Estranho Silêncio

Todos temos os nossos limiares, os nossos limites. Medidos pela resistência e elasticidade das nossas emoções e capacidades. Há um ponto onde o esforço é simplesmente demais, e ou a corda não resiste e parte, ou não estica mais e nos pára, quando não nos atira para trás em desiquilíbrio, num movimento de chicote.

Tenho sentido essa corda no limiar. O limiar da dor, do desconforto, da tristeza, da saudade, da frustração. Tenho tentado abstraír-me do mau ao longo das últimas 3 semanas, a pensar sempre que mais um bocadinho e isto acabava, ía-se o gesso, tinha o meu filho de volta, regressava ao trabalho, e tudo voltava ao normal. Esticava a corda com fé, com esperança, e com mais ou menos analgésicos. Mas os últimos dias trouxeram uma nova vaga de coisas más e tristezas. Por isso não me apetece escrever e já o post anterior foi escrito numa enorme tristeza, e apenas de marco.

Estou assim. Como um jardim abandonado que a natureza encarregou de tornar selvático. Escuro, na desordem do crescimento descontrolado das plantas. Triste, no abandono da luta e do esmero do jardineiro. E custa pegar nas ferramentas para lhe pôr ordem outra vez e permitir que a luz ilumine o chão, porque é uma tarefa árdua para a qual, neste momento, me faltam as forças.

Estou vazia de força e de linhas, num silêncio ensurdecedor de palavras soltas que não se querem conjugar. Agora, não consigo escrever a minha alma. Fui para lá do limite.

O fim de uma Senhora especial


Apagou-se esta madrugada. Acabo de saber. Estava em sofrimento já há dias, e há uns anos que já não vivia – existia num estado vegetativo, sem contacto com o mundo, que me revoltava e que me fez desistir de a visitar. Primeiro senti tristeza, depois também alívio por ela. Já merecia descanso, ao fim de mais 90 anos de existência e desta recta final tão pouco dignificante. Era uma sobrevivente, agarrada à vida, que suportou muita coisa sem nunca perder o sorriso e a compostura de uma verdadeira Senhora, enquanto podia sorrir. Era afectuosa, carinhosa, brilhavam-lhe os olhos nas minhas visitas dos tempos em que ainda sabia quem eu era. Tenho memórias dela desde a infância à idade adulta. Lembro-me que foi ela que me acompanhou e tomou conta de mim aos 12 ou 13 anos, quando estive 2 semanas isolada num quarto por causa de uma doença. Lembro-me das tardes na infância, demoradas e encantadas, que passei na casa dela, às vezes sozinha, outras vezes com as minhas irmãs, em que vestíamos as roupas antigas dela, os chapéus e as luvas compridas, os sapatos de salto alto onde nos cabiam dois pés, e ela ria, ria connosco, numa alegria tão genuína. Lembro-me dela sentada comigo e com os albuns que mostravam o seu percurso de vida, contando as histórias que viveu nos países por onde passou, as viagens, o marido que perdeu muito cedo, que ainda me conheceu mas de quem eu já não tenho memória. Lembro-me da mão dela a passar sobre aquelas fotografias com uma ternura e uma saudade que, na altura, eu não podia compreender. Lembro-me dos postais que guardava de quando andou por outras paragens, num tempo em que as palavras voavam ou navegavam em papeis e não no éter do espaço cibernáutico. Lembro-me de, na adolescência, me mostrar todas as cartas, desenhos e postais que eu criança lhe tinha enviado, nas férias ou apenas por saudade. Lembro-me da forma como olhava para mim adolescente e de um dia resolver que eu já era uma senhora. Lembro-me das conversas e dos mimos todos que me dava. Das comidinhas que fazia de propósito para mim por serem as minhas preferidas. Dos fins de semana que passava em casa dela, tratada mesmo como uma princesa. Lembro-me do orgulho com que apresentava às amigas. Lembro-me dos cafés onde tomava um carioca escaldado. Lembro-me da gentileza com que tratava toda a gente, apesar de ter uma personalidade fortíssima e ter as suas manias incompreensíveis. Lembro-me que era acarinhada por todos nas redondezas. Lembro-me, lembro-me, com saudade, tanta saudade. Estou triste nesta saudade, que já não é de hoje, mas que agora se instala definitivamente num tempo acabado. Boa viagem. Mas que saudade.

Só para que conste...


... estou farta de hospitais.

E tenho muito maus sentimentos e desejos para o piiiiiiiiiiiiiiiiiiii do enfermeiro que, como se não bastasse tudo o resto, me rebentou uma veia. E mais não digo.

No dia em que te encontrar


Um dia vou ver-te chegar. E tu vais ver-me e entrar. Um dia trocamos um sorriso e prendemo-nos num olhar. Um dia saberei de que côr são os teus olhos e de que brilhos se faz o teu sorriso.

Um dia oiço a tua voz. Como queria ouvi-la... A minha dizem que é doce. Como será a tua? Um dia bebo a música das tuas palavras e revelo-te as minhas noutra melodia. Quero conhecer-te todas as cambiantes e subtilezas do som, até nos murmurarmos ao ouvido.

Um dia sinto-te a pele e deixo-me tocar. Descubro os teus caminhos e tu fazes o meu mapa. Um dia damos as mãos e acertamos o passo. Um dia desperto pelo teu cheiro e inundo-te com a minha fragrância. Um dia cabemos num abraço.

Um dia chego-te à alma e tu ensopas a minha. Conjugamos ser feliz e amar.

Um dia descubro-te. Um dia completo-me. Tudo isso no dia em que te encontrar.

Precious moments

Recebi um DVD do colégio do miúdo, que vi com ele no colo, de visita, em grande animação. Confirmei as suspeitas de que o L. é mesmo um pilantra, e pela amostra creio bem que ainda vou ser intimada a ir falar com muitos professores... Fiquei a saber que a melhor amiga dele no início era a B, mas agora é o Z, que ele é que disse que o pica-pau é um pássaro (aula de música), que a ginástica é “bué da fixe”, que não se cala um minuto também na escola, sobretudo às refeições apesar de ser o primeiro a acabar (nunca lhe faltou apetite a não ser se estiver doente!), e que quando crescer quer ser... “grande”!!!

Diverti-me com o filme e com os comentários dele a relatar-se sempre que aparecia, mas adorei tê-lo aqui no colo, numa autêntica sessão de mimo. Virou bebé assim que entrou a porta, foi procurar a chucha e tudo, obviamente carente. Depois de muito cafuné e muitas declarações de amor, passou-lhe e lá entrou no ritmo alucinado normal de espalhar confusão e barulho. Encheu-me a casa, e encheu-me a mim.

Estas visitas são poucas e curtas, mas deixam-me sempre melhor e sempre com uns momentos especiais. Na 3ª feira foi à despedida: com um ar muito sério, depois de já andar a engonhar há não sei quanto tempo, com o pai no patamar à espera, vira-se para mim e diz-me, num tom para lá de paternalista, “se a mãe precisar de alguma coisa de mim, liga para o pai que ele vai-me logo chamar!”. E hoje foi com a minha empregada, que queria levá-lo com ela ao supermercado (programa que, geralmente, adora), e lhe diz que não, que “a mãe precisa de ficar com alguém, por isso eu fico a fazer companhia à mãe”.

O meu filho é um pilantra e às vezes dá comigo em doida, mas é um doce de miúdo e consegue adoçar-me de uma forma única, com cada sorriso e cada abraço, e cada um destes momentos preciosos. É uma brisa boa, mesmo quando só passa aqui a correr, e mesmo deixando um rasto de confusão, porque continua depois a envolver-me num embalo tão bom.

Brisas

Hoje corre uma brisa. Uma brisa fresca. Gosto de brisas a passar, não de grandes ventanias. Esta brisa percorre a casa arrefecendo-a, libertando-a do torpor do calor que a encheu demais nos últimos dias. Esta brisa traz outros sons à casa, a começar pelas janelas a bater levemente, de vez em quando, anunciando a sua passagem.

Também nós passamos na vida como brisas. Damos sons e mudamos temperaturas às casa por onde passamos. Às vezes as brisas passam mais fortes e talvez deixem uns estragos. Sei que já deixei alguns e também apanhei já muitos cacos de umas brisas desabridas que por aqui passaram. Às vezes, ocorre-me, trazem fragrâncias. Assim passaram algumas por mim, em fragrâncias que ainda recordo. Brisas de mar, brisas de flores, brisas de terra e outros sabores. Tocam os outros à passagem, às vezes podem envolvê-los. Já gostei de ser envolvida em brisas mornas e recordo outras que me arrepiaram, ou me despentearam.

Mas as brisas passam, breves, e não voltam. Não se pode prender uma brisa, não se pode mantê-la a soprar por nós nem pelos nossos lugares. A brisa corre enquanto quer, toca e envolve quem muito bem entende, e perfuma quem escolher. Não adianta insistir, implorar, fechar a janela. Que a brisa vai, quando tiver de ser.

Vou passar a lembrar-me disto. Abrir janelas às brisas e usufruir melhor de cada uma que passar. Esta que passa hoje sabe-me bem. Esta brisa veio para mim e esta noite adormeço sem pensar, e durmo bem.

Espelho meu

Há um reflexo no espelho à minha frente. Ali está a imagem de mim. Redescubro os meus traços e contornos. Era menina de sardas, agora mulher madura. As sardas estão lá ainda, menos óbvias no rosto. A menina ainda brilha nos olhos. A mulher vincou-se em algumas pequenas rugas de expressão. São marcas do que ri e do que chorei. Do que vivi, intensamente. Apanho o cabelo para me olhar melhor. Já fui adolescente, depois projecto de mulher, com o cabelo muito curto num impulso de rebeldia. Ficava-me bem, lembro-me. Mas a minha avó chorou - adorava o meu cabelo. Solto-o e sinto-o envolver-me os ombros e cair até quase meio das costas despidas. Gosto do meu cabelo assim, bastante comprido e solto, caido numa leve revolta, não rebelde. Observo o meu corpo que já adquiriu um leve tom de Verão. Nunca bronzeia, apenas doura. Continuo a ver-me tão menina, talvez pela magreza de que sempre fui vítima. Já foi demais, já foi tormenta. Hoje é a certa para mim. Há quem a inveje e quem me queira fazer engordar. Eu gosto assim. Sortes e destinos. Penso em equílibrios divinos. Mais disto, menos daquilo. Hoje percorro as minhas curvas, que já não são de menina franzina nem de adolescente espigada. Também têm algumas marcas do meu percurso de mulher. Uma cicatriz de mulher feita mãe, num ventre que adquiriu já contornos tão diferentes para gerar vida e para a soltar se cortou. E fica a marca, cada vez mais ténue, cada vez mais minha, e o desenho da cintura voltou. Como é espantoso. Curva de destino. Apesar de tudo, reconheço ainda o meu corpo, mantenho até as mesmas pernas que não parecem, ainda, querer envelhecer. Sorte ou azar. Estes são os caminhos que os meus homens percorreram em mim, com os dedos por cabelos ora curtos ora longos, por esta pele ora branca ora dourada, ora antes ora depois de cada ruga e cada cicatriz. Engraçado, parece-me que nos sentimos mais no toque dos outros. O tacto dos outros desenha-nos, faz-nos sentir a existência da pele, materializa-nos os limites do ser. Como também nos vemos tantas vezes pelos olhos dos outros, e tantas vezes nos perdemos por nos significarmos apenas aí. Hoje o espelho é os meus olhos, penso. As minhas mãos, os meus dedos, o meu próprio sentir de mim. E olho-me, e sinto-me. Desenho-me e delimito-me. E sorrio. Não é perfeito o meu rosto, nem o meu corpo. Mas eu gosto de mim assim. Tenho-me ali no espelho, todos os meus antes e depois, e só eu me tenho sempre a mim. Vesti a minha pele.

No tempo dividido


As horas passam lentas, demoradas. Dias, manhãs frescas, tardes quentes, crepúsculos de promessa de noite. Luz coada pelas janelas da casa e de mim, rodando a sombra ao longo das horas. Noites compridas ainda quentes, madrugadas lentas mais frescas. Dia e noite, manhã e tarde e madrugada. Idas e vindas esporádicas, para manter a sanidade de saber respirar um ar de liberdade. Vou e venho, enquanto o tempo passa sem eu ver. Melhor quando me foge assim. Fico entretanto e espero, enquanto vejo o tempo passar. Compassado, lentamente. Mas fugindo a cada momento. Cada agora é um segundo que já foi, já passou. Em alternâncias de divisões, em antes e depois.

“E agora ó Deuses que vos direi de mim?
Tardes inertes morrem no jardim.
Esqueci-me de vós e sem memória
Caminho nos caminhos onde o tempo
Como um monstro a si próprio se devora.”

De Sophia de Mello Breyner Andresen, num livro de 1970, 2ª Edição de “Antologia”, que tenho naquele papel velho e amarelecido pelo tempo e por todos os muitos olhos e mãos que já o percorreram. Cheira a todas as casas por onde passou, a todos os tempos a que sobreviveu. Guardo-o com muito carinho. Tem uma dedicatória de Sophia a uma das minhas tias, que mais tarde me legou mais do que o livro - deu-me a poesia que eu sempre busquei, a que volto de vez em quando para me perder e encontrar, sem tempo.

Diálogos Crípticos II


- Aquela luz é vermelha.
- É vermelha, sim. É bonita.
- É uma côr demasiado forte, é cruel.
- Vermelho é morangos, é flores e alegria.
- Vermelho é sangue, dor e agonia.
- É intenso, sim, mas bom. É uma boa côr.
- Para mim, vermelho é morte.
- Credo. Para mim é côr de amor.
- Pois. Cruel, e demasiado forte.

Vai


Fumo um cigarro. O último cigarro de ti. Não te volto a tragar numa inspiração que traz à minha boca o teu sabor, ao meu peito aquele tremor invasivo mas que me preenche. Não volto a sentir-te de olhos fechados num exalar de fumo que me acalma os sentidos. Abro os olhos sempre para rever no fumo do cigarro as imagens de nós que se me impregnaram na alma. O meu vestido era verde naquela noite de finalmente. Lembras-te? Seda verde esmeralda que escorreste pela minha pele. A minha pele muito branca, em contraste com as tuas mãos morenas. Será que te lembras? Mais uma passa deste cigarro a relembrar as tuas mão por mim. Dançamos tanto, a química era poderosíssima. Amamos o mesmo poema que mais ninguém sentiu daquela forma intensa. Foi explosivo, desde o primeiro instante. Lembras-te? Foi um tumulto, emocional e físico, a dança, os olhares, os beijos. Foi mais forte que eu em tudo. Não sei de onde me veio aquela determinação de não te largar, de não querer que as tuas mãos se afastassem de mim, não querer desprender-me do teu abraço. Sentiste? Tu também não te desprendias de mim. Tu também me procuravas, sôfrego, intenso, com os dedos cravados em mim num vincar de posse sem dúvida. Não era? Era, pois, era magia. Os beijos foram mágicos, sim. E tu soubeste quando me invadir, quando hesitei, num enlace total do corpo, com as tuas mão e boca por mim a sossegarem-me numa descoberta apaixonada, tudo a dizer-me que realmente me querias, e eu a sentir e mostrar-te o quanto te queria também. Tu sabes, soubeste sempre.

Mas a vida tem vertigens e abismos. Depois de tanto arrebatamento, a dúvida. A insegurança, um fantasma a tomar-me. Num repente. E tu a olhares-me. E eu a fugir, para longe, muito longe, bem dentro de mim. E tu não querias seguir-me. Eu sei. Era um abraço, sabes? Eu acho que sabes, sim. Porque sabes que fugi de ti, porque sabes que eu vi. Tu não querias seguir-me, porque esse caminho não era de corpo, não era de pele. Nesse repente, o que era mágico de tão inexplicavelmente bom transformou-se em absurdo de tão assustadoramente inexplicável. Chamamos-lhe depois estranheza. Sem porquês. Depois mostraste desejo. Senti de novo as tuas mãos por mim, aquela forma de me agarrares, de me tomares por tua, a que eu não resisto. Mas nunca pode ser mais que isso, porque nos prendemos para sempre naquele momento mau, fechamo-nos naquele repente, instalamo-nos na estranheza. Sem futuro. Num repente. E tu sabes, sabes sim.

De repente, acaba o cigarro. Tem existência curta, arde num instante. Como nós. A mim deixou-me um cancro, a ti uma beata no cinzeiro. Ando a lutar pela cura e cada cigarro que fumo de ti intoxica-me. Porque os fumo? Porque és um vício que me consome. Mas hoje chega ao fim. Exalo-te uma última vez. Vai. Vai nesse fumo que se dispersa. Vai assim, desvanece-te. Não me levantas mais os pés do chão. Não és mais o homem, as mãos, a boca. Agora, foste fogo, foste inspiração de prazer, foste doença e vício, e és finalmente uma alma que se foi em fumo e um corpo no cinzeiro. Não te quero pelo que tive de ti, nem mesmo na sensualidade das memórias em espiral de fumo azul. Não quero a beira do abismo, não quero a vertigem, não quero o sonho. Quero o real com os dois pés no chão, o todo, com fogo a arder, sim, mas num caminho de corpo e alma, que não posso fazer contigo, que não sabes fazer comigo. Não te quero por tão pouco. Porque eu sou mais. Porque mereço mais. Muito mais.

Love Hurts


Tudo de amor que existe em mim foi dado.
Tudo que fala em mim de amor foi dito.
Do nada em mim o amor fez o infinito
Que por muito tornou-me escravizado.

Tão pródigo de amor fiquei coitado
Tão fácil para amar fiquei proscrito.
Cada voto que fiz ergueu-se em grito
Contra o meu próprio dar demasiado.

Tenho dado de amor mais que coubesse
Nesse meu pobre coração humano
Desse eterno amor meu antes não desse.

Pois se por tanto dar me fiz engano
Melhor fora que desse e recebesse
Para viver da vida o amor sem dano.

(Soneto a Quatro Mãos, de Paulo Mendes Campos e Vinícius de Moraes)


Segue-se a Parte 6

(...)

Enquanto Sofia tomava o seu duche, umas ruas acima, Pedro estava de volta ao escritório, ao seu mundo. Era a hora em que muitos já tinham saído e os poucos que restavam se preparavam para o fazer em breve. Os telefones já não tocavam e o silêncio voltava gradualmente a encher o espaço. Fechou a porta do seu gabinete onde só se ouvia o trânsito da avenida, ainda em hora de ponta, que chegava ao 7º piso através de boas janelas de vidros duplos, por isso já bastante abafado. Sentou-se e voltou-se para a enorme vidraça, que raramente contemplava, e recapitulou os acontecimentos da tarde, enquanto as luzes dos carros se moviam lentamente no lusco-fusco do fim do dia e tomavam conta de lhe manter todo o resto do cérebro dormente.

Que mulher aquela... Sabia tão pouco dela e tanto ao mesmo tempo. Que vontade que tinha dela. Quase explodira com aquele beijo ardente. Relembrava o primeiro contacto, o primeiro toque dos lábios dela, a surpresa agradável de os encontrar à mesma temperatura dos seus, a boca dela húmida e moldável à sua boca, receptiva e responsiva à exploração da língua, e à pressão dos lábios que se tinham encontrado com força e procura equivalentes. Sentia um frio na base do estômago e sentia a resposta do seu corpo à recordação daquele momento quase como se o revivesse. Sentia-lhe o sabor.

Esfregou a cara com as mãos, como fazia sempre que precisava de se impor auto-controlo, sobretudo quando o desejo por uma mulher explodia, o que se tinha tornado raro, raríssimo. Tinha repetido esse gesto muitas vezes por um longo período, uns anos antes, sempre por causa da mesma mulher, e isso não lhe trazia boas recordações. Sentiu de novo uma certa inquietação de perigo. Mas ao mesmo tempo queria mesmo voltar, como prometera, precisava de entender o porquê daquela atracção por uma desconhecida que lhe falara de almas. Almas... Ao tempo que sequer pensava em coisas tão metafísicas, quanto mais articular frases como a que lhe tinha dito. E lembrou-se da sua frase, palavras suas a supreendê-lo. “ A minha alma está há muito vendida para se manter em silêncio”. E era mesmo.

Na sua mesa estavam as fotografias que o tinham nauseado, diversos processos e inúmeros recados em post-its amarelos. O ecrã do computador, que tinha ficado ligado, voltou à vida ao seu comando, revelando-lhe vários novos emails dessa tarde na Inbox, muitos marcados como urgentes. Decidiu nem olhar para os papeis, nem para os emails. Pegou no telemóvel que tinha deixado para trás na urgência de sair umas horas antes, e viu que tinha também várias mensagens e chamadas perdidas. Desligou o computador e resolveu que tinha de ir à procura dela. Saiu determinado a voltar ao hotel e esperá-la.

Enquanto descia no elevador, ia crescendo nele a excitação da antecipação de a ver de novo, de tocá-la, de beijá-la, e crescia a adrenalina por aquela sensação de desafio, de perigo. Deu consigo a sorrir. Nem reparou no Segurança que lhe dizia aflitivamente “Sr. Doutor, olhe que...”. Respondeu um automático “boa noite” enquanto saía para a rua, para ser assaltado por um bando de jornalistas, e encadeado pelos holofotes. Estava perante câmaras de directo, no meio de uma balbúrdia de perguntas de que não conseguia fazer sentido.

Não tinha lido os recados ou os emails ou os post-its. Não tinha recebido as chamadas nem ouvido as mensagens do voice mail. E agora percebia que havia desenvolvimentos no caso que aceitara dias antes e estava em directo para o mundo, exposto como conivente numa história que sempre tinha sido sórdida, mas que era agora publicamente escandalosa.

Desembaraçou-se dos jornalistas o melhor que pode sem responder a perguntas, com a cabeça a explodir e o coração a bater a um ritmo pouco saudável enquanto se dirigia apressadamente à garagem onde estacionara o carro. Trancou-se e instintintivamente dirigiu-se à segurança da clausura da sua casa. À porta havia mais jornalistas, mas o acesso à garagem fazia-se pelo portão automático que se fechou deixando a confusão lá fora.

Entrou em casa transpirado, já com o nó da gravata desapertado, e enquanto desabotoava o colarinho dirigiu-se de imediato à sala onde se serviu de um generoso whiskey. Deixou-se cair no sofá, exausto e com uma sensação terrível de estar a viver um pesadelo repentino. Sabia que devia ouvir as mensagens e ler os emails e meter mãos à obra para conter os estragos e proteger o seu cliente. E no entanto, não o queria fazer. Pela primeira vez em muitos anos, sentia-se contaminado pelo caso que aceitara, pelo cliente que representava.

Era óbvio porquê. Só pensava nela e se saberia, o que pensaria dele depois de saber. E incomodava-o o que ela pudesse pensar. Sentia vergonha. E medo de a perder.

Deambulou pela sala a tentar desacelarar a vertiginosa velocidade do seu pensamento, a debater-se com a imagem dela tal como a vira naquele primeiro instante, a reviver o beijo, a senti-la ali mesmo nos seus braços, a ver-lhe os olhos verdes mergulharem por ele adentro. Até à alma, que ele agora sentia mas sabia escura. Apetecia-lhe gritar de raiva. Porque é que isto tinha de acontecer? Naquele preciso momento em que, por algum desígnio misterioso, aparecia alguém na sua vida a devolver-lhe a consciência e a acordar sentimentos e sentires esquecidos, a fazê-lo sentir-se humano? Turtuoso destino.

Sabia que esta era uma encruzilhada difícil da sua vida e que tinha de tomar uma decisão importante. Decidiria com a razão ou com o sentimento? Queria o quê para si, por si próprio? Deitar a perder uma brilhante carreira de advocacia e perder uma invejável carteira de clientes? Ou perder a hipótese de se sentir humano outra vez, digno do ar que respirava e do chão que pisava, e dela?

Calculou que os jornalistas se tivessem ido embora e resolveu chamar um táxi. Ía procurá-la, explicar-lhe e dizer-lhe que abandonava o caso, que não queria voltar a ser aquele homem. Ía beber dela a redenção e afogar-se na pureza da alma dela para reencontrar a sua. Ía voltar ver o mundo com o olhar limpo da imundice em que se tinha deixado prender ao longo dos anos. Ía por um novo caminho de paz. E o caminho no táxi foi feito em silêncio de contemplação da cidade que redescobria, no resenho dos prédios e as suas janelas iluminadas em padrões do acaso, no traçado das estradas que percorria e nas gentes que ainda se viam pelas ruas. Cada vez mais próximo do destino, cada vez mais próximo dela.

Chegou ao hotel e dirigiu-se à Recepção para a chamar. Só nessa altura se apercebeu que não sabia o seu apelido, apenas o nome próprio, Sofia. Por um instante, assaltou-o a dúvida. O que estava a fazer era uma loucura, era perigoso. Mas sentia a força de algo maior que ele próprio e pulsava-lhe nas veias a determinação de lutar contra tudo e contra todos para seguir aquele caminho. O empregado reconheceu-o e, antes que pudesse fazer a pergunta que não sabia como fazer, disse-lhe:

- A senhora saiu. Deixou o hotel há cerca de meia hora.

- E não sabe se demora?

- Se demora? Não, ela não volta hoje com certeza! A senhora fez mesmo check out. Disse que tinha uma emergência e que tinha de voltar mais cedo. Cancelou o resto da estadia e nem se importou de ter de pagar uma taxa. Eu até nem queria cobrar-lhe, coitada, e até era uma senhora tão simpática. E educada. Olhe que hoje em dia já é raro encontrar alguém assim, e digo-lhe que neste ramo conhece-se muita gente...

Pedro sentiu-se gelar às primeiras palavras do empregado e continuou a ouvir aquele discurso de quem não tem quem o ouça com a cabeça a latejar. Sofia fugira. Tinha a certeza que fugira dele. E ele não tinha como segui-la, como procurá-la. Mesmo fazendo uso da sua perícia e da vontade de falar do empregado, apurou apenas que tinha chamado um táxi. Não conseguiu que lhe desse o apelido ou a morada dela. Nada. Mas o empregado, ao vê-lo desesperado, tentou consolá-lo dizendo-lhe que ela tinha ido para a estação de combóios. Solícito, estendeu-lhe um panfleto de horários e Pedro agradeceu, pegou no panfleto e saiu à deriva.

(continua)

Preciso aprender a ser só

Diálogos Crípticos I


- Dá-me um abraço!
- Claro! Mas o que tens?
- Nada. Só quero um abraço. Assim apertadinho, de aconchego.
- Como nada? Ninguém quer um abraço assim só por querer.
- Eu quero.
- Pronto. Eu dou.
- Não. Assim não. Não me queres dar um abraço.
- Então? Claro que quero! Gosto sempre de te abraçar.
- Mas com razões. Não é a mesma coisa.
- Não?!
- Com razões é conforto.
- E sem razões é o quê?
- É amor.

Memórias curtas

Tu devias saber, que me fazias sofrer. Tu devias saber, tu devias querer saber. Dei-te tudo de mim, sabes? Era capaz de te defender contra leões. Era capaz de me erguer contra monstros e marés, para te proteger e para proteger o que tínhamos. Engoli a minha tristeza quase chorada quando descobri o que fazias, pelas minhas costas, não pensavas que eu sabia. Na minha mais pura ingenuidade, acreditei que não percebias como o que fazias me magoava. Não quis chamar-lhe traição, mas tu sabias que o era, ou não o terias escondido de mim. Era mais importante para ti, certamente, pensei eu, pois era para ti maior que nós e ofuscava-te o que sabias de mim, onde devias ter sido capaz de ver a verdade. Era tão maior para ti que até me maltrataste com palavras injustas, que eu chorei em silêncio, até te amansares e pedires desculpas. Eu engoli, eu finji, eu escondi, eu fiz de conta que não era nada. Dei-te espaço, pensei que devia retirar-me, negar-me uma coisa que me era especial, porque merecias, claro. E vou-me lembrando de vez em quando, sobretudo quando me sinto de fora de algo que foi brevemente meu. Tomaste-o de mansinho com a tua irrestível vontade de seduzir e conquistar tudo e todos. Fizeste-o bem, mereceste. Espero que sejas feliz e que continues a merecer o que te ofereci. Eu, por mim, agora tomo mais cuidado. E materializo em palavras para não me voltar a esquecer.

Quem manda aqui não sou eu

Ocorreu-me que é difícil distinguir entre objectivos e desejos. Mais feliz seria se pudesse apenas ter objectivos, que me coubessem apenas a mim alcançar, e não uma lista de desejos, de sonhos, de vontades, de intangíveis que não tenho nas mãos o poder de realizar.

Sempre me revoltei com a ideia de que não somos donos de nós próprios. Durante muito tempo, achei que cada um colhe o que planta e que cada um é livre de seguir pela estrada que escolhe. Mas com o tempo, com a desilusão e o desencantamento, fui percebendo que somos muito mais escravos do destino do que pensava. Não escapamos ao que nasce connosco, nem ao que nos rodeia e que cresce connosco, nem o que a vida nos vai fazendo viver.

Geralmente, vou atrás do que quero e luto por isso, às vezes até à exaustão. Mas, no fundo, essa rebeldia e essa teimosia só me têm trazido dissabores. Muitas vezes me pergunto se não teria sido mais feliz se tivesse simplesmente desistido de caminhos que não eram os certos, às primeiras dificuldades e avisos de perigo à navegação. Pergunto-me de que serve lutar contra o destino, que nos desgasta, leva tanto de nós, para no fim concluir que travamos uma batalha em vão. É que os sonhos que queremos realizar podem ser uma desilusão tremenda e razão de imensa infelicidade, sobretudo um amor que temos por alguém por quem lutamos, que acreditamos ser o caminho da felicidade, e que depois não é. Se esse sonho, esse amor, não são o nosso destino, lutar contra isso faz-nos mal, esgota-nos e não nos leva a lado nenhum. Mas saber reconhecer o que é possível e o que não é, não é nada fácil. Na maior parte das vezes, só percebemos que não é caminho quando já nos perdemos, já sangramos da batalha, já temos o nosso exército dizimado. Não resta se não a retirada, raras vezes honrosa, e voltar ao ponto de partida para tomar um caminho diferente, já traçado, que não exija ser desbravado.

No fundo, não escolhemos quase nada. Às vezes as escolhas que queremos fazer não são simplesmente possíveis, porque são caminhos inexistentes. Acabamos por ter de seguir os caminhos para onde nos empurra a vida. E cabe quase sempre ao destino, à sorte, escolher o que nos traz a vida. A mim, peço que me traga Paz. Pelo menos isso. Hoje, no silêncio de que preciso para respirar.

Parar

Vi-o. Um jantar numa viela perdida do Bairro Alto, onde bem me custou chegar em cima das muletas. Um grupo relativamente pequeno, tudo animado, all in all, uns bons momentos de descontracção e arejamento da minha clausura, depois de umas bebidas à beira rio antes do jantar, na total descontracção, que ele não estava nem o imaginava a juntar-se ao jantar.

Não sabia do meu acidente. Foi simpático, como sempre. Na distância, que eu alarguei. Não posso dizer que me é indiferente, que não é. Custa tanto, ainda. A única diferença agora é que o sonho acabou para mim, não há expectativa nenhuma, o tempo passou demais. O amargo é mais difuso e a tristeza é um vazio desconfortável no estômago, mais do que a dor de uma agulha espetada no coração.

Mas só me apetece dizer palavrões. Porque é que tinha de ser assim?! Alguém me falava hoje em ter o que se merece, e eu acho que merecia ter tido mais que isto dele. Mas não mereci. E sei que a estrada não segue, e ainda assim nunca consigo resistir a anotar mentalmente a prova de tudo o que tinha para dar certo. Até me parar, porque sei que é perigoso. Stop!

Tanto Querer

Quero um avião para me levar pelas núvens, a uma praia iluminada pelo
pôr-do-sol,
e uma
areia morna e mole.
Quero dourar o meu corpo na luz, os cabelos espalhados no peito do
coração,
que bate por mim
sem razão.
Quero uma brisa suave, a refrescar o suor quente e bom de um
abraço apertado,
de um
beijo doce e salgado.
Quero um momento de
eternidade,
olhos nos olhos, mãos
entrelaçadas,
corpos
unidos,
palavras
não faladas.
Quero o
riso
espontâneo da
partilha
de uma piada que
não se diz,
que se conta e ouve com um
olhar feliz.
Quero o sorriso do
contentamento,
a fome da
plenitude,
o sono da
exaustão,
dois corpos na
palma da mão.

Quero...
O amor infinito, o verbo no futuro, o fim do mundo, o fim do
tempo,
para ter-te para sempre cada
momento.

Quero...
Uma história aberta, de quatro mãos, dois corações, num só compasso
sem fim,
num só corpo
de ti e de mim.

Quando outros escrevem por nós, basta



Bebido o luar, ébrios de horizontes,
Julgamos que viver era abraçar
O rumor dos pinhais, o azul dos montes
E todos os jardins verdes do mar.


Mas solitários somos e passamos,
Não são nossos os frutos nem as flores,
O céu e o mar apagam-se exteriores
E tornam-se os fantasmas que sonhamos.


Por quê jardins que nós não colheremos,
Límpidos nas auroras a nascer,
Por quê o céu e o mar se não seremos
Nunca os deuses capazes de os viver.


Sophia de Mello Breyner Andressen

O que quer dizer com isso?

As palavras escritas são, geralmente, mais reflectidas. Há tempo para reler, clarificar, encontrar sinónimos mais apropriados. Suavizar mensagens duras arredondando a escrita, ou endurecer mensagens que a nossa voz não permitiria transmitir com a mesma segurança, ou dizer aquilo que não sentimos mas queremos ou precisamos de exorcizar. As palavras escritas só são lidas após este processo, são diferidas. As palavras faladas são mais espontâneas. Saiem-nos da boca com muito menos filtros. Podem-se suavizar ou embelezar com mais palavras, tentar clarificar quando não são bem ouvidas, ou quando nos traem a vontade, o sentir ou o pensar, mas não se podem apagar ou substituir as que já se disseram. As palavras faladas são instantâneas e imutáveis.

Um texto pode-se sempre interpretar de várias formas, é certo, mas é essencialmente uma articulação lógica de palavras cuja maior carga emocional é de quem lê. Quem lê um texto tenta geralmente perceber qual a verdadeira mensagem do escritor e, quando não entende, relê as mesmas palavras, a mesma cadência de pontuação, esforça-se por se afastar das suas próprias condicionantes emocionais, até que o todo faça sentido. Se o escritor não é uma nulidade, a mensagem passa.

Uma conversa, uma fala ou um discurso, carrega emoções de quem emite as palavras, antes de mais nas cambiantes da voz, na expressão do rosto e na linguagem do corpo, e quem ouve interpreta isso tudo ao mesmo tempo que significa as palavras em si. Se quem ouve não entende, só lhe resta pedir uma repetição ou uma clarificação, mas nunca ouve nem vê exactamente o mesmo que antes – ao contrário do texto escrito. E às vezes, quem fala também esconde as suas emoções num esforço cénico de esconder a alma, tornando mais complicada a interpretação das palavras. É muito mais difícil falar assim, mas há quem o consiga fazer e até se “profissionalize” nessa arte.

Hoje pergunto-me se essas pessoas, de tanto encenarem, não deixarão mesmo de sentir. Há uma pessoa assim que me é muito próxima e não lhe vejo emoção, sentimento, expressão. Reparo que falo com ela da mesma maneira, no mesmo tom frio e calculado, com pouquíssimas inflexões de voz, e o mínimo de contacto visual. Com uma diferença: a emoção e o sentimento estão cá, espartilhados pelo tal esforço cénico recíproco, e depois as minhas emoções exprimem-se em discursos interiores silenciosos a tentar apaziguar aquele desconforto que fica, e a pensar o que raio exactamente ela queria dizer com certas palavras, ou em revoltas partilhadas com quem me sabe ouvir e sentir.

Ao meu filho eu escondo as lágrimas, mas nunca o enorme amor que tenho por ele, que tenho a certeza que se vê nos meus olhos e se ouve na minha voz, mesmo quando lhe prego um raspanete. E só por ele mesmo é que me ponho a jeito destas setas envenenadas. Cinco dias disto valeram a pena por ele e por me recordarem porque tive tanta pressa de saír de casa. Luto tanto, ainda hoje, para me libertar da encenação que cresceu comigo, mas que detesto, e que sei que não é minha. Na escrita consigo libertar-me dela. Na fala, ainda não. Não sempre. E cada vez me apetece menos conversa, menos som. As palavras de mim são cada vez mais fundas mas cada vez mais silenciosas, e cada vez mais preciosas e impartilháveis. E não me apetece explicá-las, suavizá-las, contorná-las. Apenas materializá-las e deixá-las escritas, a definirem-me aos poucos apenas a quem me sabe ler, a quem consegue decifrar o código.

Segue a parte 5

(...)

Era um hotel de três estrelas, um edifício antigo recentemente recuperado e pintado de um azul forte. Tinha a particulariedade de manter um antigo poço, que datava o local emprestando-lhe, simultaneamente, um certo ar romanesco de contos de encantar. Não era luxuoso, nem pretendia ser, mas era obviamente limpo e o serviço era bom. Portanto, honesto. À chegada, Sofia pensava no que dizer àquele homem de quem queria mais sem perceber porquê. Virou-se para ele e encontrou-o na expressão óbvia do mesmo dilema. Sorriu-lhe e ele devolveu-lhe um sorriso quase infantil.

- Quero mais de ti – disse-lhe ele baixinho.

Respirando fundo, tanto de alívio como de contentamento, ela respondeu-lhe apenas - Estou aqui até Domingo.

Os olhos dos dois seguravam-se mutuamente numa corrente invisível mas palpável, que os puxava um para o outro. Estavam no meio da rua estreita, já escura pelo fim de tarde e pela natural penumbra da sombra dos edifícios à volta. Estavam à porta do hotel, na mira do olhar inquisitivo do pessoal da recepção que os observava dissimuladamente pela transparência dos vidros da porta da entrada.

E então tornou-se ímpossível resistirem-se, e alguma coisa os empurrou num pequeno passo simultâneo em frente, que os pôs nos braços um do outro. Naquela sombra aconteceu o beijo, arrepiante, quente, molhado, num entendimento instintivo perfeito de mais do que bocas e línguas a deslizar. Doce e intenso, tão intenso que catapultou os dois corpos para uma proximidade de encaixe quase total, com ela entre os braços dele e ele a envolvê-la na totalidade, ambos a sentirem o contacto dos dois corpos desconhecidos mas que parecia que se reencontravam. E as mão dele pela cintura e pelas costas dela, a quererem muito mais, agarrando-a com uma força imensa mas com a delicadeza de quem segura algo frágil e precioso. E ela sentindo-lhe as mãos com um arrepio de calor e escorrendo as suas pelos ombros, pescoço e nuca dele, a mergulhar naquele calor e naquele cheiro, a querer fundir-se com a sua pele.

Sôfregos. Electrizados. Alvoraçados. Vibrantes de desejo e de contentamento inexplicável. Olhos nos olhos no fim do beijo, a ponta dos narizes colada e as bocas húmidas da saliva trocada, bocas semi-abertas, a recuperar o fôlego e a procurar mais. Ela mordeu ligeiramente o lábio inferior, no esboço de um sorriso de perplexidade e embaraço, e ele pousou um dedo sobre o lábio que os dentes dela vincavam, soltando-o da tortura, com um sorriso um pouco malicioso no meio da expressão de desejo que lhe brilhava nos olhos. Percorreu com o dedo uma linha recta do meio da boca dela, pelo queixo, e pelo longo pescoço abaixo, detendo-se no fim do decote, e afastou-se ligeiramente. Sofia estremeceu mergulhando nos olhos dele, e mordendo de novo o lábio instintivamente.

- Eu volto. - disse-lhe ao abrir a porta para que entrasse no hotel. E antes de largar a porta acrescentou – Não me perco de ti.

Pedro seguiu o seu caminho enquanto Sofia se situava na realidade do espaço e do tempo, de que tinha perdido noção por completo. O lobby do hotel tinha azulejos antigos e tocava Fado em pano de fundo. O bar era acolhedor, com as paredes de pedra antiga à vista, com madeiras quentes à mistura, e uma iluminação apropriada. Decidiu seguir para ali e beber alguma coisa alcoólica, bem forte, para recuperar a lucidez que lhe roubara aquele beijo estonteante e pôr ordem nas ideias. Que momento... Que homem era aquele? O que se passava consigo para desejar assim um desconhecido, beijá-lo daquela forma ao fim de poucas horas de um encontro fortuíto?

Estava um bocado assustada mas acalmou com o alcool, decidida a pôr o episódio para trás, e subindo ao quarto, que o dia tinha sido longo e cansativo, e nem queria pensar que ainda tinha de voltar a sair para jantar.

Tomou um longo duche e mesmo assim sentia o cheiro dele. Vestiu roupa lavada, perfumou-se, e mesmo assim sentia o cheiro dele. Quanto mais tentava afastar a recordação dele, mais sentia o mesmo tremor avassalador do momento do beijo. Que beijo... “Mais. Mais! Quero mais dele. Quero mais daquilo.” Era só nisso que pensava. Imaginava onde estaria ele, no que estaria a pensar, e de repente entrou em pânico a pensar que ele certamente teria ficado com uma péssima imagem dela. Que mulher se entregava assim num beijo a um desconhecido ao fim de pouco mais de uma hora de conversa? E que homem era aquele, o que é que ele quereria realmente dela? Deveria ter medo? Provavelmente. Mas não tinha.

No meio da ventania de perguntas que ecoavam na sua cabeça, cheirava-o por todo o lado. Levou a mão à boca recordando o toque da boca dele, fechando os olhos e sentindo a contracção de prazer a percorrer-lhe o corpo, quase a sentir as mãos dele a agarrarem-na outra vez, a sentir o calor do corpo dele e o enlace daquele beijo mágico.

Sentou-se à janela a olhar a mesma rua onde se haviam beijado e recordou a conversa na esplanada. Espantoso como se recordava de tantos detalhes. Tudo o que ele lhe tinha dito estava como que tatuado na sua memória. Resolveu que tinha de o ver de novo. Perguntava-se se ele realmente voltaria, como lhe tinha dito na despedida. E quando?... Não sabia dele o suficiente para o procurar, mas sentia que o conhecia o suficiente para saber que ele voltava mesmo. Estava ainda confusa com tudo o que se tinha passado.

Finalmente, resolveu sair para jantar. Não queria ter de andar por aquelas ruas sozinha a horas tardias. Pegou nas suas coisas e saiu do quarto, passou pela Recepção e, de repente, deteve-se no noticiário que passava na televisão do bar. Começou a aproximar-se, lentamente, suspensa nas imagens que estava a ver, com um aperto, uma dor, a tomar conta dela toda quanto mais se aproximava do detalhe da imagem e à medida que a locução se tornava mais audível e compreensível. Mas incompreensível. Assustadora. Uma agonia a invadi-la. E uma força a puxá-la na direcção do ecrã, até ficar quase colada a ele.

Depois de uns minutos, subiu ao quarto em transe e tomou uma decisão, sem escapar ao aperto de dentro que levara para cima, e uma lágrima que se insinuou com força suficiente para lhe escorrer pela face.

(continua)

Time Out


Entre hoje e domingo, não sei quando volto a ter net (tudo depende de uma coisinha chamada placa 3G, que não sei se terá rede no sítio para onde vou). Mas tenho o meu filho!

Corpo ou Alma

Quem me vê não sabe. Quem me ouve a fala e o riso não me alcança. Só quem me lê as palavras que não digo consegue construir o meu mapa. Quem me vê a roupa e o corpo faz-me um ser material que não existe. Quem me lê a alma faz de mim um ser virtual que é o meu ser real. E, salvo raríssimas excepções, não consigo mostrar o meu mapa, a minha alma, o meu ser real, a quem me vê roupa e corpo, me ouve palavras e risos. A quem não consigo confiar as lágrimas, não posso levantar o véu. E a quem me viu a alma, não posso vestir o corpo. Corpo e alma sou só para mim, na minha intimidade impartilhada. Alma sou aqui – palavras e textos de dentro de mim. Corpo sou na vida – existência física que guarda oculta a essência de mim.

Não há como misturar as duas coisas sem um cimento de mais do que mera curiosidade. Entregar a alma a quem vê o corpo só quando há um sentimento muito forte, uma confiaça cega, uma intimidade conquistada, que tornam natural que se levante o véu. E vice-versa – entregar o corpo a quem viu a alma só se há sentimento e confiança suficientes para acreditar que a materialização da alma em corpo não corrompe nem substitui a imagem da primeira pelo segundo.

Serei sempre esta dicotomia com quase todos os que passam na minha vida. Protejo a essência com o anonimato do nome e do corpo, e protejo o corpo pondo a alma na sombra. Faço mal, dizem-me. Devo revelar-me mais aos que estão na minha vida, à minha volta. Mas esse caminho que tenho feito não se tem revelado nem fácil nem seguro. E a cada revés que me acontece, mais me convenço que há quem não mereça mais que isso de mim – a alma na sombra, as dores ocultas, a minha essência protegida. São poucos, muito poucos, os que me merecem por inteiro, e eu inteira sou o meu mais precioso tesouro, que tenho de guardar para quem mereça e reconheça, e aprecie, e na volta me enriqueça. Prezo os tesouros desses poucos que me vêm inteira e se mostram inteiros, tanto mais valiosos quanto mais raros são. Só nesses poucos confio, e guardo essa confiança como uma pedrinha na mão.

Quando o mau pode ser pior – e é

Ía escrever este post com uma nota positiva, por tudo o que estou a aprender que consigo fazer sozinha. As coisas mais básicas do quotidiano passaram a ser enormes desafios. Estou sozinha, com pouca ajuda, e não é do meu feitio pedir a não ser em último caso. Mas vou superando os desafios, com maior ou menor dificuldade, com mais ou menos criatividade (e as canadianas passaram a ser extensões de mim com funções cada vez mais alargadas – e mais certeiras). Fui jantar fora no sábado de pé entrapado mas com um lindo vestido, maquilhagem, etc (só o sapato raso é que destoava, mas há que fazer concessões).

Estava a começar a acreditar que afinal isto não era tão mau, àparte o facto de estar condenada a um afastamento forçado e longo, muito longo, do meu filho. Mas eis que saio hoje da consulta de ortopedia com uma sentença pior: além da "fractura do tarso" já diagnosticada, diz o especialista que esta paciente “apresenta arrancamento capsular do escafoide.” Traduzido por mim: era para engessar e não foi, há que corrigir a posição do pé (dor, muita dor!), engessar da ponta dos dedos ao joelho (e lá vai mais metade das opções de vestimenta que ainda tinha, fora o desconforto adicional), 3 semanas para voltar e tirar o gesso para substituir por uma “tala de posicionamento articular da tibiotársica AFO”. A tradução desta última colecção de palavras incompreensíveis é que são mais umas semanas com uma tala horrorosa que vai ter de ser adaptada a um sapato ténis, que é só o que posso calçar enquanto andar com a tala.

E por fim, sentencia o médico: “sendo provável período de incapacidade para o trabalho de 4 semanas”, isto dada a necessidade de manter a perna elevada a maior parte do tempo, e isto apesar das adicionais injecçõezinhas diárias agradáveis para prevenir embolias e sei lá mais o quê.

Agora sim. É pior que mau, e hoje não me resta nenhuma centelha de humor para deitar nisto. A única coisa que me anima é que vou passar 5 dias com o meu filho com a ajuda dos meus pais. Mas depois cá volto para a minha casa na solidão e na saudade dele até poder bastar-me e poder re-assumir o meu papel de mãe. Hoje mandou-me uma flôr pelo pai, que ele próprio apanhou do jardim do pai e escolheu por ser branca e "das que a mãe gosta". Falei com ele ao telefone há pouco, e fiquei com um aperto indescritível, depois de me perguntar se já estava boa do "dói-dói" e quando é que voltava para casa. É o aperto de me sentir incapaz, insuficiente, de sentir que estou a falhar-lhe. E ao mesmo tempo a sentir a falta que ele me faz, o simples facto de não o ter "comigo" faz-me faltar uma parte de mim, a melhor parte de mim.

Seguindo na parte 4

(...)

Fizeram o mesmo movimento sincronizado em espelho, descendo da visão improvável do céu para o encontro horizontal do olhar de um no outro. O sorriso dela era agora diferente, mais fechado, inquisitivo, mas doce. Os olhos grandes a quererem mergulhar para lá do vidrado dos olhos negros dele. Ele estava num suspenso, como se realmente não tivesse peso, e estava preso no olhar e no sorriso dela, que inevitavelmente mimetizou. Foi apanhado de surpresa, tanto pelas palavras como por toda a situação. Era como se não fosse ele, o que conhecia de si próprio, que tinha construído ao longo dos anos e que domava. Alguma força maior se apoderara dele, sentia-se literalmente enfeitiçado.

Um homem inteligente, como era, saberia o que responder num ápice, mas não conseguia articular nada. Ficou apenas a contemplá-la e então ela baixou o olhar e disse-lhe - Mas não sabe o que fazer com isto. Deu-se conta da máquina fotográfica suspensa a meio caminho, levantou-a, voltou-se de novo para cima e disparou. O som do disparo da máquina fê-lo voltar à realidade e conseguiu finalmente falar-lhe: - Você foi os meus olhos. E sim, agora não sei o que fazer.

Ela abriu o sorriso enquanto ainda olhava para cima, sem se mexer. - Mas foi a sua alma que viu o que os meus olhos apontaram. E foi a sua alma que sentiu, e é ela que tem a resposta à pergunta do que fazer.

Ele estava totalmente confuso, até porque conversas sobre almas não faziam parte da sua realidade. Mas aquelas palavras ecoavam numa parte de si, bem dentro, que já nem se lembrava que existia. Aquelas palavras feriram-no.

- A minha alma... a minha alma está há muito vendida para se manter em silêncio. Já não sabe dizer-me o que fazer. - Ela voltou-se para ele, estendendo uma delicada mas decidida mão.

-O meu nome é Sofia. E deixe-me dizer-lhe que a nossa alma permanece, mesmo que deixemos de saber ouvi-la. E podemos sempre reaprender.

O seu sorriso era agora desarmantemente aberto, quase condescendente, como se percebesse o desconforto dele, a sua insegurança. Ele estendeu também a sua mão levantando os olhos para a olhar de frente.

- Chamo-me Pedro - enquanto as suas mãos se encontravam, num primeiro toque físico electrizante, que ele sentiu no corpo todo. Em mais um impulso perguntou-lhe se aceitava tomar um café e ela anuiu, sempre sorrindo, enquanto os dois faziam a travessia da avenida em direcção à mesma esplanada de onde a tinha visto pela primeira vez minutos antes.

Dada a generosidade que tinha patenteado, o empregado arranjou-lhes de imediato uma mesa simpática. Foi diligente no serviço, e assim rapidamente se encontravam frente às suas bebidas, ele um café e uma água, ela um chá gelado. Ele sentia-se ligeiramente ridículo, e não fazia a mínima ideia nem porque tinha voado pela avenida em busca de um contacto com aquela mulher, nem porque queria manter-se na sua presença, nem muito menos o que lhe havia de dizer. Acendeu um cigarro para disfarçar o nervoso. E mais uma vez, ela salvou-o.

- Podemos falar apenas do tempo... - disse-lhe num tom leve, com um sorriso ligeiramente irónico. Ele não conseguiu evitar soltar uma pequena gargalhada, que ela acompanhou, derretendo instantaneamente o gelo entre os dois.

Passaram uma hora à conversa naquela esplanada, entre risos e olhares inquisitivos, mas escaldantes. Mantiveram um registo leve, sem mais conversa de almas, anjos ou demónios. Falaram um pouco de si e do porquê de ali se encontrarem. Falaram do que faziam, onde viviam e das coisas que mais gostavam de fazer. Passaram a tratar-se por “tu”. Descobriram afinidades de preferências gastronómicas e de destinos de viagem. Partilharam pequenas estórias de viagens a esses destinos. Ela ficou a saber que ele era advogado, solteiro, nascido na capital. Que trabalhava no centro e vivia numa zona antiga e prestigiada da cidade.

Sofia estava de passagem, em turismo. Era professora numa cidade a norte, de onde era originária e onde vivia num pequeno apartamento de um dos prédios mais antigos, e estava de férias na capital. Não revelara muito de si àquele estranho, por quem se tinha sentido tremendamente atraída, que pressentira aproximar-se na avenida sem ter olhado para ele, e a quem sentira o desconcerto da visão que lhe indicara. Tinha intuído nele uma tristeza imensamente profunda, um vazio, um desnorteamento, que lhe despertava uma certa pena. E intrigava-a aquele homem em quem era palpável uma enorme força e inteligência, e porém tinha uma sensibilidade especial adicional. Sabia que ele também era capaz de mais do que lógica e razão – sabia que ele também via. Mas estava preso algures.

Quando olhou realmente para ele, teve uma sensação estranha de “dejá vu”. Tudo o que observava nele, pela primeira vez, era como uma recordação. A aproximação dele e o convite para tomar um café foram vividos como capítulos de um livro que já tinha lido, e a conversa com aquele estranho sabia-lhe a lembrança de outros tempos. Até a forma como acendia o cigarro, o cheiro daquele tabaco, e o cheiro dele, sabiam a memórias de tempos idos. E no entanto, cada olhar dele, cada gesto, cada detalhe que lhe re-descobria em surpresa, incendiava-a numa vontade inegável de mais.

Tinha sentido o aperto de mão com que se apresentaram como uma onda de calor que a percorreu da ponta da mão ao seu interior mais profundo. Tinha sentido que Pedro também não tinha sido indiferente àquele toque. Via perfeitamente nos olhos dele, ouvia claramente nas suas palavras, que tinha por ela a mesma ânsia inexplicável que ela tinha por ele. Era um homem inegavelmente atraente, do ponto de vista físico. Mas não só. Sofia tinha vontade de o tocar de novo, imaginava-lhe o beijo ao observar o movimento da boca enquanto falava ou quando tirava uma baforada de cada cigarro que acendia. Mas tinha também uma vontade louca de percebê-lo, de se entranhar na aura de mistério que o envolvia.

Ao fim de uma hora de conversa, o empregado pousou a conta na mesa, e ambos se aperceberam que tinham esgotado aquele tempo. Sofia não se recordava de algum dia ter sentido nada semelhante por homem nenhum e de uma forma estranha, que não conseguia explicar, sabia que aquele encontro era destino, e não ficava por ali. Ambos sorriram com um misto de pena pelo fim do momento e de vontade de mais. Pedro perguntou-lhe para onde ía e Sofia, por sua vez, não recusou nem temeu a oferta dele para a acompanhar ao hotel onde se alojara, que era próximo.

Deixaram a esplanada para trás, mais uma vez atravessando a avenida larga em direcção à grande praça central, antes de se embrenharem pelas perpendiculares muito mais estreitas. Subitamente tinham deixado de falar e caminhavam simplesmente lado a lado, sem se tocarem, ambos a fervilhar por dentro num caldeirão de sentimentos e pensamentos desconexos, tudo fervido pela força de um desejo de toque que era quase visível. Mas ambos evitavam os olhos do outro, suspensos na mínima inflexão de movimento ou respiração do outro, a tentar controlar os seus próprios movimentos e a sua própria respiração. Agora, nenhum deles sabia o que dizer.

(continua)

Be careful with what you wish for...

Passei uma noite infernal, apesar das gargalhadas que ainda dei, à mistura com a dor e o desespero, na companhia de 3 amigas numa sala de espera de hospital. Na tentativa de deitar um bocado de humor no caldo, acabei por escrever isto para registar.

Fui jantar um belo sushi que eu adoro, e que é obrigatório nos meus fins de semana de dias de mulher. A seguir resolvemos dar um saltinho a uma discoteca Lisboeta onde consegui fazer a habilidade de dar uma queda. Pois eu não queria o "turbilhão"? Lá perto - tive o "trambolhão"...

Mas isto não tem graça, porque depois de cair a dor do meu pé era absolutamente insuportável. Gelo do bar, ajuda das amigas, e eu a torcer-me toda para não desatar a chorar. Tento calçar o sapato e nem pensar! Ao fim de alguma discussão, acabei por me render às evidências e lá aceitei que era melhor ir ao hospital.

Um àparte para comentar que o pessoal do dito estabelecimento se portou para lá de pessimamente mal. Ninguém veio saber se era preciso ajuda, se estava bem, nada! Foram as minhas amigas que tiveram de ir exigir ajuda. Acabei transportada ao colo de um segurança que me levou pelas escadas até ao piso térreo. Pois eu não queria braços? Outros "braços quaisquer"?? Toma lá para aprenderes... Só que o destino foi um cantinho no chão na base das escadas junto à entrada, com toda a gente que entrava e saía a ver-me naquela figura, de salto num pé e o outro descalço, já inchado e negro nesta altura, com o saco de gelo em cima. Não pensem que caí por causa dos saltos - não, foi mesmo um degrau que não se vê, e onde outra rapariga caiu nem 5 minutos depois, apesar de ter tido mais sorte que eu nas consequências.

Resolveram chamar uma ambulância (as minhas amigas, e não o prestável pessoal do estabelecimento) achando que seria mais rápido. Mas as duas que foram buscar o carro chegaram primeiro que a ambulância e eu pedi que me levassem que não queria esperar mais e continuar naquela figura. A outra que ficou comigo estava tão passada com a indiferença que pediu o livro de reclamações, que claro que não lhe deram.... Em vez disso lá me deram uma água, que eu tinha uma sede imensa.

Mais braços (de dois seguranças desta vez - ganda maluca, hem?!) e lá me transportam para o carro. Pois eu não tinha “urgência de animação, de turbilhão, de movimento desabrido”? Toma lá a "urgência hospital", depois do "trambolhão" e um carro "a abrir" por essas estradas fora... Vou para um hospital particular, pensando que seria rapidamente atendida. Engano... Apesar de estar pouquíssima gente e da admissão em tempo record, já numa cadeira de rodas, esperei meia hora para ser vista por uma médica. Aqui já tinha mesmo lágrimas a escorrer pela cara abaixo, que a viagem foi um tormento, com um grito de dor a cada trepidação do carro. Em 2 minutos de observação manda-me para o Raio-X (brilhante...).

Mais uma espera e lá vou a mais um pequeno tormento. Vire o pé assim e assado, e eu com vontade de bater em alguém. Gani e gani, mas lá tiraram os primeiros dois Raio-X. Não parece partido, mas a médica acha estranho, e por isso manda tirar outros em outras posições. OK, aí gritei.

De volta à sala de espera, deparo-me com um sujeito recém-chegado que se sentou ao pé de nós. A cena seguinte parecia um episódio do Sexo na Cidade, e nós até éramos quatro raparigas jeitosas e todas aperaltadas. Deu-nos para a parvoíce, que já eram lindas horas e estavamos exaustas, e eu, depois do traumatismo do Raio-X (aquele técnico nem sonha o perto que esteve de levar um murro!), até já me parecia que quase não tinha dores, desde que estivesse com o pé quieto. A nossa conversa foi qualquer coisa... E o sujeito obviamente a segui-la e a rir-se connosco (não, não era de nós, garanto!). A certa altura eu disse que dava tudo para ir fumar um cigarro e ele levanta-se passados uns minutos e pergunta-me se eu não quero ir fumar, enquanto me agarra o ombro... Claro que lhe disse que bem gostava, e tal, mas não podia, e ele todo solícito faz-me uma festa, "pois já percebi, coitada, precisas de alguma coisa?". Nessa altura, atinge-me o bafo... :S

Ficamos todas a rir e, quando ele voltou, eu fui finalmente chamada de novo, para ouvir a médica anunciar que os segundos Raio-X confirmavam a fractura... Nice... Não é "engessável", meia elástica impossível dado o inchaço do pé e as dores de cada vez que lhe tentavam mexer, portanto acabei por saír de pé ligado, de canadianas, com receita de analgésicos e anti-inflamatórios, e volta marcada para consulta de ortopedia na 2ª feira. À saída comento que o "tipo do bafo" até era giro (pena o bafo!) e elas dizem-me que, enquanto eu fui atendida, ele contou que lá estava por ter uma dor de cabeça "como nunca tinha tido"... Ri a bom rir! Quem é que apanha uma bebedeira e vai ao hospital queixar-se de dores de cabeça??? OK, assunto arrumado, apesar da insistência delas em que lhe pedisse o número de telefone, que ele até foi dizer a uma delas “a tua amiga é muita gira”... Resumo colectivo: isto é que é, e não é para qualquer uma – atrair um desconhecido até na sala de espera da urgência de um hospital! Claro que retorqui com a probabilidade do grau de alcoolémia do referido sujeito... No meio daquela cena toda, com a noite lixada, rimos mais do que se tivessemos tido uma “noite normal”. E eu não pedi riso?... Ah, pois era...

Final da noite, pelas 5 da madrugada, depois de paragem na farmácia e já com os analgésicos a fazer efeito, foi a estafa de subir as escadas do meu prédio centenário, de canadianas. "Cansar o corpo"?? Check. E agora "ocupar a mente", e muito, a tentar resolver o que fazer da minha vida nas próximas semanas, sobretudo por causa do meu filho, sem poder conduzir, sem poder ir trabalhar, sem me poder bastar a mim própria, logo eu que prezo tanto a minha independência... Fora as dores que ainda tenho, o pé entrapado com os dedos roxos, stresses de mulher fashion que já está a consumir-se a pensar no que vai vestir e calçar (no pé disponível) porque andar de muletas em cima de um salto como os que eu uso é capaz de ser desafio demasiado, e de mulher activa que não quer nem pensar em ficar fechada em casa! Logo à noite vou sair, de pé entrapado, canadianas e tudo! E no entretanto, nos tempos de prisão em casa, faço crescer o meu conto (mesmo que vocês não gostem!).

Segue a parte 3

(...)

Num impulso, deixou uma nota generosa em cima da mesa e atravessou a avenida, sempre com os olhos fixados nela, sem se importar com nada do que acontecia à sua volta, nem pensar sequer se algum carro o atropelava naquela travessia. Movia-se com se voasse baixinho, quase deslizante, e quase sem esforço, tal era o magnetismo daquela atracção e a certeza daquele movimento de ímpeto.

À medida que se aproximava, ía percebendo os pormenores da figura. O desenho do corpo delgado, esguio, mas muito feminino. Foi distinguindo as várias curvas que se advinhavam por baixo da roupa leve e clara que vestia. Apercebeu-se das várias tonalidades de ouro que lhe brilhavam no cabelo. Tudo o maravilhava. Era a visão mais sublime que tinha experimentado na vida. Ao mesmo tempo, alguma coisa gritava dentro dele que parasse, que voltasse atrás, que ali havia perigo. Continuava a mover-se determinado, mas a sentir o tremor da adrenalina, não sabendo bem se pelo desafio do perigo, instinto de sobrevivência, se pelo fascínio da atracção que sentia por aquele anjo.

Deteve-se mesmo junto dela, ainda a focar a vista no seu rosto que não perdia o mesmo sorriso que ele intuíra da esplanada do outro lado da avenida. A máquina fotográfica ainda na mesma posição. Os olhos dela eram verdes, como azeitonas brilhantes, mas desenhados como amêndoas e emoldurados por umas longas pestanas. Quando estava ao seu lado, seguiu-lhe a direcção do olhar e viu. A copa da árvore formara uma abertura, por algum capricho da mãe natureza, e no meio das cores castanhas e lilazes dos ramos e das flores surgia um céu azul desenhado em forma de coração perfeito, com o sol a brilhar no meio. Mesmo ao centro. Pasmou-se com aquela visão. Era coisa que nunca veria por mais que olhasse para cima, se não tivesse seguido aquele olhar. Olhar que nunca encontraria se não tivesse saído do escritório a meio da tarde para vaguear pelas ruas que já mal conhecia. O que nunca teria contecido se não fossem aquelas fotografias tremendas. Sentiu um murro no estômago com a tomada de consciência do quão desumanizado se tornara, do quão fria e desprovida de encantos se tornara a sua vida. Ao perceber que os seus olhos não sabiam já procurar a beleza em nada, porque já não saía em procura de nada.

Ainda olhava para cima, num misto de quente e frio, de maravilha e crueza, quando a ouviu pela primeira vez. Ela não se tinha mexido, continuava também a olhar para cima. Tinha uma voz doce, ligeiramente grave, mas melodiosa, e baixa, tranquila, quase um sussurro. Tal como a imagem que tinha visto do outro lado da estrada, a voz não parecia deste mundo.

-Você também vê...

(continua)

A Dançar na Bruma


Às vezes parece que tudo conjura para nos dar cabo da vida. Ou pelo menos da paciência. Amargura-me sentir que não consigo verdadeiramente andar para a frente. Amarras prendem-me. Sinto-me zangada, irritada, até com coisas menores que não são realmente importantes, mas não são realmente como queria que fossem. Por mais que o tempo passe, por mais que o tempo esteja fechado, por mais que o assunto esteja arrumado, o certo é que ainda tenho de lutar todos os dias para não pensar, não recordar, não me deixar afectar pela tristeza que cá mora. E esse mesmo esforço é uma forma de continuar afectada por isto, por ele, e reconhecê-lo é frustrante e enfurecedor.

Quero fugir-lhe. Quero não o ver. Quero não me lembrar dele, do rosto, do nome, do gosto, e de tudo o resto. É cada dia mais fácil, é certo. Cada dia é um pouco menos o tempo de luta, é um pouco menos dura a luta. Mas é ainda cada dia. E a cada dia fico mais vazia. A cada dia fico mais sozinha. Disfarce o que disfarçar, escreva o que escrever, distraia-me com o que seja. Sinto que me envolvi propositadamente num nevoeiro cerrado, para que nem eu veja. Mas sei. Sei muito bem.

Sinto a ventania de volta. Junto com a tristeza, a irritação e a raiva, a vontade de me encher de qualquer coisa que ensope os restos dele e me encha de novo de algo diferente. Tenho urgência de animação, de turbilhão, de movimento desabrido. É sempre assim quando me peso tão insignificante. Preciso de um milhão de actividades, gente, barulho, luzes e cores. Ocupar-me, cansar o corpo, ocupar a mente, recuperar-me o espaço que ele ocupou, expropriou de mim.

Apetece-me mandar tudo à merd@. Borrifar-me para tudo e para todos e sair por aí sem pensar no dia de amanhã. Beber mesmo uns shots de um trago e deixar-me ir. Rir, rir muito, para que as lágrimas nem cheguem aos olhos, espantar a desilusão. Cantar e dançar, dizer disparates, brilhar por aí, para espantar a solidão. Estou capaz de uma loucura só para sossegar esta besta que me consome. Procurar outros braços, outros braços quaisquer, não importa, não interessa. Queria provar que não preciso dele para nada, absolutamente nada. Provar-me a mim sei lá o quê e porquê. Até sei. Tanta coisa. Queria dar-me peso, significância. Ronda-me a tentação. Seria tão fácil.

Mas sei o que custa acordar. E sobretudo, sei que não lhe quero reconhecer esse poder sobre mim. Pode ter-me levado muita coisa, pode levar-me ainda muito mais, mas não posso deixar que me leve a essência. E sei que, na essência, não quero nunca mais nada pela metade, nunca mais quero um engano destes. Quero tudo, tudinho, um bilhete full fare, com tudo a que tenho direito, e em primeira classe. A mesma paixão doida, a mesma ternura inebriante, a mesma frescura, a mesma fogueira, a mesma intensidade de cor e sabor. E assim fico sem nada, a não ser uma recordação inútil, um desencantamento e uma tristeza, na solidão da bruma do que não foi, nem será. E que esconde o vazio de que não me consigo livrar.

Por isso também oiço outra música.

Também gosto disto - e hoje canto full blast



É bom para soltar a fúria.

O chocolate é bom, é bom, é!

Eu sou gulosa, em geral. Confesso que gosto de doces e como não preciso de transformar tudo o que como em quantidade de calorias, também não me coíbo de os comer. E gosto, sobretudo, de chocolate. Gosto sempre, e de quase todos os géneros. Mas ainda mais quando como de consolo por substituição de uma qualquer outra vontade. Experimentem esta receita... Vou fazer com o miúdo, que adora tanto fazer como lambuzar-se todo a comer e dizer: “É deli-xi-ôôô-ju” (experimentem a fonética disto...).

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BRIGADEIROS

Ingredientes:
125g de chocolate culinária em barra (branco ou preto)
2 colheres de sopa de margarina (+/- 75g)
Meio copo de leite
1 lata de leite condensado
Chocolate granulado, ou côco se for com chocolate branco

Deitar a margarina num tacho anti-aderente e deixar derreter. Juntar o leite e o chocolate em barra partido em pedaços. Mexer até derreter bem o chocolate. Deitar o leite condensado e incorporar muito bem. Deixar cozer em lume brando, sempre sem parar de mexer.

Quando a mistura começar a descolar-se das paredes do tacho, e/ou se tentar fazer um risco e vir o fundo do tacho, é porque está pronto. Untar uma travessa com óleo e despejar a mistura. Deixar arrefecer. Moldar e passar pela cobertura escolhida e... voilá!

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Pode-se fazer “n” variações com a cobertura mas para mim é indiferente – esta é uma das coisas que eu como sem olhos mesmo, e que me sabem muito bem... Não aconselhado se a satisfação da vontade é urgente (aí mais vale ir directo para a barra de chocolate puro!). Seja como fôr, enjoy!


(Ah, pois – giro e tal... mas hoje eu quero é o chocolate!!!)

Segue assim a parte 2

(...)

É um homem grande. Alto e de ombros largos, possante até, mas sem excesso de peso. É uma figura de força. Os cabelos negros levemente ondulados, pele morena e olhos escuros, grandes e luminosos, num rosto largo inequivocamente masculino. Consegue ver o brilho dos seus próprios olhos reflectido pelo espelho do outro lado do quarto, sem conseguir discernir mais pormenores naquela meia luz. Observa-se ali reflectido e sente um aperto ao saber o que se esconde para lá daquele brilho. Recorda-se da primeira vez que os seus olhos encontraram os dela. Pergunta-se como seria possível que tivesse passado tão pouco tempo desde aquela tarde solarenga, e como tinha sido possível ter merecido a sorte daquele encontro.

A sua vida era agora dois capítulos. O primeiro antes dela, e o segundo era ela. Antes dela, ele era um homem solitário, sem raízes, sem amarras, embrenhado no trabalho que lhe absorvia mais que o tempo, absorvia-lhe a alma. Era advogado criminal, passava os dias envolto em dossiers de histórias lúgubres, macabras, coisas doentes, e pessoas de alma negra. Entre o seu escritório confortável e movimentado, e o silêncio gélido de salas cinzentas atrás dos muros intransponíveis de prisões. Entre o Código Penal e os jornais do dia. Entre a sua casa fechada ao mundo e a exposição das salas dos Tribunais.

Estava bem de vida. Não lhe faltava nada que o dinheiro pudesse comprar. O dinheiro comprava-lhe o conforto em que vivia e comprava-lhe ocasionalmente a companhia, mais de uma forma física, de satisfação do corpo, do que propriamente de intimidade. Prostitutas de luxo entituladas de “acompanhantes”, a quem pagava jantares caros nos melhores restaurantes, e em cujos corpos se saciava em quartos de hotel de cinco estrelas. Com quem mal falava e que pagava com um misto de tristeza e de desencantamento. Por elas, e por ele. Ficava sempre vazio, na penumbra das recordações mais antigas que o tinham empurrado para aquele destino, para aqueles quartos e aqueles corpos pagos para o satisfazer.

Um dia tinha aceite um novo caso, mediático, mas pelos piores motivos. Envolvia a violação e o assassinato de uma mulher jovem, pelo seu próprio marido. O cliente era um homem de prestígio na sociedade, financeiro, detentor de uma enorme fortuna, filho de uma das famílias mais antigas da cidade. Pagava-lhe a peso de ouro e a estratégia passava por denegrir ao máximo a imagem da mulher morta, alegando insanidade temporária para o homem que lhe teria descoberto os podres. Passava por estabelecer a imagem de um homem loucamente apaixonado, um marido e pai exemplar, pilar da comunidade, que teria sofrido um choque tremendo. Crime passional.

Mas a verdade era outra e ele sabia-a. E nisso, nada neste caso era diferente do habitual. Era raro defender réus que julgasse efectivamente inocentes. Nunca tal o havia incomodado. Mas este caso tornara-se diferente a partir do momento em que vira as fotografias da cena do crime, como milhares que havia visto antes, e se deteve, não no horror da cena, que tinha visto já bem pior, mas na beleza e na expressão da mulher que ali se mostrava morta. Por instantes, julgou que aquela mulher lhe falava, que os seus olhos de terror gritavam por ajuda, e sentiu uma náusea incontrolável.

Saiu a porta do escritório e do edifício com a cabeça a latejar, e perante o ar atónito dos seus assistentes, que nunca o tinham visto sair sem comunicar onde ía e nem nunca lhe tinham visto outra expressão senão a inexpressão, excepto nos raros momentos de boa disposição em que se permitia uns sorrisos, em geral na celebração da vitória dos casos mais difíceis.

Saiu para a rua com uma ânsia de respirar ar fresco que lhe era totalmente desconhecida. Vagueou pelas ruas até sentir a pulsação voltar ao seu ritmo normal. Sentou-se então numa esplanada e pediu qualquer coisa, na tentativa de fazer passar o nó no estômago que era a única réstia do descontrolo físico que aquelas fotografias tinham provocado. Soube-lhe bem estar ali, naquela tarde fresca mas cheia de sol. Pensou que havia anos que não se sentava numa esplanada de rua, simplesmente a ver quem passava.

E de repente, numa fracção de segundo, os seus olhos detiveram-se numa mulher que mais lhe parecia um anjo. Estava parada no meio do passeio largo da avenida, a olhar para cima, para a copa de um dos frondosos jacarandás, com uma máquina fotográfica ao pescoço que tinha ficado suspensa a meio caminho, entre a posição de transporte e a posição de fotografar. Ela sorria, um sorriso plácido de encantamento, e ele pensou que ela estava tão ausente que nem se apercebia das cabeças que se voltavam para a olhar, a admirar. Era uma mulher bonita, sem ser deslumbrante, mas que transpirava uma leveza que não era deste mundo.

(Continua)

Modernices, sem género

Escrevi há tempos que somos todos muito mais parecidos do que se pensa, mas todos muito mais complexos do que gostaríamos, e a conjugação de tanta complexidade começa a tranformar-se numa equação absurda.

Fui repescar esta frase por várias razões. Lembro-me de me ter surpreendido a mim própria ao escrevê-la, mas hoje conclúo que a escrevi iluminada por um espírito qualquer (“Santo”, é que duvido), porque descreve perfeitamente a imbecilidade do mundo em que vivemos. E é a conclusão também dos meus exercícios sobre lógicas femininas e masculinas. Mas mais que isso, ocorreu-me pela sugestão de uma querida amiga, na tentativa de me fazer conhecer pessoas novas, fora dos meus círculos habituais, provavelmente a “teoria da substituição” na melhor das intenções. Sugere ela... “Speed dating”!

OK. Primeiro ri – a bom rir. Ela a insistir e manda-me um link. Depois ri mais um bocado e disse-lhe que provavelmente não encontraria aí o tipo de pessoa compatível, porque teria a mesma reserva que eu tenho a embarcar numa coisa dessas. Ela contra-ataca e enquanto eu leio “testemunhos”, mostra-me a “garantia” da empresa do dito link (que é qualquer coisa como “se não encontrar ninguém interessante, o evento seguinte é grátis” – e eu pergunto-me para que é que uma pessoa quererá aturar uma segunda estucha e repetir a figura, mesmo que seja de graça, se for para provar que aquilo não funciona!). Eu rio ainda mais um bocado (sim, já começa a ser demais), e por fim franzo o nariz. Ela insiste, diz-me que os tempos são outros, diz-me que é muito "internacional", e oferece-se para ir comigo. Quando lhe recordo que é casada, diz-me que leva o marido também, e que ele ía achar a ideia fantástica...

Somos todos almas da mesma espécie, vivemos todos neste mesmo único mundo, há de haver por aí algures as “outras metades” de cada um de nós, apesar da complexidade da equação que deve dar um grau de improbabilidade estapafúrdio, e de facto desencontramo-nos muito. A vida é a correr, não sobra tempo nem espaço para muito mais do que aquilo que se “tem de” fazer, mas... speed dating???...

Não sou preconceituosa, mas sou desconfiada. Ou se calhar apenas pouco moderna, ou pouco internacional, mas no meu tempo conheciam-se pessoas saindo, andando por aí, os amigos dos amigos, as amigas das amigas, jantares, festas, etc., até que surgia um interesse mútuo, ou surgia um “clima”, trocavam-se números de telefone, conversava-se, as pessoas íam-se conhecendo, e depois, era o que fosse o destino.

Agora, passar uma hora com “potenciais interessantes” a rodar a cada 5 minutos, apontar os “aparentemente interessantes” num cartão (ao fim de 4 minutos de conversa – qual conversa em 4 minutos???), para depois receber os contactos se eles também me acharem a mim interessante, parece-me mesmo, mesmo, mesmo, decadente. Se alguém tem um "testemunho" positivo duma experiência destas, que não se ofenda, cada um é como cada qual.

Sorry dear... Not my thing! Antes dar conversa ao próximo que se meta comigo de forma inteligente (bocas patéticas não contam). Curioso que, a última vez que me lembro de uma abordagem inteligente dessas, e que até me fez rir, foi na madrugada do primeiro dia do ano, no Kubo (quando é que aquilo reabre, por amor de Deus?!), na fila do bengaleiro, e com “ele” à minha espera para nos irmos embora. Se soubesse o que sei hoje, tinha dado seguimento à conversa, até trocado números de telefone, e quem sabe se não tinha mudado de ideias sobre "ele"?... Back to the dating scene I am, but the old fashioned way...

Um dia terá título, e começa assim...

Ela dorme. A cama branca e revolta, o lençol enrolado no corpo, enquadrado por uma quase penumbra que só não é escuridão porque os primeiros raios de luz lutam por passar em cada frincha das persianas da janela. O quarto e a rua estão em silêncio sintonizado. A respiração dela mal se ouve, e parece que marca gentilmente o compasso do canto das aves lá fora.

Ele olha-a. Contempla o quadro e absorve todas as tonalidades, todas as curvas, todas as sombras, todos os sons. Revivendo as suas mãos a percorrerem o que percorre agora o olhar, a tocar e a envolver o que agora cobre o lençol. Branco, e ela quase tanto como o lençol, num contraste que é de pouco mais do que um tom, o tom da vida que pulsa nela.

Um perna esguia e a planta de um pé delicado, que se deixaram descobertos, recordam-lhe um caminho que percorreu horas antes. Segue a linha da coxa e do fundo das costas marcadas pelo lençol, recordando como as suas mãos grandes, desproporcionadas para aquela figura fina, envolvem toda a sua cintura delgada e gentilmente se alargam sobre as ancas que depois firmam possessivamente. Advinha a sua barriga do outro lado, sentindo com um arrepio a contração dela quando a toca, quando a beija, quando deixa a boca percorrê-la até ao fundo do tremor, ao âmago dela.

A transpirar, esfrega a cara com as mãos, levanta-se para acender um cigarro. Olha-a agora do lado da janela com a pouca luz por trás a recortar-lhe a figura. A dela recorta-se pelo brilho levemente contrastante entre a carne e a cama, e pelos longos cabelos côr de avelã com brilho de ouro, em desalinho, espalhados pela almofada que abraça de um lado. Com um daqueles braços magros que conseguem de repente uma força imensa para o apertar, ou que se lançam noutras direcções, abandonados em ondas de prazer. E as mãos. São como tudo o resto nela, esguias, alvas, dedos muito longos e unhas de desenho perfeito cobertas de um verniz transparente e brilhante. Aquelas mãos que ele beija mas que também o percorrem, ora com curiosidade suave, ora agarrando-o com a força do desejo.

Sobe o olhar agora a partir da cintura, observando as pregas do lençol que se enchem na zona do peito, duas colinas suaves, curvas surpreendentes e improváveis naquele corpo. Consegue ainda senti-las nas mãos e na boca. Sabe exactamente o sabor daquela pele, as suavidades e os contrastes de tons e texturas. Concentra-se na curva dos ombros e na extensão do seu longo pescoço que ele beija e morde e marca, e que ele sabe que é chave para os primeiros estremecimentos dela.

Apaga o cigarro sem olhar para o cinzeiro, detendo-se no rosto dela, de olhos fechados pelas longas pestanas, com uma expressão serena de satisfação e abandono ao sono. Pergunta-se se sonhará. A boca está ligeiramente entreaberta. A boca, aquela boca...

Esfrega novamente a cara com uma mão e de repente vê-se reflectido no espelho em frente. Quase só um vulto, que a luz da manhã ainda é pouca a atravessar as persianas antigas de ripas de madeira.

(Continua...)

Lógica Feminina I


Para equilibrar as coisas, propus-me escrever umas linhas sobre a lógica feminina, não como reflexo total daquilo que penso, e rebato argumentos muitas vezes, mas como resumo daquilo que vou ouvindo e vendo de outras mulheres à minha volta.

Mas, na verdade, tive de desistir, porque afinal, bem vistas as coisas, em alguns aspectos a minha lógica não andava assim tão longe como pensava da generalização que tentava fazer... E se fosse a focar-me apenas naquilo que não me reflecte de forma nenhuma, sobrava pouco, e não estava a ser justa. Acabei por perceber que há muito destas “lógicas”, masculinas ou femininas, que são muito principalmente coisas geracionais. Por isso o que é hoje a “regra” nas mulheres da minha geração, pode bem sê-lo assim apenas pelo “momento comum” que atravessamos. Talvez por isso nos choquemos, colectivamente, com as diferenças de padrão que observamos nas mulheres de outras gerações, sobretudo as mais novas, ou com as mulheres da mesma geração que “fogem à regra”.

Afinal, até sou bastante mais “feminina” de lógica do que pensava... Mas percebi que gosto de ser tão feminina quanto sou, e sei que não deixo de ter as minhas originalidades que são aparentemente inconsistências, desvios da regra da geração, mas de que gosto cada vez mais. É que é isso que me distingue, é isso que me dá a consistência de ser individual e único, em cada momento do tempo. E pronto, o blog é meu, e aqui destilo o que me apetece, e agora não me apetece pensar muito em como é que consigo retorcer algumas coisas tão simples em argumentos tão elaborados, absolutamente convicta da minha originalidade.

Lembrei-me de uma tia de há umas quantas gerações, que é para mim um ícone de feminilidade, e que tinha uma frase “de marca” que eu acho absolutamente brilhante. Em qualquer discussão ou argumento em que fosse vencida pela razão dos outros, com a mesma fleuma de sempre, terminava a dizer “Em todo o caso.”. Simplesmente, educadamente e sem qualquer indício de arrogância, sem indiciar que acrescentaria mais nada, e com um tom que não admitia mais discussão. Não era possível ganhar-lhe... Essência de ser mulher, com uma boa dose de originalidade. Assim serei eu também, e talvez um dia deixe por aí uma frase dessas para a posteridade.