O peso de um fio

Uns bons quinze minutos em frente ao espelho, numa profunda dúvida e total perplexidade, com um fio de cabelo entre os dedos. Uns dez centímetros de cabelo branco, (que não adianta tentar embelezar a coisa e chamar-lhe um fio prateado), ali bem na minha frente, a declarar-me peremptório que a velhice chega a todos, e já ali andava escondido há tempo suficiente para ter aquele comprimento. Já sabia que tinha uns cabelos brancos perdidos por entre os louros, que há uns meses a minha cabeleireira disse-me que tinha uns primeiros a aparecer atrás, mas como nunca os vi, não dei grande importância. Só que este, este vi-o, no alto da cabeça, e segurei-o bem destacado dos outros, e não há dúvida: é absolutamente cinzento, tem um brilho diferente, uma espessura diferente - portanto, é um cabelo branco, e oficialmente o meu primeiro cabelo branco.

Fui para o Google, a querer saber se é cedo, se é tarde, se arranco, se pinto, se escondo. E deparo-me, estupefacta, não só com relatos de primeiros cabelos brancos aos vinte e poucos, como com uma série de sites, blogs e afins, a declarar que os cabelos brancos estão na moda, e que até há uma modelo super requisitada só porque tem um cabelo comprido todo branco-cinza, além de celebridades várias, muitas mais novas que eu, a pintar o cabelo ou a fazerem-lhe madeixas de branco (ou cinza). Não me lixem… O cabelo branco numa mulher não é sexy, seja em que idade for, ponto final! E muito menos a uns anos, (poucos, é certo, mas uns que têm de durar bastante), dos quarenta. Umas cãs nos homens, a rondar os quarenta, tem muito charme, sim senhor. Mas numa mulher? Poupem-me…

Claro que hoje arrasto, miseravelmente, o peso deste fio a crescer-me na cabeleira. É verdade há dias em que eu própria admito que já não sou uma menina, e me sinto velha para algumas coisas, apesar de me darem sempre muito menos idade do que tenho (chego a chocar algumas pessoas, o que tem a sua piada). Sendo que o conceito de velhice é sempre muito relativo (basta lembrar o que era ser-se “velho” quando tínhamos 20 anos), o certo é que o meu conceito de “velhice de 37” não incluía, definitivamente, cabelos brancos. Há um limite para o que se tolera que seja o corpo a definir! E ainda não decidi se arranco ou não o maldito, se me rendo ao inevitável ou se me recuso envelhecer assim tão obviamente e tão cedo. Sim: “tão cedo” - porque se sei que 37 é tarde demais para muita coisa, acho que ainda é cedo para ser velha. E entretanto, porque há que descarregar isto em algum lado, agora ando a tentar decidir a quê, ou a quem, atribuo a culpa por ele.

Aquecimento

Vem um dia, uma manhã, e de repente percebe-se que, mesmo que o sol não brilhe, e mesmo que as mãos não aqueçam, e que a ponta do nariz gele, o tempo não dorme e corre sempre à frente. Corre o tempo e, com ele, corre a vida. “E da vida, enquanto vivemos, não há maneira de fugir”, já dizia o meu Pai, e nisto acerta bem. É hora de ir à luta. Está claro que, diz o ditado, quem vai à guerra dá e leva. E sabendo bem que, às vezes, nos tornamos um perfeitos sacos de boxe, há que dedicar tempo à preparação e entrar no ringue como concorrente. Não há é ligaduras que sirvam ao coração, nem luvas onde caiba a alma, e por isso não há outra preparação possível que não a de nos cobrirmos com optimismo, alinhar os amigos em fileiras de tropas de reforço, e metermos no bolso, assim como assim, uma boa dose de prudência para ter sempre à mão. Mas não sei porquê, hoje que era manhã de enfrentar a luta, agora é tarde de me encolher ligeiramente e sentir assim uma resistenciazita. E hoje que devia ser noite de pisar o chão com firmeza e cabeça levantada, e lá ir atrás do tempo e da vida, está-me a parecer que vai acabar por ser noite de manta e sofá, a fugir dessa dupla malvada. É que também, de repente, as tropas alinhantes do programa não me parecem tão aliadas assim. E uma pessoa vai à guerra sabendo que arrisca - sim, é verdade -, mas precisa de saber que tem para onde se retirar com dignidade.

Assim sendo, talvez de volta ao meu sofá, na companhia da manta e de um bom livro, saberei que a minha solidão tem um propósito genuíno, e será apenas uma recusa de que me roubem a paz, e me derrubem no chão, sob o pretexto de me fazerem companhia. Por outro lado, hoje também não me apetece estar sozinha. Tenho mais umas horas para aquecer, para me balançar, e talvez me equilibrar. Veremos.

Nas malhas da rede


Nascemos envoltos pelas malhas dos que nos circundam e sustentam. A malha da nossa rede, aconchegante e segura a princípio, vai-se esticando, entendendo, alargando o nosso mundo à medida dos que abraçamos. Mas a rede não é sempre segura, nem sempre ampara a queda, por vezes enreda-nos, prende-nos no emaranhado que cria à nossa volta, ou larga-nos desavisados, tombados de um buraco, uma fragilidade da rede que não vimos nem esperamos, onde o abraço afinal não chega.

E então, as desilusões, as decepções, o acordar para a triste realidade de que nem todos são o que aparentam, alguns não sentem o que dizem sentir, nem sempre a rede nos sustenta, o desencanto faz-nos dar razão ao ditado do "mais vale só que mal acompanhado". Começam a cortar-se laços, a reduzir a rede, e com o tempo ganha-se à vontade para, e vontade de, reduzir cada vez mais. Até ser exígua a rede, de malha apertada, que não nos segura – antes nos prende, enredados em nós próprios, sem espaço de humanidade. Solitários, cortados os laços, minadas as pontes, fechada a rede na curta distância do seguro, na ilusão de que só até ali chega o abraço; e tristes, sentindo a falta dos outros. 


"Num mundo que se faz deserto, temos sede de encontrar um amigo."
Antoine de Saint-Exupéry.

Promessas



Se todo o ser ao vento abandonamos
E sem medo nem dó nos destruímos,
Se morremos em tudo o que sentimos
E podemos cantar, é porque estamos
Nus, em sangue, embalando a própria dor
Em frente às madrugadas do amor.
Quando a manhã brilhar refloriremos
E a alma beberá esse esplendor
Prometido nas formas que perdemos


(Sophia de Mello Breyner Andresen)

Rescaldo

Estes dias passaram em ciclos de vazios e supérfluos, que procuro à falta de melhor alternativa, e que servem quase perfeitamente para fingir que encho o buraco negro da fome, da ânsia, da ganância daquele indefinível e quimérico tudo, que (ingenuamente talvez), acho que me encheria a alma. Absurdo e inútil, é claro, encher um buraco com vazios. E nestes tempos de névoa densa que me torna opaca, tempos em que um escudo invisível me desliga o motor da busca, e um filtro se impõe sobre o que assoma de dentro, recolho de fora, observando, captando, os detalhes que geralmente perco quando é mais o que projecto do que o que recebo. Há um egoísmo invertido quando nos damos demais. Tornamo-nos egoístas também assim, porque na azáfama ensimesmada de passar de nós a uns quantos que escolhemos, não recebemos o que vem de fora, sobretudo de quem não contemplamos na dádiva. Estranho autismo. E há tempo de dar e de receber, há tempo de nos revelarmos e tempo de destrinçar os outros, tal como há tempo de viver a mil e tempo de parar em contemplação, tempo de futilidades e tempo de coisas sérias. O meu tempo? Paradoxal, como eu, e anacrónico. Encontro-me num tempo introspectivo nublado, vagamente egoísta, projectando-me em périplos de mil à hora, entretida com futilidades que mascaram a angústia de sentir irremediavelmente impossível encher o tal buraco negro, e em extroversões paradoxais na companhia de gente animada, alguns amigos, companhia que ilude a fome, ainda que sob o pretexto de conversa fútil e assuntos triviais. Apressada e faladora mas contemplativa, observadora e, agora, embora aparentemente receptível, muito mais recolhida, mais sentida, mais triste ou dorida, por mais que me vista e calce em tons e formas arrojadas, em jeito de boost de auto-estima. Quem me veja hoje, imaginará de mim tudo o que as peças deliberadamente escolhidas para o efeito projectam com sucesso, e não imaginará o quanto mente o figurino sobre o que passa e pesa dentro do manequim que o veste. E depois irrito-me comigo própria, porque não cheguei até aqui para ser uma fotografia de revista de moda, um cliché ambulante, de valor variável em função da altura dos saltos, da cor do verniz e da harmonia do conjunto. Pois não, mas é o que me safa em dias assim - é o retorno possível. Esvazio-me mais adornando-me por fora, mas faço-o porque o vazio de dentro não posso encher. Não posso, porque hoje não tenho sequer as quimeras por que andei afincadamente a lutar e que, nesse processo, simulavam um animador “quase cheio” do buraco negro, a miragem do oásis mesmo ali ao virar da esquina. Hoje, nem sequer vejo esquina nenhuma, é deserto, não me interessa procurar, estou farta de me dar a queimar ao sol, e apetece-me simplesmente cruzar os braços e proclamar “demito-me”, não dou mais um passo, nem mais um milímetro de mim, sou mais um grão desta areia que me escorregou por entre os dedos e aqui me derramo, sou mais uma duna. E agora venham-me buscar. Virão? Claro que não. Morrerei da espera, ou acordarei um dia tarde demais, ou amanhã a nuvem passa e chove uma água abençoada, ou a minha pré-formatação impõe-se e volto à busca, à vida. Não sei ler o futuro nas cicatrizes que me atravessam, sei que a solução não está no passado, mas sei que o futuro não é indiferente ao que levo de trás em mim. Mas hoje, não posso voltar atrás, não posso andar em frente, e assim deixo cair, frente a esse canto seco-seco que não molha, uma cortina de chuva que me desculpa o não avançar, porque não posso dar cabo do figurino. E recordo uma frase de uma das personagens que admiro - Coco Chanel: "true elegance is refusal". Twisted. As coisas que eu consigo misturar...

Em Letras

              



 

Bolhas

O sentido de auto-preservação é a primeira lei da natureza. Muito ao género do que chamei, lá muito (muito) atrás, o instinto de sobrevivência (engraçado reler este texto). É, de facto, incontornável a necessidade que temos de nos protegermos daquilo que nos faz mal, e inevitável também que, à luz da vivência que se vai tendo, deixemos ao comando do medo evitar “potenciais” situações de risco, mas também nem sempre sabendo identificar o risco - muitas vezes esquecendo que também "nos pomos a jeito" volta não volta. Na verdade, a auto-preservação é (mais do que um instinto), uma responsabilidade – no sentido em que, com maior ou menor sucesso, o ser humano deve caminhar na direcção da felicidade, do seu bem-estar, protegendo a sua integridade, tanto física como moral.

Mas, ninguém pode viver permanentemente num encapsulamento fictício que o afaste de todo o perigo; porque viver é perigoso, amar é perigoso, mas não querer expor-se a esses perigos resulta em não viver, em não amar. Resulta numa bolha de inércia e esterilidade que, perversamente, periga a própria sobrevivência.

Penso, até, que é por causa desse sentido de auto-preservação, de instintiva luta para nos salvarmos, que os obstáculos e dificuldades com que nos deparamos na vida, embora sejam em si “perigos”, são para nós elementos fundamentais de sobrevivência. De facto, além de nos ensinarem a reconhecer iguais perigos à frente, é essa luta por ultrapassá-los que nos impele a agir, a crescer, a melhorar, a realizar, concretizar. Muitas vezes, é a dificuldade do caminho que nos faz chegar ao destino. Pelo meio, claro, reconhecemos também fundamental, vital, acompanharmo-nos de outros, como os amigos. Mas, para fazer o caminho, precisamos tanto dos amigos e das ajudas, como dos inimigos e das dificuldades.

E no amor? No amor, as linhas são mais ténues, as fronteiras são mais permeáveis. É muito mais difícil perceber de que lado está o perigo, onde devemos refugiar-nos, a que destino queremos chegar. Podemos achar que vale tudo para alcançar o amor, e ficar pelo caminho num destroço, porque a busca nos destrói. E podemos, pelo contrário, achar que nos salvamos fugindo das lágrimas e das mágoas, para isso fugindo também do amor. Mas, nessa fuga, também nos selamos herméticos, estéreis, dentro de uma, afinal, muito frágil bolha de sabão.

São dúvidas senhores, são dúvidas…

Mercado sentimental

"You can't put a price tag on love", sim, mas... às vezes, sabemos que pode custar demais.

Geralmente, sabemos que apostar no amor pode custar umas angústias e umas lágrimas. Mesmo assim, o que de bom se viveu, ou se perspectiva viver, é quase sempre benefício suficiente para acharmos que vale a pena - que essas angústias e lágrimas são um preço justo por termos tentado. Como bem resume Antoine de Saint-Exupéry, autor que muito me diz, “A gente corre o risco de chorar um pouco quando se deixou cativar...”. E embora correr esse risco nem sempre seja fácil, é um risco aceitável para a maioria de nós. Já quando sabemos que esses hipotéticos bons momentos podem custar muito mais do que umas lágrimas - aí, tal como refiro no post anterior, a avaliação da relação custo-benefício torna-se duvidosa.

Como avaliá-la, por exemplo, se um eventual amor puder custar uma amizade? É que, em certas equações, para além do preço normal de nos apaixonarmos, ou de nos deixarmos cativar, a amizade, o carinho, o respeito de e por outra pessoa, mais do que um preço, tem um “valor”, resultado de um investimento que já se fez. E arriscar perder o retorno desse investimento, para apostar numa aventura às cegas que, podendo trazer uns bons momentos, nos pode também deixar sem amor e sem amizade, e com as lágrimas e mágoas do costume de parte a parte, parece-me – claramente -, um preço caro demais. Ou um benefício curto demais.

Diz que tudo depende da lisura do processo, da maturidade, inteligência e sensibilidade de ambas as partes. Talvez. Mas, se acredito que de um amor falhado pode resultar uma amizade, acho pouco provável que de uma amizade de que resulta um amor falhado, seja possível ressuscitar a amizade inicial. E, antes disso, a ideia de uma mágoa infligida a outro a quem queremos bem, ou a perspectiva de um ressentimento que nos fique desse alguém, é suficiente para obrigar a pensar pelos menos duas vezes antes de dar um primeiro passo. Acho que, neste mercado sentimental que gerimos sem licença, esta é a operação de maior risco que nos pode ser pedido que avaliemos. Para uma operação destas, mais que simples capital, pomos em jogo um dos patrimónios mais valiosos que temos: um amigo.

Tudo tem um preço

As pessoas também. E às vezes achamos o preço dos outros demasiado alto, como os outros podem achar o nosso. E - claro - também há aquelas pessoas que só nos querem a preço de saldo, ou em quem só contemplamos investir em época de preços baixos. E, ainda, há quem queira e se queira sem olhar ao preço. A bem da verdade, também é um facto que fazemos descontos a alguns.

Ao contrário da maioria dos investimentos, salvo alguma imensa sorte, geralmente aqueles que nos custam mais são mau negócio. Embora ache que é necessário investir para fazer durar e significar um relacionamento, o custo tem de ser baixo. Porque se achamos que o preço é muito alto, é porque achamos que não compensa: a percepção do preço é sempre resultado da avaliação custo-benefício. Ou seja, se o achamos alto, é porque achamos que o benefício é fraco. Podemos investir muito, sem que isso nos custe muito, e então sim - é um bom negócio. Não me parece que um relacionamento, seja de que espécie fôr, tenha de custar. Tem é de valer o preço.

Pago o preço

Finalmente, de ontem também me ficou uma dor nas costas, e um peso na consciência, porque saí de lá quase à 1 da manhã, com o miúdo mais que rabugento e podre de sono, que naturalmente adormeceu pelo caminho, que tive de acordar para andar do carro à porta do prédio (sob tremendo protesto), e que não tive outro remédio se não carregar pelas escadas acima. De vingança, como qualquer criança que se preze, hoje não me deixou dormir grande coisa de manhã apesar da hora a que se deitou, e agora está ferrado a dormir uma sesta, coisa que não fazia há largos meses, e que me vai fazer pagar com o atraso que vai causar à normal hora de deitar. Mas é um preço que pago de bom grado, porque tudo na noite de ontem me soube muito bem.

Revelações II

De resto, da noite de ontem, ficou-me também a admiração por alguém que abre generosamente as portas da sua casa a quem mal conhece, simplesmente porque gostou desse alguém. E um pé atrás por ser uma pessoa que admite claramente que ou gosta ou não gosta dos outros, e que se não gosta não perde tempo. Algo que me levou a pensar, mais uma vez, se não será demasiado redutor recusar aqueles que não têm o dom de nos atrair ou impressionar de imediato. Porque há alguém que, de tempos a tempos, após uma total desinteresse inicial, me faz curiosa de entrar mais, deixando escapar pequenas revelações que ora me intrigam, ora esclarecem, ora me me enternecem, ora quase me entristecem. E que perduram, por exemplo, quando sob um pretexto de circunstância, a sua mão procura a minha, envolvendo-a em voltas suaves durante um estranho minuto, mas que não me dá vontade de largar. E que depois me deixa a congeminar frases recorrendo a expressões como talvez, se calhar, quem sabe?

Ou talvez também seja porque detestava inicialmente uma das minhas melhores amigas - a que trago no coração há mais tempo e que resiste sempre apesar de algumas mágoas. Era recíproco, até um dia termos partilhado um desabafo que, insolitamente, desencadeou uma imediata compreensão recíproca, e num repente nos fez mostrarmo-nos por dentro uma à outra. E, como que em espelho, reconhecemo-nos o fundo, o que nos levou rapidamente a firmar um laço profundo.

Por isso acho que, embora eu também seja muito intuitiva e imediata nas empatias que estabeleço, também não sou totalmente incapaz de aprender a gostar de alguém. Num contexto de amizade ou até num contexto amoroso. E acho, também, que isso é resultado de não ser completamente inflexível, de ser capaz de admitir erros e mudar de opinião, e ao mesmo tempo capaz de perdoar ou tolerar diferenças. Alguma coisa me diz que, quem não é capaz de dar uma oportunidade a outro só porque a empatia não é imediata, também não será muito tolerante à incontornável necessidade de adaptação ao outro ou de eventual perdão de momentos menos edificantes. Gosto pouco de surpresas, mas as que são positivas sabem sempre tão bem que acho, ainda muitas vezes, que devemos dar-lhe uma hipótese.   

Revelações I

Da óptima noite de ontem, fica-me uma descoberta surpreendente: os homens acham que nenhuma mulher poder ser sexy dentro de um vestido de noiva, e não entendem essa nossa coisa de achar que podemos ficar o máximo dentro de uma "tenda", "ainda por cima branca", cheia de folhos, rendas ou laços, ou tudo junto dependendo do mau gosto. Como sempre, esta revelação de pouco me adianta, pois não tenciono voltar a casar. Mas acho que estes espécimens em concreto, viram poucas noivas, e falta-lhes imaginação para pensar no que vai por baixo dessas "tendas". Estranhamente, todos os defensores deste ponto de vista são divorciados. Estranhamente, mesmo as mulheres divorcidas não conseguem disfarçar o quanto um vestido de noiva carrega, ou encerra por dentro, em cada prega, folho ou renda cuidadosamente, amorosamente, credulamente escolhidos. É um símbolo para as mulheres, que retorcidamente pensamos que nos espelha por fora tudo o que sentimos que encarnamos ao vesti-lo, e por isso achamos que nos torna lindas. É simplesmente um objecto para os homens, que ainda por cima esconde dentro aquilo que realmente lhes interessa. Há coisas em que os homens são cruelmente práticos, friamente racionais, e estranhamente inimaginativos. 

Hoje

Eu amo tudo o que foi
Tudo o que já não é
A dor que já não me dói
A antiga e errónea fé
O ontem que a dor deixou
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia.

(Fernando Pessoa)


E assim se pode avançar. Certo. Só é preciso que já não doa. Todos os dias, pelo menos.

Coisas em que os livros me deixam a pensar






Uma história de amor não correspondido, uma história de amor desencontrado, adiado, uma história de amor que deixa corações partidos, orgulhos feridos, uma história de amor com detalhes sórdidos, momentos tórridos, uma história de amor com lágrimas frias, com mãos vazias, não deixa nunca de ser uma história de amor.

Talvez, até, estas sejam as únicas histórias de amor puro.

Uma mão cheia


Uma mão cheia dele. De cinco anos de sorrisos e lágrimas, muita angústia, mas também muitos abraços, apertados, quentes, sentidos. Parabéns ao meu pequenote já tão grande, mas que ainda me salta para o colo e me faz ninho, enrolando os seus braços à minha volta. A pequenina pessoa que me enche de tanta coisa, e que me significa, no que de melhor deixo no mundo. A única mão cheia da minha vida. Abençoado seja.

Nem de propósito, mas muito a propósito



"Que esta minha paz e este meu amado silêncio
Não iludam a ninguém (...)
Acho-me relativamente feliz,
Porque nada de exterior me acontece
Mas, em mim, na minha alma,
Pressinto que vou ter um terremoto."

(Mário Quintana, encontrado aqui)

A esta minha paz e silêncio ilusórios, a esta relativa e aparente felicidade morna, chamaram um dia "o meu sorriso de Mona Lisa". Tenho-o cristalizado por estes dias, enquanto procuro alguma coisa onde me agarrar, antes de ser sacudida pelo abalo interior que se avizinha, esse que pressinto, enquanto a tristeza melancólica das minhas ondas de maré vazia se vai transfigurando. E muitas coisas, tantas coisas, ganham para mim, nestas alturas, contornos diferentes. São dias de conjectura, de "e ses", para trás e para a frente, tentando talvez iludir a vida, como se, ao dissecar e re-equacionar os factos, as memórias, os  sentires, procurando formar com eles um padrão diferente, conseguisse um outro resultado final. Mas a equação não muda de significado se mantém os mesmos factores, mesmo que os ponderemos de forma diferente. E depois, por outro lado, há exercícios que não devemos fazer, há cenários que não se podem projectar, porque há factores, personagens, que não devemos pôr em cena, sob pena de nos termos de retirar. E um dia treme o chão, e podemos ver claramente o que não tem alicerce, e podemos ver claramente o que não abala, podemos ver-nos claramente o tutano. Enquanto esse dia não chega, resta a espera, por vezes em fuga.

Melancolia

A minha melancolia é uma maré vazia. É um ciclo em que o meu mar retrai, deixando fora da linha do horizonte a sua imensidão, deixando longe as fortes vagas, a brava espuma. É uma maré que apenas deixa chegar à praia pequenas ondas, frágeis, cansadas, que varrem a areia com lentidão e tristeza.

A minha melancolia é uma mão vazia. É uma solidão, uma ausência, é cinco dedos que nada tocam. Dedos sem sentido porque nada lhes exige a força e o engenho de segurar ou amparar. É uma mão que não passa calor nem expressa sentimentos, que apenas se move, vagarosa e fria, ao som do silêncio.

A minha melancolia é uma estranha nostalgia. É uma saudade do que foi e do que ainda não foi, numa mistura de tempos e realidades. É um desejo de passado e uma saudade de futuro. É uma nostalgia doce das dores que já sofri, e um sofrimento nostálgico pelo que ainda não vivi, que me cala a voz e me fecha num tempo que não existe.

I Dare...

Costumo dizer, em jeito de desculpa, que certas coisas me gritam "Try me!" por detrás das montras das lojas, (ou por detrás de outras barreiras que agora não vêm ao caso), e o que é que eu posso fazer?... São aquelas coisinhas que estão mortinhas por virem comigo, que estão mesmo a "pedi-las", ali tão à mão de semear e tudo, e que sei que posso ter, e que sei que é fácil, e então faço-lhes o jeitinho. Mas, muito raramente, tal como certas pessoas, há coisas que simplesmente me sussurram, descarada e desafiadoramente, que não pedem humildemente que as experimente, que as leve, que as escolha - essas outras danadas perguntam-me antes, com um piscar de olho, "Do you dare?..."

Ai os desafios, as dificuldades, a adrenalina do perigo, da experiência do menos convencional... Atrevo-me? Não me atrevo? Aceito o desafio? Não aceito?... E depois, claro, não resisto. Não suporto que alguma coisa se insinue boa demais para mim, ou que eu não estou à altura, ou - pior - que me falta coragem. Isso... bom - isso dá-me cabo dos nervos e é até capaz de me enviesar o raciocínio. E quanto mais difícil mais quero, e quanto mais inatingível mais luto, e não és Princesa não és nada, se não consegues calçar uma coisinha assim!...

Se me vou arrepender? Pois pode ser que sim. Mas estes não ficam na caixa, disso tenho a certeza, porque mesmo que seja só uma vez, um dia sei que acordo com aquela louca necessidade de mostrar ao mundo, e a mim própria, que posso ser o que quiser, que sou eu que decido o que me serve, e tenho o que quero ter. Porque há poucos desafios que eu não enfrente, mas não recuso os desafios de mim própria - que esses eu sei que posso vencer, e os outros, há que reconhecer, por vezes não chego para eles. Por isso, I dare, sim senhora... I dare myself, nem que seja por um simples par de sapatos! Há que praticar, e de preferência com coisas simples.