérebro, estabilizar a pressão e baixar o ritmo cardíaco e, assim, fazer-nos sentir bem. Não. Talvez porque me faltaram tantos, não os quero reduzidos a prosaicos mecanismos corporais. Para mim, prefiro que um abraço continue a ser uma mágica inexplicável. Há coisas em que não me rendo à ciência. É preciso salvar alguma magia.



"At the end of the day, when it comes down to it, all we really want is to be close to somebody. So this thing where we all keep our distance and pretend not to care about each other, it's usually a load of bull. So we pick and choose who we want to remain close to, and once we've chosen those people, we tend to stick close by. No matter how much we hurt them. The people that are still with you at the end of the day, those are the ones worth keeping. And sure, sometimes close can be too close. But sometimes, that invasion of personal space, it can be exactly what you need."


(Voice Over de Meredith, num outro episódio qualquer)

Apátrida

Acabei de ler o livro de Milan Kundera que aqui referi, confirmando que é um autor-mistério para mim: não sei porque é que gostei tanto de o ler a primeira vez e não as seguintes, e ainda não sei bem se gostei de o ler esta última vez ou não. As primeiras páginas foram difíceis de ultrapassar, com passagens que me davam a sensação de estar a ler a wikipedia, sentindo-me quase insultada pelo que parece um certo paternalismo do autor (mas olhe que não, olhe que afinal não), outras passagens que quase parecem uma dissertação de tese científica, e sem nada que me despertasse grande interesse. Aliás, confesso que a primeira página que me agarrou só surgiu a cerca de meio (página 63 para ser precisa), o que pelo menos revela a minha determinação em não o abandonar sem esgotar o benefício da dúvida.  

A história junta vários personagens ligados pelo fenómeno da emigração e debruça-se, essencialmente, sobre os mecanismos da memória e da nostalgia, muito em paralelo com a Odisseia de Ulisses, usando daí os conceitos de "Ítaca" e "grande regresso". Identifico-me muito com um personagem em particular, Josef, que sofre de uma “insuficiência de nostalgia” (em relação à sua Pátria, sua suposta Ítaca) mas, mais ainda, sofre de um tipo de memória "masoquista" que o "detestava, que não fazia outra coisa que não fosse caluniá-lo", que só lhe guardou os momentos maus. Consequentemente, ou não, revela-se frio e desprendido. Talvez por ser como ele em muita coisa me atraia a ideia de emigrar, o que já teria feito se não fosse pelo L. Este personagem perdeu a mulher com quem casou enquanto emigrado, com quem foi feliz, e assume que vive com "a morta", no culto dos seus objectos e rotinas, dada a rapidez com que lhe fogem as memórias. E no fim do livro, que me surpreende pelo ponto final que senti abrupto, depois de ter regressado à sua terra natal, sua suposta Ítaca, Josef opta por regressar à Dinamarca, confortado pela antevisão da chegada à casa "da morta", e aos braços abertos da árvore que ela havia plantado. 

Passados uns momentos de reflexão concluo, de mim para mim e não me interessa se é certo ou errado - é a minha conclusão, que mesmo na dor da ausência da mulher, aquela casa num país estrangeiro é que é a Ítaca de Josef, porque a nossa Ítaca é, realmente, onde chamamos casa, é onde fomos felizes, onde queremos regressar. Triste perceber isto e pensar que não tenho essa casa para onde voltar. Porque ainda não a encontrei, talvez não encontre nunca. E a falta dessa possibilidade de "grande regresso" é fria. Mas depois de uma noite mal dormida, primeiro reconforto-me numa visão mais serena que me diz que é o caminho que conta, o caminho que nos permite um dia identificar a nossa Ítaca, e nesse caminho persisto, ainda que com a velocidade do passo mais reduzida. Já depois de mais horas sem sono, volto atrás e percebo mais um pouco: Ítaca não é onde "fomos" felizes, é onde a nossa memória, enganosamente ou não, nos "diz que" fomos felizes. 

Faltava-me perceber o porquê do título do livro ("A ignorância"), mas acho que, depois duma segunda noite, estou lá perto. Provavelmente vou relê-lo, em saltos entre páginas de cantos dobrados e sublinhados, que é uma coisa que faça com raríssimos livros. Embora quase todos os que leio sofram dessas mutilações, quando releio algum opto por fazê-lo como se o lesse pela primeira vez. Talvez o que me incomoda tanto neste autor seja precisamente que uma só leitura não chega e não posso ignorar a primeira leitura dos seus livros, o que obriga a aprofundar numa releitura. Estranho - mas parece ser uma leitura de estudo e não de lazer, embora a motivação seja total e estupidamente discricionária. E estranho que eu queira reler.

"Ficaram no seu país porque se amavam a si próprios e porque se amavam com a sua vida, que era inseparável do lugar onde se desenrolara. Como a sua memória era malévola e não oferecia a Josef nada do que poderia tornar-lhe querida a sua vida no seu país, atravessou a fronteira com um passo lesto e sem arrependimento".


Partir quando a memória não traz alegria é sempre tão mais fácil.

Regresso futuro

Desde que me conheço que me sinto na sombra, no escuro de um legado de abandono e rejeição, que mora no passado mas se faz presente a toda a hora, e me envenena o futuro. E sinto que a minha vida é uma repetição, uma repetição tortuosa e cruel, reedição da memória, que me leva de sombra em sombra, sempre à vista do sol. Já não sei se alimento as sombras se permito que a vida mas alimente, ou talvez seja eu própria a alimentá-las também assim, fruto das más decisões que vou fazendo – na sombra. É preciso combater, mas há sombras que nunca se irão desvanecer. Tenho é de aprender a viver com elas, sem as impor aos outros. Só que às vezes é difícil, tão difícil.

Tenho dificuldade em acreditar que um dia não há sombra. Como nestes dias em que sinto a minha vida estéril. Já antes a senti parada, já a senti vazia, agora é estéril. São dias de me sentir insignificante no mundo, como só uma vez senti há muitos, muitos anos atrás. Depois, tem havido sempre qualquer coisa que me sustenta e me dá consistência. Neste momento, não há nada. Só quero uns dias de não estar triste por dentro, sem tristes escondidos, mascarados ou encapsulados, por baixo dos sorrisos. Uns dias de poder ver apenas o sol, de me sentir aquecida e não ensombrada, ou assombrada, mesmo que saiba que não será para sempre. Uns dias de me sentir chegada - chegada porque não tenho hoje onde regressar, e chegada porque assim passaria a ter onde querer voltar. Não sei que volta dar na minha vida, mas sei que precisa de uma volta. É como estar vendada numa encruzilhada onde não posso andar para trás e para a frente não sei que passo dar. Mas sei que enquanto puder acreditar que posso chegar, percorro o caminho para esse dia em que não haverá sombra. E assim vou passando por elas, e elas por mim, e o tempo passa. No fim do tempo, talvez possa tão somente ter uma casa para onde possa querer voltar.

One noble kind heart

Tropecei no blog dele já nem me lembro como, na altura não seguia blogs, tinha acabado de criar este, mas dei de caras com um post muito interessante sobre homens e mulheres e, pela primeira vez na vida, deixei um comentário. Era um testamento, a bem dizer, que dei uma resposta à letra e tão extensa quase como o post (ainda não estava familiarizada com a arte do comentário sucinto). Certo é que foi bem recebido e valeu-me a sua visita ao meu estaminé e, através dele, mais visitas e comentários. Fora o agradecimento que lhe devo por me ter populado o blog então, devo-lhe também o agradecimento por um saldo muito positivo de gargalhadas quase diárias, por me ter feito reflectir sobre várias coisas, por me ter feito interessar-me novamente por política, por me ter acompanhado sempre ao longo deste tempo, deixando-me palavras úteis e bondosas, mesmo quando não escrevia aqui, por ter patrocinado uma amizade que tenho hoje como muito querida, e finalmente, porque é também ele um amigo.

Ele tem um cabeçalho ameaçador, é exímio no nonsense, desarmante na forma brusca como remata com humor inteligente um assunto sério; é cheio de subtilezas tal como de brutais cruezas, deixa escapar umas linhas onde se revela um homem sensível, ao mesmo tempo que se transfigura em Rambo para desconversar e fugir ao que tem dentro; tem tanto de doce e puro na forma como fala de amor e do sexo oposto, como tem de machista e rambo primário quanda fala de mamas e "sexo na banheira é bom". Benfiquista ferrenho e feroz apoiante do PSD, tem os seus excessos, mas nunca é demais a variedade de temas que aborda e as suas opiniões que sempre me ensinam alguma coisa de novo. Parte é personagem blogosférica, parte é o homem que está por trás, e a fronteira do que é de quem defina cada um, por sua conta e risco. Mas no fundo, e não assim tão no fundo, é um verdadeiro bom coração, um homem de bem e de carácter nobre, um daqueles poucos cheios de boas intenções. Arrisco eu.


Palavras deste Rambo, esse fofinho armado até aos dentes. Vá... Rambo não chora. All the best ma dear, have a very happy birthday, thank you kindly, and this one's for you (because you know what it means):

“There is no need for temples; no need for complicated philosophy. Our own brain, our own heart is our temple; the philosophy is kindness.” 
The Dalai Lama

Mixed

Começar o fim de semana depois de uma semana assim com uma reunião de condomínio às 9h da noite de 6ª feira, não podia ser bom augúrio. Perdi a noite em inflamadas discussões estéreis entre dois lanços de escadas frias, jantar fora ou ir lá ter a seguir para o café - nem vê-los, e as horas a que acabou, mais a dor de cabeça com que me deixou, determinaram: cama, já! Bonito. Hoje é sábado, deixo-me dormir, deixo-me na ronha, que bem que sabe. Mas depois dá-me a fome e aí é que são elas. Na correria de chegar a casa a horas ontem, com tempo para comer qualquer coisa rápida e arrebanhar as papeladas necessárias, não deu para o supermercado. Era o último dia de semana de Mãe, particularmente limitada de tempo, o que significa que o meu esquizofrénico frigorífico está a entrar na semana de anorexia ainda mais desfalcado do que o costume. Isso mais as restrições alimentares que o médico impôs, dá um lindo resultado. Tenho leite, sobrou do miúdo, mas não posso beber. Tenho iogurtes de soja, mas os que comprei à experiência e que não gostei, e por isso ali se deixam ficar, enquanto os outros que se suportam acabaram. Cereais? Não posso comer trigo, por isso os do meu filho não servem, o meu horroroso muesli (nome chiquíssimo para serradura com ração de cavalo) acabou ontem. Mas a fome é negra, lá vai um desses iogurtes de soja intragáveis carregado de mel e alguma fruta (a peça e meia que sobrava), lá vai um desvio à dieta com duas torradas de pão normalísimo de trigo (mais sobras da criança), e já que é desvio mesmo, levam com fiambre e queijo flamengo, daquele à séria, que sobreviveram ao apetite do petiz, esta semana menos voraz do que o costume. Pronto, compõe-se. Só faltava o café. Nespresso? Nem vê-las, aquelas coisinhas maravilhosas e perfumadas acabaram e ando há duas semanas a esquecer-me de encomendar, que ir lá então é que é impossível. Tenho portanto mixed feelings  sobre o meu pequeno almoço. Umas coisas sabem-me a remediado, outras a deliciosas transgressões, e outras a amargas falhas. O café instantâneo do Pingo Doce é mau. Mesmo. Tenho de reconhecer que, às vezes, tomo muito mal conta de mim. Espero que o fim de semana se componha, e me contrabalance estes desaires com momentos e refeições suficientemente agradáveis para esquecer isto e não acabar o fim de semana, como o pequeno almoço de hoje, com mixed feelings.  

Good reasoning


36 and counting. Na verdade, assim à séria, a doer, são 17. And counting.
Imagem daqui.

Meio cheio é vazio

Quando me sinto um vaso lascado, ou até estilhaçado, dói mais a ausência de um outro, um receptáculo de amor, para onde pudesse verter tudo o que guardo dentro e que me enchesse a mim também do mesmo, apesar das falhas e defeitos do vaso, com o carinho de quem sabe que tem sempre de continuar a encher para compensar o que vai escoando pelas fissuras e pelas faltas de pedacinhos do vaso que nunca se recuperaram do chão, ou que cola nenhuma conseguiu prender de novo no lugar. Todos temos imperfeições nos nossos vasos.

Eu quero voltar a sentir amor real, quero. Quero voltar a ser porto de abrigo, tanto quanto quero voltar a sentir o peso de uma âncora que me prende ao lado bom da vida. Mas na definição de um sentir assim, não me chega hoje a noção romântica do amor. É verdade que procuro tudo isso dos românticos inveterados: a paz, os sorrisos e os risos, os silêncios e a leve tranquilidade de uma coisa pura. Mas também acho que essas coisas assim tão pacíficas e leves, tão românticas - lá está, não são possíveis sempre quando há amor forte. Quando há amor desse à séria, e é desse que eu quero ser vaso de dar e receber, não conseguimos dominar a natureza humana e teremos sempre, alternadamente a dias leves, dias de coisas mais extremadas. Portanto, a minha definição inclui, além da pureza de sentimento, da paz e da tranquilidade de fundo, umas boas alternâncias de momentos intensos, uns ciúmes, uns amuos, até uns conflitos e uma ocasional discussão, uns "chiliques" se for preciso, um bocado de adrenalina e jogo de guerra, nem que seja pelo comando da televisão.

Mas isto sou eu que sou meio esquizofrénica e descompensada, e um bocado assim para o super-aquecida, tendo já sido classificada até de "primária" nestas coisas do amor, pois por mais frios e ajuizados planos que faça e decisões que tome, no momento da verdade, tendo a aquecer até ao cérebro e a razão vai para as urtigas. Ofendi-me com isto na altura, devia sentir-me levemente envergonhada - quem sabe? Mas não me envergonho hoje e acho que devia tê-lo sido mais vezes. Talvez assim não tivesse perdido o único que me deixou vazio o pedestal de homem ideal.

Acho que essa fogosidade ou ímpeto primário que tolda a razão é condição do amor e do ser humano, na pureza das coisas, dos sentimentos: se é amor, ama-se e sofre-se intensamente, não no meio termo. Isso não existe. Não há ninguém que se chateie “um bocadinho” com o outro que ama quando alguma coisa corre mal. Não – pode acabar por perdoar, mas o termo será sempre derivado de “fúria” ou começado pela mesma letra, mesmo que a coisa seja uma total insignificância. Da mesma forma, não ficará apenas ligeiramente alegre quando a coisa corre bem. Não – o termo ou o verbo será sempre também extremado, será derivado de “adorar” ou terá um complemento como “tão” ou “tanto” pronunciado com brilho nos olhos e sorriso nos lábios. Na verdade, ou é amor e é fogo, é ardente, é a sério, ou não é, ponto final. Um "meio amor" não existe. Se está meio, está vazio. Para o meu vaso, basta cheio.

Bless you


E é mais fácil quando se partilha com amizade. Até quando há lágrimas, que a tarefa da limpeza é mais leve dividida, e quando se trocam umas gargalhadas que ajudam tudo a secar. Obrigada M... 

Parênteses - (Político)

O que mais me indigna no meio desta palhaçada toda, é que imputem ao Sócrates a culpa toda. Porque ele tem culpas, sim, as maiores, e acho que já vai tarde, é uma vergonha para o país e devia sê-lo também para o próprio PS. Mas mais vergonhoso é 230 deputados eleitos pelo país, para representar os seus interesses e visões políticas, terem permitido, até fomentado, o descalabro a que chegamos. O grande mal deste país, de facto, não é quem se senta na cadeira do poder. É a forma como é percebido - e recebido - o lugar do poder. Os políticos deste país são uma vergonha porque não assumem as suas responsabilidades e não honram a nobreza da posição que lhe é atribuída por todos nós, cidadão de Portugal (que votam, pronto). Uns e outros deveriam perceber que, independentemente de quem se senta à cabeceira da mesa, todos na mesa têm, ou deviam ter, uma única missão: fazer o melhor pelo país. Numa qualquer empresa credível isso traduz-se em debate, em discussão de ideias, em estudos e projectos que se apresentam e que sustentam com racionalidade e lógica os melhores caminhos a seguir. E em votos que não resultam da fidelidade a quem paga almoços e jantares, mas sim a quem paga a existência da própria mesa e que, se não tiver resultados, pode despedir todos os que se sentaram à mesa a brincar à batalha naval - com mais que justa causa.

Pronto, só um desabafo. Não percebo muito de política nem tenho veia jornalística nem nada dessas coisas que permitem escrever textos muito profundos e articulados sobre estas matérias. Eu nestas coisas prefiro ler os outros, diversos outros, e depois de reflectir tirar as minhas conclusões. Infelizmente, já não acredito que possamos mudar grande coisa, pois até para uma pessoa se envolver mais activamente na vida política, que seria sempre, na minha perspectiva, através de um partido, não se vislumbram opções. Já sou incapaz de definir a que partido pertenço de alma e até, confesso, nem sei já se me sento à esquerda ou à direita da mesa, tal a confusão ideológica dos partidos de hoje, mais ainda a perplexidade com que fico face a certas concretizações dos mesmos partidos. 

Estou prontinha a emigrar. Mais um anito e isto deve estar em tal estado que talvez consiga um estatuto de refugiada.

Do Coração à Razão



Razão, irmã do Amor e da Justiça
,

Mais uma vez escuta a minha prece.
É a voz dum coração que te apetece,
Duma alma livre, só a ti submissa.



Por ti é que a poeira movediça
De astros e sóis e mundos permanece;
E é por ti que a virtude prevalece,
E a flor do heroísmo medra e viça.



Por ti, na arena trágica, as nações
Buscam a liberdade, entre os clarões;
E os que olham o futuro e cismam, mudos,



Por ti, podem sofrer e não se abatem,
Mãe de filhos robustos, que combatem
Tendo o teu nome escrito em seus escudos!


Hino à Razão, de Antero de Quental

Na Suécia se calhar funciona

(e por aqui é certamente tão necessário como por lá)


Teatro final



O Museum of Broken Relationships (a sério: existe) foi nomeado para o prémio EMYA 2011 (European Museum of the Year Award). Este museu (a sério: existe mesmo) centra-se na exposição de criações artísticas que reflectem a ruína de relacionamentos humanos. Não falta material nos tempos que correm, está bem de ver. No entanto, não pretende ser uma coisa negativa e deprimente (a sério...) - pelo contrário: promove o que chama de uma oportunidade para ultrapassar o colapso emocional do fim através do processo criativo, e o seu espólio resulta do contributo de gente de todo o mundo (sim...). Admitidamente, a motivação dos contributos pode ir do mais puro exibicionismo ao processo terapeutico ou à simples curiosidade. Mas diz-se que:

 «people embraced the idea of exhibiting their love legacy as a sort of a ritual, a solemn ceremony. Our societies oblige us with our marriages, funerals, and even graduation farewells, but deny us any formal recognition of the demise of a relationship, despite its strong emotional effect. In the words of Roland Barthes in A Lover's Discourse: "Every passion, ultimately, has its spectator... (there is) no amorous oblation without a final theater."»


E também não sou eu que vou tirar razão ao argumento. Até porque eu tenho uma veia teatral. Fica em Zagreb e podem ler tudo aqui.

Alguns Sublinhados

"(...) entreolhara-se fugazmente e descobriram nos olhos as mesmas sombras, as mesmas olheiras, o mesmo glaucoma histórico que lhes permitia ver realidades paralelas ou ler a existência contada em duas linhas narrativas condenadas a não coincidir: a da realidade e a dos desejos."


"Inamovível país da memória. Incorruptível como um seio de Santa Teresa ou um filme de Roger Vadim."


"(...) todos os dias saio à procura de alguma coisa sem saber que merda procuro e tornando-se assim difícil encontrá-la."


"(...) para os derrotados, a vida se tinha transformado num banco de nevoeiro, na bruma dos condenados a conservar o melhor das suas lembranças (...)"


"Nunca confies na memória porque está sempre do nosso lado: suaviza a atrocidade, dulcifica a amargura, põe luz onde só houve sombras. A memória tende sempre à ficção."


"Os valentes não existem, só as pessoas que aceitam caminhar ombro a ombro com o seu medo."



In "A sombra do que fomos" de Luis Sepúlveda

Ameno

O dia hoje correu sem esforço, num encadeamento perfeitamente natural de programas e acasos. Teve madrugada ao som da fome inadiável do miúdo e depois mais uma horinha de sono, cumprida a função nutricional materna. Teve as outras funções cumpridas a seguir, embora a arrastar o sono, e depois de limpo e aprumado, de unhas cortadas e tudo - sem birras, e de tratado um nariz entupido, foi fora de casa. O tempo primaveril ajuda-nos a abrir as portas. Foi dia com direito a sol e temperatura boa sem casacos, teve direito a fast food, a passagem forçada por um centro comercial, a desaires no trânsito por causa de uma manifestação, cantoria no carro e peça de teatro infantil. Deu direito a abraço à mana caçula e à sobrinha V. que traz por dentro e que está quase a chegar, a encontro com uma prima que trazia um miúdo "compatível" pela mão. Resultou num lanche num quiosque onde deram migalhas aos pombos, seguido de brincadeira no parque infantil do jardim. Depois foi banho e jantar, sem pressas e sem dificuldades, sem birras e sem tristezas, e um calhamaço de história ao deitar, aninhado no meu colo, e exausto mas tranquilo, quero pensar que de feliz. E assim acabou o primeiro dia de fim de semana primaveril, com o mesmo sabor do tempo ameno que se fez sentir. E embora seja mais de extremos, o correr suave destas horas foi trégua providencial, e agora só me quero deixar dormir. 

Escolha

Nem de propósito, passou-me pela frente um texto antigo que escrevi sobre o legado que quero deixar ao meu filho. E foi muito bom timing, porque recordo, nas minhas próprias palavras, as minhas fundamentais convicções que, às vezes, perco de vista no turbilhão. Relembro que, tal como gostava de o ver um dia fazer o caminho de quem acredita que não nos esgotamos numa única função de vida, de quem acredita que temos de procurar crescer continuamente, evoluir, sermos felizes, também eu própria o tenho de fazer e dar o exemplo. Inclusive, dar-lhe o exemplo do erro. Como escrevi nessa altura, “não quero que cresça a pensar que a vida é um mar de rosas ou que eu sou alguma super ou supra mulher, que não chora, que não sofre, que não se cansa ou não se desanima às vezes, que não erra. Quero dar-lhe o exemplo do erro, mostrar-lhe que todos erramos na vida e que só não se perdoa quem não tem coragem de assumir o erro e fazer alguma coisa para o corrigir, quem desiste de tentar ser maior e melhor cada dia, quem desiste de ser feliz. E sim, uma outra lição difícil, quero que aprenda que o que conta é estarmos bem com a nossa consciência, mesmo que isso nos faça escolher caminhos que mais ninguém entende. E quero que saiba que, mesmo se eu própria não entender os seus caminhos, pelo menos, pelo menos, aceito caminhar com ele até ao fim.”

Foi providencial sentir-me de novo na pele do que sou ou luto por ser. E relembrar também, como leio num outro parágrafo, que eu já aprendi a lição de que, às vezes, quando me sinto viver no vazio e com a sensação de que nada faz sentido em mim, preciso de olhar de fora e perceber que a falta de sentido não é necessariamente da minha existência, pode ser apenas da minha permanência numa realidade que não faz sentido. Portanto, mais uma vez, meia bola e força. Tenho de me escolher primeiro, assumir o erro e corrigi-lo, mesmo que pareça ser voltar atrás e por caminhos que não me entendam, mas em paz comigo mesma, construindo o legado que quero deixar ao meu filho, que é nessa paz e nesse exemplo que encontro a minha força. Não desisto, ainda não desisto de ser feliz. E para isso, há que desistir de outras coisas. Como já ouvi muitas vezes por aí, a escolha de uma coisa envolve quase sempre prescindir de outra. A minha escolha só depende da minha coragem, e não volto as costas a esta luta.


Imagem daqui.

Novecentos e noventa e nove

Mil véus de bruma envolvem-me em camadas, que me escondem, tanto quanto me protegem. O nevoeiro é o meu forte, a defesa do meu castelo. Mas às vezes é solitário, às vezes apetecia o sol. E não consigo. Prendo as lágrimas atrás do véu e espero que mas leiam antes de cairem. Ou talvez seja que espere que alguém levante o véu por mim e mas seque sem eu ter de as soltar. Hoje esperei. Mas eu tenho um mapa complicado, não tem a lógica dos pontos cardeais, não tem indicações de distâncias nem setas de direcção. E é verdade: há o que somos e há o caminho para lá chegar. Tenho de reconhecer que se o meu sentido de orientação é mau, e me perco tantas vezes nos meus próprios caminhos, pior serei a orientar os outros. Não sei porque é que às vezes me esqueço disso e fico à espera que me vejam o mapa com clareza. E ainda, que cheguem lá. É que no fim, são aqueles que estão mais perto que mais precisam de direcções. De mil véus, poucos me conseguem levantar um só.

Não havia na farmácia

Provas escritas

Abasteci, como era plano fazer esta semana, nas horas que me desplanearam, a que juntei um jantar, digamos, espontâneo. Agora tenho de provar o raio das escolhas que fiz. Queria Zimler. Do supermercado à distância (obrigada), uma amiga avalizada para estas coisas aconselha-me "Goa ou o Guardião da Aurora". Esgotado a nível nacional, a editora faliu. Segunda opção: "Meia noite e o princípio do mundo". Gosto do título, penso, peço, mas não têm. Dá para encomendar, menos mal. Mas e até lá? Olho à volta e trago estes, que gosto deste autor improvável, gosto da sensação enganadora de leveza dos seus livros, que depois se revelam de uma rica pesagem, tal como o discurso aparentemente simples, a esconder coisas que às vezes me levam que tempos a digerir:

  

E gosto dos títulos, e gosto das capas, e gosto de tentar descortinar motivações subliminares nas minhas próprias escolhas, embora quase sempre não tenha grandes respostas, e vou a matutar nisto quando passo por outra prateleira e prende-me mais um. Um autor daqueles que que é um mistério para mim. Li o incontornável e mais famoso dele pela altura em que entrei para a Universidade. Adorei. Mais tarde, tentei ler outras coisas dele e não fui capaz, não gostei mesmo, e não sei porquê. Resolvo voltar a tentar com um título mais do que a propósito e que me deixa a rir de mim própria: "A ignorância".  


Pronto. Check em mais uma tarefa da semana. Agora é lê-los.

Organização



Vem aí uma nova semana. Promete várias coisas e já sei que me vão faltar as horas para tudo o que queria fazer. Começa amanhã com a habitual reunião de staff com mais uma redifinição de funções, desta vez previamente anunciada. Já nos rimos todos. Eu tenho, neste momento, quatro "chapéus" profissionais, e ainda não tive um mês inteiro sem funções alteradas ou adicionadas. Há quem lá esteja há apenas dois meses e já vá no terceiro título oficial. A ver vamos o que sai dali. Há também um jantar agendado, por confirmar à tarde, um amigável reencontro com um ex que gostava de manter amigo - caso raro. Depois há um problema para resolver com o meu Director e há uma renegociação de contrato pendente que, neste momento, não me apetece apressar. Para outros dias há um café agendado para um fim da tarde, há outro jantar mais-ou-menos apalavrado, há uma proposta de trabalho para aprofundar e pesar bem, muito bem, as opções que tenho. Pelo meio, o ram-ram do quotidiano por vezes entediante, a ausência do meu filho, sentida ora liberdade, ora saudade, e uma enorme vontade de sair por aí. Pelo menos, como acabei de realizar, preciso de passar numa livraria e abastecer.    

Claro que, apesar do tédio dos dias planeados, sobram-me outros para descobrir, e percebi que, propositadamente, nos meus planos deixei dois dias em branco. Eu que sou tão organizada, que faço planos compulsivamente, neste momento o que mais me apetece é a surpresa do inesperado. Acho que, finalmente, estou no bom caminho para cumprir uma promessa que fiz um dia: cultivar a espontaneidade. Estranhamente, faço-o com organização. Sou um paradoxo ambulante.

Atrasada

Gostava, sinceramente que gostava, de ser menos exigente. Pronto, é eufemismo, maneira bonitinha e suave de dizer que sou intransigente, e picuinhas, sou tramada, sou lixada com um grande F. Mas a verdade é que as minhas apreciações das pessoas caem por terra, num primeiro crivo, no tempo que leva a ouvir "dissestes", no tempo de ler "ficas-te" (referindo-se a passado), ou no tempo que leva a perceber uma falta de inteligência, apanhar uma mentirinha ou uma falta de carácter, tudo por igual medida. Tal e qual o risco no vinil, a coisa fica por ali, não consigo ultrapassar, o momento, como o disco, fica em repetição na minha cabeça. Rio-me de mim própria que, sabendo-me e admitindo-me tão imperfeita, não perdoo aos outros as falhas que não tenho, e não me permito gostar de quem tem falhas dessas à vista desarmada. Talvez seja por isso que, perversamente, acabo por me deixar gostar de outros que têm piores falhas escondidas, e depois, no dia em que as descubro, desiludo-me, e já vou tarde para não sofrer. E dos primeiros, quando às vezes percebo que para lá desse idiota crivo há gente boa, já vou tarde para retroceder. Às vezes, sou uma verdadeira besta quadrada. 

Fruto Proibido


É o mais apetecido, é verdade. Se os olhos comessem, estaria saisfeita. Assim sendo, pois não estou. Estou proibida de comer doces nos próximos tempo, mais uma série de coisas, e qualquer dia morro da cura que quase não sobra nada para alimentar-me e muito menos para consolar-me. Hoje queria mesmo muito uma coisas destas - doce, com morangos e com chantilly. Cada dia que passa mais quero tudo aquilo que não posso ter. Ou pelo menos - comer.   

Frágil

A coisa mais difícil é aceitar-me a vitória de certas fragilidades. Eu conheço-as - as minhas fragilidades. Sejam os defeitos intrínsecos, sejam os assuntos que são, para mim, terrenos pantanosos. Os primeiros tento controlar à base de uma auto-crítica feroz, os segundos tento evitar, fugindo dos caminhos que me podem levar a lá ter de pôr o pé. Mas às vezes, eu sou mais forte que eu. Sim, porque eu sou as duas coisas: sou as fragilidades e sou o controlo. Quando ganham as fragilidades, lá correm as palavras explosivas, tenho uns repentes de mau feitio, ou atolo-me no pântano forçada a ouvir-me articular as palavras escondidas, a regurgitar todas as dores de que fujo e que gostava que fossem esquecidas. Sair do pântano é o diabo. Leva-me a vontade de tudo, quanto mais quero falar, mais me calo, e perco umas horas de sono a revolver sem som tudo o que me vai dentro. 

Depois fico danada comigo própria. Lá me arrasto para fora do pântano e volto a fixar os sinais de perigo na entrada desses caminhos. Armo-me com determinação e prometo-me que não voltarei a cair ali, porque não voltarei a soltar essas palavras que me obrigam a percorrer os caminhos do pântano. Até ao dia, claro, em que um dos meus defeitos me vence e me leva a dar resposta a alguma coisa que oiço por aí, e que toca uma corda em mim que ainda não fui capaz de cortar, ou afinar. Momentos em que me sei duplamente frágil. 

Hipotéticas Dialéticas

Se te apaixonares por um homem, que aos teus olhos é, naquele momento, o homem perfeito, é o homem com quem queres viver o resto dos teus dias, e depois namoras, e depois casas, e depois são uns anos de maus tratos, e depois um dia aquilo escala e tu temes pela tua vida, e então foges, e depois divorcias-te, isso faz e ti o mesmo que ele é?

Aos meus olhos, não faz. Não faz o mesmo nem no momento em que te apaixonas, no momento em que  escolhes casar, no momento em que suportas tudo, nem no momento em que finalmente desistes.  Não escolhemos os outros, sempre, à nossa imagem, e humanos que somos, temos direito (e estamos mesmo condenados) ao erro. Uma escolha errada poderá dizer de nós uma ingenuidade, ou uma fragilidade intelectual, ou emocional, ou um simples azar, mas não desculpa o erro que os outros podem fazer connosco, nem equivale o erro de um ao erro do outro. Além disso, as pessoas mudam, por vezes revelam-se diferentes do que julgamos conhecer-lhes, todos cometemos erros na vida e temos ocasionalmente comportamentos ou reacções surpreendentes, até para nós próprios.

Se um dia tiveste um marido que te tratou mal, que te enganou, que te gritou e agrediu, e um dia queres reconstruir a tua vida ao lado de outra pessoa, não será legítimo que lhe expliques de onde vêm  as marcas que trazes, o porquê de fugires de discussões ou ficares alterada se ele te levanta ligeiramente a voz, o porquê de seres desconfiada e evitares determinadas situações?

Do meu ponto de vista, se consegues, é legítimo. E mais: é importante. O que nos fica do passado e faz parte de nós tem de ser integrado nos relacionamentos seguintes com verdade. É importante que se conheçam as marcas um do outro, as razões que explicam o que mais ninguém entenderá, as áreas sensíveis onde é preciso pisar com pés de lã. Se consegues, claro. Mas há é uma fronteira no que se deve partilhar, porque o que se passa no âmbito de um relacionamento não nos é exclusivo, mesmo que acabe parte de nós.

Se ao mundo em geral à tua volta não revelas porque é que o teu casamento acabou, te recusas a falar do assunto deixando inclusivé alguns amigos e familiares a atribuir-te culpas, se o confidencias apenas a quem te é especial e que queres que te compreenda a fundo, e se ainda assim deixas os detalhes da intimidade do outro de fora, poderão acusar-te de maldicência?

De onde me sento, digo que não, não podem.  Desde que, como digo acima, o façamos com respeito pelo dever que considero que temos perpétuo de não expor a intimidade que outra pessoa partilhou connosco. Confidências do nosso passado não são necesariamente maldicências, até porque todos temos momentos em que somos ou estamos menos bem, mas não falar desses momentos não os desculpa nem os faz desaparecer, muito menos às consequências que deixaram.  Falar dos erros de outros que resultam em marcas nossas não é assumi-los como erros próprios, não é diminuir-nos, nem é equiparar-nos aos outros que um dia escolhemos - erradamente. 

O teste do Amor

O meu miúdo está, novamente (e quando é que isto acaba, pelo amor da Santa??), numa fase de teste. É o que chamo a isto: parece que tirou os dias para me levar ao limite, massacra-me a paciência e desafia-me de todas as formas e mais alguma. Confesso que há vezes em que cedo, porque estou de facto no limite e porque, em última análise, não me sinto com forças para o embate das consequências. É que, em face da recusa de cedência, ele castiga-me com as típicas tiradas do “não gosto mais da mãe”, “quero ir para casa do pai”, “nunca mais quero voltar para esta casa”, etc por aí fora, e acompanha com birra e disparate.

Vocifera estas coisas um bocado, ou choraminga quando tem de ouvir mesmo um raspanete mais duro ou quando fica de castigo, e depois passa a birra, lá negoceia uma aproximação qualquer, conversa comigo meio no desprezo, meio na vergonha, meio na culpa (está bem, são terços), lá sai um pedido de desculpas mais ou menos sentido conforme os dias, e no fim adormece-me no colo todas as noites. E, no último dia da semana comigo, diz-me em jeito de desculpa que gosta muito de estar comigo e vai ter saudades, e à despedida, juntamente com uns desavergonhados olhinhos de carneiro mal morto e um sorriso envergonhado a contrabalançar (a sua muito própria expressão de ternura), deixa no ar um “gosto muito da mãe”.

E eu – eu também vocifero por dentro que o raio do miúdo dá-me cabo dos nervos, contorço-me toda para não lhe dar uns berros, mordo-me toda para me controlar e fazer um discurso construtivo e racional de desmontagem dos comportamentos que tem comigo e do que está por trás. Depois racionalizo as mágoas que me ficam das palavras que oiço dele e digiro as minhas próprias culpas, e no fim perdoo-lhe tudo e derreto-me com ele a dormir no colo todas as noites. E no último dia da semana com ele, em jeito de desculpa, que também sinto a culpa, digo-lhe que também vou ter muitas saudades, e em face daquela cara linda num sorriso de ternura, apesar da expressão de santinho do pau oco, devolvo-lhe que gosto muito dele também.

E no fim, isto basta-nos para sabermos ambos que nos amamos.

Sei que é um processo normal e comum, ainda mais de crianças com pais separados, mas faz-me matutar ver aqui um padrão de comportamento, ou uma dinâmica, que me é familiar. Não há como o amor para irmos aos limites, mas perversamente, também testamos os limites do outro. E se há amor assim daquele irrenunciável, tudo se perdoa, nunca se chega ao limite, e o que interessa é que, no fim, dizemos um ao outro a mesmíssima coisa, e sentimos ambos a mesmíssima falta. E depois, qual é a mulher, mesmo zangada, que é capaz de resistir a uma ternura, um sorriso (apesar de envergonhado) a acompanhar um “gosto de ti” vindo de um homem que se ama? E o meu miúdo é um homem, ainda que em pequenino. E eu sou mulher, antes de ser mãe. Podia fazer aqui muitos outros paralelos, podia, mas hoje não estou para aí virada. Tenho saudades do meu pequeno homem.

Cúmulo da burrice

É tão burro, tão burro, mas tão burro, que nem consegue perceber que é burro.

Aaah, o regresso ao escritório, esse alegre corso carnavalesco.

Hoje, ainda com mais sentido

Em ciclos, ou fases, ou interregnos, vão e vêm, alguns voltam outros nunca mais os vemos. Na individual perspectiva de que cada vida é uma estrada por si, e no egotismo com que se olha a própria vida, podemos até conceber caminhos cruzados, ou paralelos, convergentes ou divergentes, podemos consentir, aqui e ali, margens de estrada partilhadas, a sombra da mesma árvore num momento de pausa, a luz do mesmo sol a aquecer duas epidermes, mas olhamos sempre a nossa vida como o ponto central do mundo que se espraia à nossa volta, pejado de caminhos e trilhos diversos. Quando alguém caminha connosco, é sempre o nosso caminho que vemos. Quantas vezes pensamos que, se caminhamos com outro, podemos estar, na verdade, a fazer o caminho do outro? Amor, e amor pode ser tantas coisas, quando é pleno, será caminhar juntos no mesmo caminho, um trilho que não é de um nem do outro, apenas. É caminho que corre junto, numa estrada mais larga, e não dois caminhos que correm paralelos, ainda que muito próximos, ainda que sem margens. Corre junto mas cada um vive sempre uma vida própria, como não pode deixar de ser, e nessa autonomia muitas vezes se desvia. Separa-se, divide a estrada, deixa crescer ervas daninhas na margem do nosso lado, distancia-se e perde-se no horizonte. Verdade seja dita, também por vezes expulsamos companhias de viagem, pelos mais diversificados motivos. Também erguemos muros na estrada criando margens fechadas com portões trancados a cadeado. Mas custa tanto perder gente na vida, dessa gente que um dia caminhou lado a lado, de braço dado e sincronismo nas lágrimas e nos risos, gente que tornamos nossa gente, desse mesmo caminho mais largo. Acho que custa mais perder um grande amigo do que perder um amante. Espera-se muito mais de um amigo assim, acredita-se muito mais facilmente em pureza de sentimentos e em para sempres. Amor apaixonado... é aquela coisa complicada, que o tempo nos ensina que não é eterno “posto que é chama” e é infinito apenas “enquanto dure”. Amizade dessa à sério, que nos torna irmãos de alma de alguém, era para ser eterna e infinita mesmo. E se temos de reconhecer o fim de uma amizade assim, dói como perder família querida, torna-se mais só o caminho que se estreita e se escurece, mais vazia a existência que empobrece, mais triste a alma que emudece.

Mas assim é a vida. 

Do fim da história

"Mas na janela o ângulo intacto duma espera
Resolve em si o dia liso."

Límpido e conciso. De Sophia, claro. Há é dias longos, muitos longos, feitos de muitos sois e muitas luas, dias que se estendem na medida da abertura do ângulo da janela, que se medem pelo tiquetar da esperança, que não é mecânico nem cadenciado, é longo, muito longo, como o dia, e ressoa em cada tic, e em cada tac, no eco da cavidade vazia que se traz ao peito. Sempre fecho os olhos ao horizonte, sempre declaro resolvido o dia que passa em branco, e sempre me encontro à espreita de cada vez que me cruzas a vista, na improbabilidade do avistamento, e ainda que em rota obviamente contrária à abertura do ângulo intacto da minha janela.

Reedições Do Passado

O que fomos e o que somos não tem tempo. O que tem tempo são os factos, os acontecimentos, os detalhes e os momentos. Mas também eles nos são gravados, como em pedra, esculpindo-nos mais uma forma, uma ruga, uma prega, ou abrasivamente desgastando arestas, rugosidades e pormenores. São do tempo em que somos a cada dia e a cada noite, são desse tempo sem data que só se fechará quando na pedra se gravem os números do último dia. E vamo-nos tornando a esculptura que a vida nos faz, vamo-nos enriquecendo com os arabescos que esse escopro nos vinca e vamo-nos apagando pelo desgaste da pedra que o tempo da vida produz. Pensamos que deixamos para trás muita coisa, muita gente. Fechamos capítulos, abrimos outros novos, reescrevemos algumas páginas até. Lidamos com o que foi, o que passou, da melhor maneira que conseguimos, para que não nos impeça o passo de novos caminhos. Mas... o passado permanece connosco, esculpido em nós. Na caixa das recordações que sempre encontra um espaço nosso, debaixo da cama, num armário recôndito, ou no fundo de uma gaveta, há tanto de factos e momentos como de nós próprios. Há partes de nós inteirinhas, há bocados da estátua que mutilamos por vezes para sobreviver. Que não queremos carregar connosco no dia-a-dia, que queremos enterrar, chorar e esquecer, no processo do luto que nos ensinam a fazer. Mas faltam-nos, esses bocados, e também não nos larga a sua ausência. Cobrem-se com o pó dos anos, dilúem-se no ruído da vida que vamos amontoando em cima, e continuam lá, debaixo da pilha de coisas que teima em não se equilibrar. É verdade que é importante fechar passados, deixar coisas e outros para trás, e até bocados de nós. Mas isso não é simplesmente esquecer. Às vezes, é morrer um bocadinho. Diz que águas passadas não movem moínhos. Mas, às vezes, movem vidas inteiras.

Prós e Contras

Peso numa mão aqueles momentos em que nos descobrimos o caroço, iguais em essência; peso os momentos em que nos seguramos, alternadamente, momentos de alegria ou tristeza que mais que partilhamos - dividimos; peso as identificações, os paralelos de história, e as diferenças e desvios de caminho que, no final, fazendo-nos um resultado diferente, nos permitiam somarmo-nos num número redondo, uma soma de simétricos, que resultava num equilíbrio mútuo, um pouco de ti para onde me faltava a mim, um pouco de mim para o que te faltava a ti. 

Peso noutra mão aqueles momentos de incompreensão, de choque pelo que de repente nascia de um caroço que pensavamos conhecer e pensavamos igual, mas afinal germinava diferente; peso os momentos da falta, da falha, admito que alternadas e mutuamente sentidas fundas, mutuamente não entendidas, e que mutuamente tentamos em vão perdoar e esquecer; peso as diferenças e distâncias que cultivamos ou deixámos crescer, até serem impossíveis de integrar, a desiquilibrar a soma do conjunto com cada uma das nossas equações a resultar cada vez mais diferente, sem hipótese de conciliação de simetrias.

No meio, peso uma saudade de chumbo; e peso a mágoa, que talvez peses também. No fundo, peso uma perda que não sei como recuperar, mas também peso uma mágoa que não sei como largar. Peso o efeito de um corte visceral sob a pele da cicatriz que não quero dissecar.

Mágicas

A magia é algo que é apenas fascinante enquanto não se conhecem as mecânicas que lhe estão por trás. Mais – é apenas mágico enquanto se acredita que pode não ser sempre ilusão. Também na vida: a vida não tem magia quando percebemos que tudo é mecânico e explicável, que o que não entendemos tem uma razão qualquer, que apenas nos foge momentaneamente e, por isso, tudo é apenas, e sempre, ilusório.

Não é de estranhar que no mundo de hoje, onde quase tudo está desmistificado, onde o homem vive absurdamente consciente da sua racionalidade e da cientificidade dos fenómenos do mundo, andemos tantos e tantos a suspirar por um bocadinho de magia, uma magia qualquer, em que gostávamos mesmo de acreditar, para fugir do peso de tanta realidade, tanta ciência, tanta razão.

Temos sede de magia, paradoxalmente, temos falta de fé. Assim somos os verdadeiros desiludidos, com os vários sentidos da palavra: "adj. Que já perdeu ilusões; decepcionado, desencantado". Afinal, o esclarecimento não traz felicidade, porque sem ilusão também não há encanto. 

Mímicas

Duas mãos pequeninas seguram a minha cabeça. Ele estica-se na beira da cama para me dar um beijo. Depois deixa as mãos pousadas em mim, mas afasta a cabeça e pergunta: "Já está melhor mãe?" Misto de afirmação e dúvida. Fico a pensar no que ele me devolve: beijos que, como os meus, sabe que não curam realmente, mas que de saberem tão bem receber, são meio caminho andado. Para mim também. Mimetizando, o meu filho aprendeu o que é amor.


E nos últimos tempos, mimetizando, acho que houve muito que desaprendi.

Desafio "Acrescenta-me um ponto"

A mim chegou-me da XR, do blog "Post-It's Soltos", a quem agradeço mais uma vez, que eu gosto de desafios.

"Texto do desafio:

Esta rubrica surge da necessidade de renovação e intensificação do espírito de unidade e imaginação da blogosfera e pretende que cada um dos bloguistas seleccionados seja autor de um parágrafo de um texto realizado em conjunto por vinte bloguistas. Assim, passamos a enunciar as seguintes regras:

Regras da Rubrica "Acrescenta-me um ponto!":

1 - O texto, constituído por vinte parágrafos, terá início no blogue "O Sabor da Palavra", segundo o seu autor Gonçalo Cardoso.
2 - Cada bloguista terá direito a um parágrafo de texto com o máximo de cinco linhas.
3 - Após a realização do parágrafo respectivo, cada bloguista terá que seleccionar outro que cumpra a continuidade do texto segundo as regras mencionadas.
4 - Cada bloguista terá o limite máximo de três dias para realização do parágrafo, estando sujeito a desclassificação da rubrica e selecção de novo bloguista por parte do seu autor.
5 - Cada bloguista assinará o seu nome e respectivo blogue na lista dos participantes.
6 - O último participante ou autor do vigésimo parágrafo, finalizará o texto e partilhará com o autor do blogue "O Sabor da Palavra" para a sua divulgação no blogue inicial.
7 - Sejam criativos.

...§§§...

E tudo começa assim…

"Ao fundo ouvia-se o barulho dos pescadores na lota de Aveiro. Mais perto a maresia de Agosto percorria o nosso rosto e o teu sorriso revelava o reflexo da luz solar sobre o mar. A areia fina e molhada envolvia os nossos pés e, de frente um para o outro, estendias-me a mão salgada e preparavas-te para a mais doce revelação..."
"Pensava, enquanto o Sol se punha diante dos nossos olhos... Quão bela é a profundidade de um sonho?! Tiveste medo. Não te revelaste. Mais uma vez, o tempo esvaía-se nas pegadas que se apagam. Tal sangue, tal sofrimento. Larguei-te a mão e prometi a mim mesma que nunca mais ficaria à espera. Chamaste por mim...."
"É sempre complicado quando a vida já é muita e as histórias pesam em vez de preencher... Mas o teu olhar preenchia-me como os fados cantados em noites sobrenaturais e eternas, e a tua boca queria falar, queria dizer, queria murmurar... Diz, pedi eu, diz... "
"Olhas-me nos olhos e acaricias-me as covinhas. Invade-me uma sensação de calor. Pousas os teus lábios nos meus sem dizer nada. A doçura faz-me esquecer, por um instante, as resoluções. O meu coração dispara, desata aos pulos em silêncio. Levas a mão ao bolso e retiras uma pequena caixa.
- Não posso aceitar um presente teu - digo-te baixinho. - Lamento muito. Não tornes as coisas ainda mais complicadas. "
"Ele segura-lhe na mão e eleva-a para junto da sua de modo a tocar na caixinha que ele trouxe para lhe oferecer. Nisto ela fica apreensiva, olhando para a sua mão e retomando o olhar para ele uma vez mais, mas desta com uma expressão de dúvida e angústia. Ele já conhecia bem esta expressão e retomava-lhe um olhar de confiança e de uma ternura irresistível, à qual ela não poderia recusar... "
"No entanto olhando bem fundo dos seus olhos ela recusou ao mesmo tempo que delicadamente pousava um beijo na sua face. Saiu dali a correr, as lágrimas correndo livremente pelo seu rosto. E ele ali ficou sentado, segurando a caixinha nas mãos. Olhou o mar mais apelativo do que nunca e pensou "E porque não?" ao mesmo tempo que se levantava em direcção às ondas que o convidavam a entrar."
"A fuga é sempre mais fácil. O sonho por realizar. O "se" que nos marca e tanto nos impede, como nos impele a agir. E se desta vez abrisse a caixa de Pandora? E se lá dentro estiver a felicidade? A luz momentânea do Sol ou o correr entre a areia e a vagas do mar?
Abdico das lágrimas. Respiro fundo... "
"Abraço o mar com a força de quem ama profundamente e finto-lhe as ondas na tentativa de encontrar uma resposta ao que me queima por dentro. A tal pergunta que dói e que sei ser mais dirigida a mim mesmo do que a ela. E Agora? pensei. Saí da água com o sal a queimar-me o corpo e abanei a cabeça como para afugentar pensamentos desagradáveis. Atrás escuto uma voz doce e rouca... "
"Ainda tentando recuperar das tormentas, que por longos minutos me povoaram a mente debaixo da água cristalina, viro-me lentamente para responder ao chamado da voz doce e rouca nas minhas costas. O sol ofusca-me, mas lá estavas tu de rosto iluminado. Afinal, as tuas lágrimas perderam-se no caminho das dúvidas e abriram um sorriso sem hesitação, na tentativa de resgate de uma última oportunidade:
- Diz!… - e mais uma vez proferiste a palavra num murmúrio, quase suplicante."
“Sorri! Aproximei-me junto do teu medo e poisei a caixa na palma da tua mão. O bater do teu peito, roubava-me o respirar que esperava por algo mais que o ar. Preso nas palavras e num tom trémulo de esperança, disse: - Ainda não vi! Queria ver contigo.
Indecisa entre a vontade de um sim, assombrado pela recente perda, e a vontade de um não, apavorado pela impotência de ser possível, revelaste um “abre” embebido em lágrimas.
O vento, que soprava entre as ondas dos teus cabelos, sussurrava-me os infindáveis cenários.
- Positivo! – Exclamei ao ver o resultado.”
"Senti o que deve sentir alguém quando vê uma coisa assim: o céu caiu-me em cima da cabeça e o coração palpitou junto à boca. Os meus olhos olharam para os teus, à procura de uma reacção - uma que fosse- que me desse uma pista sobre o que sentes também. Vi um mundo novo no teu olhar, uma esperança, um alento. E depois olhei em redor e a praia inteira devolveu a minha inquietação. Lá longe ouviam-se os barulhos na lota e os motores dos barcos a passar. O farol observava-nos, altivo e sobranceiro, como sempre..."
“Fechei os olhos. Senti de novo os medos a enrolarem-me a alma, a fragilidade de algo tão desejado colou-se na pele, as pernas fraquejaram.
E agora? Pensei. E agora? Sinto-me tão pequena e tão cheia deste receio, desta incerteza que me consome, deste medo de um futuro tão desejado quanto temido por tudo o que já havíamos passado.
Abri os olhos e fixei-te. O teu olhar abraçou-me e a tua mão procurou a minha suavemente.
Olha para o mar - diz-me em tom suave e rouco -, lembra-te que o barquinho da Esperança consegue navegar mesmo em águas tumultuosas… desta vez vamos conseguir.”
“Entre o aconchego do abraço e o conforto do corpo junto ao dela, lágrimas rolavam-lhe pela face. A revelação na caixa. A felicidade tantas vezes adiada, estava agora nas suas mãos. Sentiu um nó na garganta. “Não posso voltar atrás”, pensou, “lutei e sofri muito para o conseguir. Há muita gente envolvida. Muita confiança depositada em mim”. Sentiu-se sufocar pela angústia, o coração apertado. Sentiu náuseas. Olhou-o nos olhos e diz-lhe com a voz embargada “Aceitei o lugar na AMI, parto na próxima semana para o Sri Lanka…”
" Parto... e parto sozinha. Afinal a Tua companhia era imaginação minha. Nunca entendeste a verdadeira razão e muito menos a cor do mar onde mergulhavas confiante... o (a)mar não é teu. Nunca foi. Precisamente por isso, não soubeste que o (a)mar te retribuía a vida que querias ter. Tudo te pareceu sempre certo, afinal o mar só tem marés cheias e vazas, não te lembrou que entre umas marés e outras Ele sempre existiu... Lamento vou (a)mar quem precisa. Vou ser amada. Tenho o coração cheio de espuma... espuma essa que nunca viste... e era Tua..."
"Parto... mas nunca sozinha... Parto sempre com a imaginação daquele momento junto ao farol.... Parto sempre com a imaginação da tua recusa em quereres aceitar aquela verdade diferente daquilo que sempre imaginaste para ti... dizem que nunca se pode perder o que nunca foi nosso... sim... dizem mas... eu sei o que foi meu e sei... e sinto que foste meu sim.... os olhos nunca mentem mesmo quando os lábios falam algo oposto... Parto sozinha sim mas... acompanhada com a sensação de já foste meu uma vez... e quem o foi uma vez... poderá sempre ser mais vezes.... também dizem ... "
"Os dias sucedem-se, rápidos e terríveis, não a deixam pensar no que poderia ser e não é, no que poderia ter sido e não foi. Nos "Se"s da vida.
Prepara a mala, a viagem, as despedidas. Sempre na ausência dele.
Não interessa, pensa. O nosso caminho deixou de ser o mesmo e eu preciso de avançar.
Já no aeroporto, embrenha-se num livro para não pensar em mais nada a não ser na AMI, no desafio.
Uma voz grave, masculina, conhecida de um Passado longínquo, soa-lhe aos ouvidos:
- És tu!!! És mesmo tu!!!"
"Jorge, ressoa o teu nome dentro de mim. E as memórias em catadupa, lançando-se no coração como se o tempo não te tivesse alguma vez tocado. O teu sorriso franco e aberto, a alegria genuína de me ver que sempre foi porta aberta em ti. Os mesmos olhos verdes que me perturbavam os sonhos e me procuravam, ávidos, a boca que de forma vã te tentava esconder. Os braços abertos esperando o meu corpo, para o abraço redentor.
E, dentro de mim, uma súbita e inexplicável vontade de mergulhar neles."
"Conteve-se. Levantou-se devagar e olhou-o de frente, sem conseguir refrear um sorriso: "Há tanto tempo.... "Demasiado", respondeu ele. Timidamente, como se os pés a traíssem, deu dois passos e viu-se envolvida num abraço quente tão acolhedor como o seu velho cobertor de menina. Uma lágrima solitária brilhou sob as pálpebras, mas logo um manancial delas jorrou incontidamente quando a voz profunda se fez ouvir entre os seus cabelos: "Tive tantas saudades tuas!"

"Mas eram lágrimas de quê? Sim: de quê exactamente? De súbito, numa imensa e desconhecida tranquilidade, deu-se conta que chorara já demasiado, que não queria uma história tão salgada, mais salgada que o próprio mar. E o mar - o mar levava-a de volta àquele tempo de que queria fugir, para tão longe quanto o Sri Lanka, tão longe quanto pode ir um coração que quer parar de carpir. E assim, lentamente, soltou-se do abraço que a prendia a um chão onde não tinha pé. E disse-lhe:""


Lista de Participantes:

1 - Gonçalo Cardoso (O Sabor da Palavra)
2 - Eli (E o amor acontece?) Dantes "Isso Agora... :)" ou "Eu Sou Nómada"!...
3 - Ana (Construir... Sorrindo)
4 - Myosotis (Myosotis)
5 - Fatinha (Para lá das lentes)
6 - Poetic Girl (Just Me)
7 - izzie (Unleash your thoughts...) [Peço desculpa pela demora. Rosnem à chefe...]
8 - Susana (Ondas e Devaneios)
9 –Sus (Suspiros da Alma)
10 – Jorge (Santo&Pecador)
11 – Star (Pocket full of stars)
12 – Blueangel (Blueangel)
13 – chrysaliis (Chrysaliis)
14 – Apenas Eu (Algodão Doce)
15 – Pequenas Decisões (Eu Mesma)
16 – Fada (Uma Fada na Selva)
17 – Mag (Laranja no Preto)
18 – XR (Post-It's Soltos / Arco-Íris)
19 – Princesa (Des)encantada (Destilado)
20 – Apple (À Conversa)

E para completar o desafio, escolho a Apple, do blog "À Conversa", uma escritora em potência com uma imaginação fértil e uma prosa deliciosa, além de uma grande amiga, apesar de andar por estes tempos mais por outras paragens. Apple: olha que vais rematar o texto. Arremata mulher! É só um parágrafo, e tens três dias (mas pelo amor da Santa, não deixes a desgraçada da personagem a chorar!...)

O Amor é Bicho - instruído?


Amor é bicho instruído
Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que escorre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.


Carlos Drummond de Andrade


E não aprende nunca. De facto, às vezes um penso rápido chega, e outras vezes não há nada que valha.

Essencialmente

Camadas e camadas de pó de vida assentam sobre nós como pele que se calcifica. Passamos anos a perscrutar por dentro, à procura do sentido da nossa própria existência, a sentir as faltas, a chorar os erros, a tentar aprender a dar passos mais certos em cada novo caminho, a definir o que procuramos. E enquanto mergulhamos por dentro, e enquanto tentamos fazer sentido de tudo o que vai falhando na nossa vida, e enquanto vamos enchendo alguns espaços com as coisas boas que vamos alcançando, enquanto não chega o que sonhamos, o pó assenta por fora. Teremos noção da espessura que acumulamos? Sentindo-nos tão seguros de que nos conhecemos bem por dentro, por causa dessa incessante busca interior, sentindo-nos orgulhosos com as coisas boas que sabemos ter e sentindo-nos maiores com os desafios que ultrapassamos, os erros que corrigimos, os defeitos que melhoramos, as mágoas que perdoamos, saberemos admitir que o que vemos de nós não se vê de fora? De fora, está o tal pó em camadas rijas, que nos oculta a essência que estranhamos não descubram em nós. Vêmo-la tão bem, tão clara. E achamos que não é pedir demais, que é a coisa mais simples do mundo, esperar que alguém seja capaz de a descobrir.

Mas quantos deixamos realmente entrar? Quantos nos conhecem os recantos interiores onde somos essência? Quantos nos vêm a alma nos olhos e nos ouvem o coração nos lábios? Na verdade, quantos conseguem ou se querem dar ao trabalho de dinamitar carapaças – próprias e alheias? E quanto é que não alimentamos nós próprios a espessura da carapaça, sentida concha, protecção, cada dia mais vital? Mas sozinhos, ali por baixo, só sobra a angústia e a solidão, tudo o resto se desperdiça. Às vezes, parece-me, esvaziamo-nos em nós próprios, empedernidos debaixo do pó. Talvez um dia se descubra que, por baixo, está apenas um enorme vazio de nós.

Também acontece, por vezes, descobrirmos muito mais nos outros, e outros perceberem-nos muito mais, que a tal camada de pó calcificada. Nunca deixo de me surpreender, com ambos os fenómenos, e acabo sempre com a mesma ideia: "it takes one to know one". Por mais que se defenda a imagem do coração empedernido, por detrás de figuras mais ou menos bélicas, mas sempre levemente cínicas e frias, há alguns - ainda há alguns, que na sua essência serão sempre bons corações, e isso transparece eventualmente, mesmo que seja através da pedra, aos olhos de outros iguais. Sempre é um consolo. 

Estou (in)devidamente impressionada

Tenho um leitor na Grécia que me lê no Google translator. Adorei ver o blog traduzido para Grego, que fica tão engraçado - como aqui deixo em amostra. Mas fiquei sobretudo impressionada depois de tentar a tradução para outras línguas, primeiro também dessas com alfabetos diferentes e que tornam os textos, à minha vista, em obras de arte, e depois para línguas que entendo, verificando, chocada, que a pseudo-tradução torna os textos absolutamente ininteligíveis. Caro leitor Grego, pelas suas visitas e, sobretudo, pela sua capacidade de resistência ao disparate ainda mais monumental que este blog há de ser também em grego: 

"ευχαριστίες"! 
  

Retratos

Não entendo grandemente de psicologia, mas sei que nem tudo o que vemos de nós corresponde ao que os outros vêm de nós. Vamo-nos apercebendo da imagem que passamos, por vezes deliberadamente (e, por isso, sem surpresa), outras vezes sem percebermos porquê (o que pode ser chocante e nos deixa com uma sensação de injustiça). Há percepções de mim que sempre julguei erros crassos de avaliação, porque não me sinto assim; mas acabo de comprovar, da forma mais improvável, que é mesmo o que projecto. Curiosamente, divertiu-me o retrato que vi fazerem-me, com alguns traços de óbvia fantasia, mas outros que transmitem, precisamente, essa percepção que já antes tiveram de mim, e eu achei absurda. Neste retrato a preto e branco, a minha pose, ainda que não deliberada, mostra-me como me mostro sem saber. Mas diverte-me porque, ainda assim, não mostra o mais importante que julgo ser, e faz-me perceber que o resto é mesmo como sou, e não vale a pena esconder. E depois, a vida é filme, a cores, fotograma atrás de fotograma, um mesmo sorriso com centenas de cambiantes, olhares e vozes que se tingem dos dias e das noites que correm. E quem entra no meu filme saberá, ao fim de uns metros de película, que eu posso não ficar sempre bem na fotografia, mas sou muito mais do que o instante que a máquina do preconceito suspende no tempo.