Memória do Tempo

Dei por mim a lembrar-me tanto do meu avô materno. Com uma saudade tão dorida. Ainda consigo ver-lhe o rosto, aqueles lindíssimos olhos azuis, quase transparentes, a brilhar para mim. O sorriso inteligente e franco, mas sempre um pouco irónico, reservado para os poucos que lho mereciam, e para o humor - ele adorava anedotas e histórias anedócticas, e era exímio a contá-las.

Eu tinha-lhe o sorriso e o brilho do olhar. Tanta ternura me invade lembrar-me dele. Lembrar-me de algumas conversas que tivemos, palavras dele que guardo no coração até hoje, livros que me deu que guardo como tesouros, mas, mais que tudo, aquele olhar. Foi a única pessoa em toda a minha vida que me olhou assim, que reflectiu nos olhos um amor total e transparente, por tudo de mim que “sou”, como ele via. Via mais que eu, via maior que eu...

O meu avô morreu na semana em que me separei do meu primeiro marido, uns dias muito maus de tormento, de fuga literal, enfrascada em drogas por causa do estado deplorável em que me encontrava. Não comia e mal me tinha em pé. Tremia de medo e de desgosto. E além disto tudo, tinha o meu avô, a pessoa mais querida do meu coração, num hospital, em coma, a respirar por uma máquina.

E lembro-me de o ir ver, logo no início da semana, e de desatar num pranto agarrada à mão dele, a não querer perdê-lo mas a pensar que se ele soubesse... se ele soubesse... se ele pudesse ver o que eu era naquele momento, se ele visse no que me tinha transformado, o que tinha deixado acontecer, a mim e à minha vida, não me olharia com aqueles olhos nunca mais. Senti que não merecia aquele olhar, senti tanta vergonha, e ao mesmo tempo fiquei tão aliviada que ele não pudesse ver. E não sabendo se ele algum dia voltava a abrir os olhos, foi aquele momento que me sossegou, confirmou a decisão que já tinha tomado, e decretou que nunca voltasse atrás. Eu não queria perder aquele olhar e aquele sorriso de orgulho, que eram só para mim, e devia-lhe a força de me salvar.

E por isso sei que, até na morte, ele me amou, tanto e tanto. E tanto, tanto que ainda hoje o sinto, e sorrio quando mergulho na memória dele, apesar das lágrimas que não consigo conter por causa da dor da saudade. Funda, funda. Porque também o amei de volta assim: totalmente. Porque sempre vi nele um Homem grande, uma inteligência enorme, uma alma generosa e um coração puro, que me espelhavam linda num olhar de mar sereno e brilhante, na espuma de sonhos lindos que tinha para mim - ou via em mim.

Há-de ser um Anjo, que me ajuda ao conceder-me a sua memória, a visão do olhar e do sorriso, que me encheu de ternura e de orgulho, e me fez vislumbrar de novo um pouco do melhor de mim, que ainda cá está, eu sei que está.

Pérolas do Dicionário - "Amor"

“do Lat. Amore, s. m.,
viva afeição que nos impele para o objecto dos nossos desejos;
inclinação da alma e do coração;
objecto da nossa afeição;
paixão;
afecto;
inclinação exclusiva;”

E a gente faz mais disto porquê?........

Ele é perdição, tormento ou total felicidade.
Ele é sentimento supremo, avassalador ou apaziguador.
Ele é borboletas na barriga, lágrimas fáceis, sorrisos parvos.
Ele é um monte de poemas, rosas vermelhas e serenatas à lua.
Ele é beijos quentes, abraços apertados e mãos entrelaçadas.
Ele é ciúme, tristeza e desilução.
Ele é medo, tremores e coragem.
Ele é vida, morte e além-morte.

E nós nas mãos dele somos o que ele quiser, e sem ele não somos nada.

Lições de 2008

No último dia do ano, acordei a sentir ter chegada à meta. A uma meta inglória, sem troféu nem pódio, mas ainda assim, uma meta.

Referi 2008 como um ano mau, o “ano horribilis”, e por aí fora. Pensei em tudo o que o que me aconteceu ao longo do ano, tudo o que vivi, tudo o que sofri. Foi realmente duro. Chorei muito, penei muito. Lutei por tudo o que quiz fazer – o que tinha de fazer por mim.

Mas consegui. Ficaram marcas, claro. Umas ruguitas e alguns quilos perdidos, ainda às vezes uma angústia de não saber bem por onde vou, para onde e porquê. Mas sei que, pelo menos, já não vou no caminho que não queria, já não vivo presa a um eu que não era. Tenho um destino, uma nova meta. Dei-me a oportunidade de tentar ser “feliz” e hoje sinto que não só mereço, mas me devo, essa meta.

Pelo caminho, também aconteceram coisas maravilhosas. Despertei para mim, descobri no espelho, em conversas, e sobretudo na minha escrita, uma mulher que ainda é bonita, que tem boas coisas por dentro. Que gosto de mim como sou, e como começo de novo a mostrar que sou, e que ainda sei crescer e aspirar a ser muito melhor.

Fiz amigos, de vários géneros, mas todos me fazem hoje sentir que valho realmente a pena, que a minha existência é real para os outros, para o mundo, que outros gostam também do que vêem e ouvem em mim. E eu gosto de ter outros na minha vida, lembrando-me de algo, há muitos anos atrás, que me disse o meu Avô, uma das pessoas mais especiais da minha vida e a mais saudosa na minha memória. Disse-me ele, numa discussão sobre individualismo, porque eu achava que cada ser humano se devia poder bastar a si mesmo, que estava enganada e que os homens são ilhas que só prosperam se se ligarem a outras, se souberem construir pontes.

É.

Mas, sobretudo, ganhei uma amizade tão, tão especial, tão, tão profunda, que já não saberia viver sem ela. Mais que uma ponte, é um alicerce de mim mesma, que me tem ajudado a chegar ao meu melhor, a olhar para o meu pior, e a reunir as forças para lutar pelo que quero, contra o que não quero. Que me deu um ombro generoso para chorar quando não aguentava mais, abraços de reconforto e de partilha de pequenas felicidades. E que eu quero poder retribuir sempre que puder, sempre que ela precisar, não por gratidão, que tenho, mas simplesmente porque gosto tanto dela.

No final, cheguei ao fim de 2008 melhor do que 12 meses antes. Ainda com muito que resolver, que lutar, que sofrer, pela frente. Mas fechei um ciclo, andei para a frente, consegui o que queria, e foi o primeiro passo para que 2009 me possa trazer mais e melhor, e para ter esperança e confiança no amanhã.

Por isso, afinal, 2008 até foi um bom ano para mim. Fiz as pazes.

Gavetas

Depois de várias noites de insónia ao longo dos últimos meses, e muitas longas conversas com a minha mana, a minha psicanálise, veio-me à cabeça uma imagem do que sinto se tem passado comigo: ando a tentar arrumar as minhas gavetas, arejar umas, deitar umas coisas fora, re-organizar outras. E de cada vez que me parece que está tudo direitinho, arrumadinho, fechadinho na sua individualizada gaveta, umas obscuras molas soltam-se lá atrás e cospem tudo cá para fora outra vez.

E é o caos, outra vez o caos.

E o cansaço, muito cansaço.

Qual é a mola?

O passado, sempre o passado, a herança, o lastro, o que quiserem chamar-lhe. A arrepiar-me numa conversa aparentemente inofensiva entre amigos, ou a apertar-me o coração num comentário aparentemente insignificante que um quase estranho faz sobre mim, ou a gelar-me de medo nos braços do homem por quem me apaixonei tontamente.

E se é assim, são frágeis as minhas gavetas, é falsa a minha ordem e inconsequente a minha lógica. Quem é que eu ando a enganar, pensando que sei bem o que faço, o que sinto, onde estão os porquês, onde estão as saídas? Afinal, não posso nada, não comando nada, não me comando - não me oriento.

E quando decidi que queria ser mais "eu", fazer aquilo que sentisse, confiar mais no instinto, tentar assim ser mais feliz, solta-se a mola, apodera-se de mim o medo, e lá estou eu a ser tremendamente castradora comigo mesma, a impôr-me uma lógica, qualquer "lógica", mesmo que não lhe consiga encontrar sentido nenhum...

Esse homem por quem me apaixonei teve um impacto tremendo em mim, sobretudo porque me deixou num estado tal que me pôs a abrir demasiadas gavetas ao mesmo tempo. Foi uma onda de choque na minha vida. Percebi então que não conseguia arrumar tudo ao mesmo tempo, e essa incapacidade tinha-me feito entrar numa espiral de caos, recriminação e cegueira.

Percebi que precisava de fechar algumas gavetas sem arrumar, para poder arrumar como deve ser uma de cada vez. A dificuldade era escolher qual arrumar primeiro. E então decidi que “ele” era a primeira gaveta que tinha de fechar atafulhadamente, que não podia pensar mais naquilo. Aceitei que tinha sido, para mim, uma coisa espantosamente intensa, transformadora, mas percebi também que ainda não era o tempo. Um dia, claro, uma qualquer mola obriga-me a arrumar a gaveta.

Depois fechei a gaveta dos afectos familiares. Os meus ressentimentos com a minha mãe, a nossa história desencontrada desde, literalmente, a minha primeira infância, a falta de colo, de mimo, a marca de que sou “menos” nos afectos dela. É minha mãe, não posso fugir a isso. Sei que, no fundo, ela quer o meu bem, e sei que até gostava de ser mais próxima, mas tenho de reconhecer que ela também tem as suas gavetas, se calhar mais desarrumadas do que as minhas. Ela não sabe chegar a mim e não passa por mim fazer o caminho dela. Que alívio. Com o meu pai foi diferente e soube fazer o caminho para nos encontrarmos. Esse caminho será destilado noutra altura.

Finalmente, quiz voltar a fechar sem arrumar a gaveta do meu primeiro casamento. Incrivelmente entendi como era isso, ainda, que dominava a minha vida. Porque para ali fugia, daí vinham os meus pesadelos, os meus flashes de memória, os paralelismos que estabelecia, os alertas de perigo que de repente rebentavam na minha cabeça e no meu peito. Vinha tudo daí, e ía sempre para ali, quando me sentia “menos”, quando me sentia só, desamada, envergonhada, perdida ou até simplesmente arrebatada. Foi daí que veio o momento de insanidade que estragou a magia da minha paixão e me deixou de rastos – e com mais uma gaveta por arrumar... Foi até daí que veio o erro do meu segundo casamento. E é por isso que sabia que era uma gaveta que teria de arrumar um dia.

Só que, também sabia que mexer nessa gaveta seria rasgar-me por dentro, outra vez. Revolucionar-me por completo e re-equacionar todo o meu passado e tudo o que sou. Primeiro pensei que não era o momento em que consiguiria fazê-lo e tentei proteger-me de situações que me ameaçassem, valorizar-me ao máximo para andar o mais longe possível de me sentir “menos”. Tentei abrir-me mais para o mundo, e ser mais mãe, e “olhar” para mim e para a minha vida com olhos de ver. Abrir os meus olhos. Decidi trabalhar no duro, ser fashion, usar baton, ir ao ginásio, ligar aos amigos (os velhos e os novos), dançar até à exaustão, e andar por aí. Afinal, não se encontra mesmo o que não se procura.

Mas afinal, à medida que ía fazendo essa marcha para a frente, lá fui destilando estas três gavetas. E hoje tenho a primeira aberta outra vez, apenas um pouco mais arrumada. Arrumei boa parte da segunda, e acho que, finalmente, deitei fora quase tudo da terceira, numa catarse que fiz em escritos soltos, num exercício de aceitação e fecho do passado. Muito embora saiba que o que fica não está na gaveta mas em mim, é parte do que sou forjada na dor que senti, e continue sem saber se saberei crescer o suficiente para enterrar também isso no passado e dar-me a mim, e a um novo amor, uma oportunidade de forjar algo maior, melhor, feliz.

E deste longo processo ficaram-me revelações espantosas. Aprendi, por exemplo, a enorme responsabilidade que temos para com os outros. Porque se eu sofro em mim, e na minha vida, tão profundamente, o impacto dos outros, também deverei fazer o mesmo na vida dos outros da minha vida. E não quero ser um fantasma na vida de ninguém, não quero assombrar os passos dos outros, não quero marcar coisas feias e sofridas nos outros. E caminha-se muito melhor quando percebemos que temos o poder de ser maiores e melhores, e com isso fazer os outros maiores e melhores. Dos outros do meu passado quero ser apenas morta. E enterrada. E também cá ando a enterrar os meus mortos e expulsar os meus fantasmas.

Silêncio

Na noite de Natal, a mãe da minha Mana tinha na árvore uns papelinhos dobrados. Explicou que cada um tirava um, ao calhas, e que esse papelinho continha uma virtude, que já possuímos, mas que nos vai acompanhar ao longo do ano e que temos de exercitar. Devemos pensar nela, e usá-la, sempre que enfrentarmos uma dificuldade ou uma tristeza.

A mim calhou-me o “Silêncio”. E diz:

“Eu pondero a grandeza da minha existência e o verdadeiro poder e amor sem fim que eu tenho dentro de mim”.

Depois disto, digo o quê?................

Poesia de Ary dos Santos, meu sentir, minhas lágrimas

Era a tarde mais longa de todas as tardes que me acontecia
Eu esperava por ti, tu não vinhas, tardavas e eu entardecia
Era tarde, tão tarde, que a boca, tardando-lhe o beijo, mordia
Quando à boca da noite surgiste na tarde tal rosa tardia

Quando nós nos olhámos tardámos no beijo que a boca pedia
E na tarde ficámos unidos ardendo na luz que morria
Em nós dois nessa tarde em que tanto tardaste o sol amanhecia
Era tarde de mais para haver outra noite, para haver outro dia

Meu amor, meu amor
Minha estrela da tarde
Que o luar te amanheça e o meu corpo te guarde
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza
Se tu és a alegria ou se és a tristeza
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza

Foi a noite mais bela de todas as noites que me adormeceram
Dos nocturnos silêncios que à noite de aromas e beijos se encheram
Foi a noite em que os nossos dois corpos cansados não adormeceram
E da estrada mais linda da noite uma festa de fogo fizeram

Foram noites e noites que numa só noite nos aconteceram
Era o dia da noite de todas as noites que nos precederam
Era a noite mais clara daqueles que à noite amando se deram
E entre os braços da noite de tanto se amarem, vivendo morreram

Eu não sei, meu amor, se o que digo é ternura, se é riso, se é pranto
É por ti que adormeço e acordo e acordado recordo no canto
Essa tarde em que tarde surgiste dum triste e profundo recanto
Essa noite em que cedo nasceste despida de mágoa e de espanto

Meu amor, nunca é tarde nem cedo para quem se quer tanto.

Quem me dá um abraço

O que é um abraço?

Numa definição de dicionário diz-se que é "acto de apertar alguém nos braços; expressão de afecto ou amizade".

Quantas dimensões têm os nossos afectos? Provavelmente tantas quantos os tipos de abraços que existem. Abraçar um Pai não é igual a abraçar um filho. Abraçar um amante não é igual a abraçar um amigo.

Mas não é só "afecto" - é "expressão".

Dou poucos abraços e tenho poucas pessoas, muito poucas, que me dão abraços. Não me lembro do meu Pai me abraçar a não ser numa ocasião muito especial, muito triste e muito dura, mas desse não me hei-de esquecer por mais anos que viva. Também me lembro apenas de um abraço da minha mãe, ou melhor, à minha mãe, também num momento de enorme dor, minha, que nesse instante senti que era um pouco dela também.

Abracei os Homens da minha vida, os poucos que amei, muito e tanto, mas sempre de maneiras diferentes, com medidas diferentes.

Não sei abraçar os meus pais, os amigos, e perguntava-me se hoje ainda saberia abraçar um homem, porque mesmo que voltassee a amar algum, iria ter de reaprender a "expressar" esse amor.

Só sei realmente abraçar o meu filho, que amo e sei dizer, sei mostrar que amo. E sei que gosto muito quando a minha mana me abraça. Não sei se a sei abraçar de volta, mas gostava de pensar que sim. O afecto está lá, mas a expressão é que custa.

O acto de abraçar alguém, de "apertar alguém nos braços", oferece uma proximidade tremendamente assustadora, tremendamente íntima, para mim. É expor o coração, no meio do peito aberto, a um contacto que tenho medo que me possa ferir.

Afinal, tenho muito ainda que curar em mim, tenho muito ainda para aprender. Mas tenho muito, ainda, para dar.

E depois de escrever isto, veio a insónia... Passei uma noite a pensar na distinção entre o "sentir" e o "expressar". Pensei: será que ainda sei realmente sentir? Será que ainda saberei amar?

Queria saber responder. E um dia, tempos depois, um homem entrou na minha pele e na minha alma, não sei de onde, não sei porquê, e dei por mim num abraço, bom, apertado, sem defesas, numa entrega que teve tanto de mágico como de absurdo. E depois, o medo, o susto, a ferida re-aberta, num repente insano. E deixei-o de fora, não soube mostrar-lhe o porquê. Neguei-lhe o abraço. E cá ando até hoje com ele impregnado em mim, estranhamente apaixonada, mas à distância... de um abraço.

Por isso, acho que, mesmo passado tanto tempo, mesmo feito tanto caminho ao longo dos últimos meses, realmente já não sei amar, mesmo quando me apaixono, porque não me sei dar sem reservas por mais do que uns poucos momentos que dura o ímpeto da química, da mágica, da paixão.

E o pior é que eu queria tanto dar esse abraço, abrir o meu coração, mais do que os braços, e tenho tentado tanto, e não consigo evitar a antecipação da dor. E assim me prendo a uma outra dor.

As portas que fechamos

Depois do meu filho nascer, tendo penado e penado, antes, durante e depois, jurei que nunca teria outro filho.

Foi um suceder de dificuldades nos primeiros meses. Não dormi uma noite de seguida durante mais de 2 anos, estive com ele internado no Hospital, passei por um não acabar de doenças e corridas para hospitais e pediatras, finalmente uma cirurgia aos 27 meses. Vivi em suspenso no termómetro e na enorme farmácia que juntei em casa, de tal forma que não conseguia viver mais nada. Ou ser mais nada.

Continuo sem ”vontade” de ter mais nenhum, porque tremo de pensar em passar por isto outra vez. Mas agora é mais fácil. Diminuiu o número de doenças mas também consigo lidar com as que surgem com mais tranquilidade. Como me dizia a minha Mana, antes eu era “a Mãe do L” e agora sou isso também, mas sou muito mais. Também era porque a “Mãe do L” não tinha de pensar noutras coisas... E agora “eu” enfrentei-as e quero ser mais...

Mas de repente dei comigo a perguntar à minha ginecologista, sobre o DIU, como era se nos 5 anos de “duração da coisa” eu quizesse engravidar! Quase que nem acreditava que tinha feito a pergunta, parecia que aquelas palavras não eram minhas. Tinha de me perguntar porquê.

Porque...

Porque vejos estes próximos como os últimos 5 anos de vida em que ainda posso pensar em ter outro filho. E de repente percebi que gostava de uma segunda oportunidade de viver a experiência da maternidade de uma mais forma feliz, com um companheiro de mim e dessa experiência, com amor, com partilha, com abraços. E dei comigo a pensar se realmente quero fechar essa porta, que pensava trancada, e afinal ainda está aberta no meu subconsciente. Parece que não quero fechá-la. Só encostar. Se vier um sopro de Amor a sério que precise de ir por ali, posso querer abri-la.

Ou seja, no fundo, no fundo, porque...

Porque acredito que esse sopro pode acontecer. E fiquei estupefacta com esta conclusão.

Caminho

Tenho umas pedras no meu caminho (alguns pedregulhos também...). Tenho andado a mexê-las, aos poucos, à medida que vou ganhando forças e equilíbrio, e vontade de andar para a frente.

Algumas dessas pedras até têm sido fáceis, outras escondem monstros assustadores. Algumas não me apetece levantar. Mas ao mesmo tempo que tenho medo de levantá-las, sei que deixando-as lá o monstro vai crescer. E o que é hoje, se calhar, bem vistas as coisas que isto tudo depende da perspectiva, apenas um monstrinho, deixado ali a crescer pode ser um monstrengo amanhã.

Faz-me lembrar que queria ser como o homem do leme: três vezes ao céu as mãos erguer, três vezes ao leme as reprender, e dizer no fim de tremer três vezes que "aqui ao leme sou mais do que eu"... Manda a vontade que me ata ao leme. Mas não é a de D. Joao II... É a vontade de viver o que vier, de não hipotecar o futuro. Tirar as pedras do caminho, destruír os monstros, antes que me destrúam a mim - ou me apanhem na curva, por assim dizer.

Vou à luta.

Isto é críptico, pois é, mas para mim não. E este blogue é meu.

Lastros

Um dia o meu ex-marido ligou-me. O segundo, que do primeiro nunca mais tive notícias – graças a Deus! Do segundo tenho um filho. Por isso, muitos contactos. Dos que não são por questões práticas, agora menos, cada vez menos (graças a Deus!), houve dois que me incomodaram. Uma vez:

“Tenho sentido muito a vossa falta. Dele e tua também.”

Não, vocês não estão a perceber. Para mim o meu casamento acabou há anos. Ao fim de uns meses a ponderar a decisão de me divorciar, lá fui fui finalmente falar com uma advogada e depois andei 8 meses a penar, num ping-pong de advogados, acordos e desacordos, burocracias, e finalmente uma “conferência” que tornou tudo final. Desses 8 meses, tive de esperar 5 meses para poder sair de casa. Sem papeis assinados, era “abandono do lar”: nem pense nisso – dizia a minha advogada – pode perder a custódia do seu filho.

Foram os meses mais difíceis. A arrastar-me no escritório para não ir para casa, a fumar cigarros na garagem antes de entrar, a procurar coragem na nicotina para o enfrentar, para jantar à mesma mesa, escondendo do meu filho as brigas, as lágrimas e os cobertores na sala.

De repente diz que sente a minha a falta. E eu engulo em seco, porque não sinto a falta dele. Porque para mim esses meses foram um calvário e sinto-me tremendamente aliviada de ter chegado ao fim. Pese embora a tristeza, e a angústia de saber que não é um caminho fácil o que tenho pela frente. Pior – não sabendo sequer qual é o caminho que tenho pela frente, em que futuro me lancei, em que abismo me precipito. Digo-lhe o quê? Que sei. Pois sei, porque sei que ele não queria o divórcio. Mas também não me queria realmente. Só que ele não quer ver isso, e já não me compete a mim mostrar-lhe.

Outra vez, recebi um SMS, no dia em que faríamos 6 anos de casados. Mensagem difícil. Dizia que se tinha lembrado de mim porque “foi num dia destes que fizeste de mim o homem mais feliz do mundo”. Respondi no dia seguinte, a lembrar-me de uma coisa bonita que a minha Mana me disse um dia. Não me lembro das palavras exactas, mas a ideia é que dizer aos outros que são especiais para nós é uma dádiva imensa. De certa forma, foi o que ele fez com a mensagem dele e tentei olhar para isso dessa maneira mais bonita, e não como um fardo, uma recriminação, o discurso do coitadinho. Respondi então a agradecer as palavras, disse-lhe que era bom saber que tinha sido uma coisa boa na vida de alguém, e disse-lhe que também tinha boas memórias.

E é verdade.

Planos

A certa altura, quando o outro blogue, o primeiro e privado, já começava a ganhar tamanho, comecei a olhar para as coisas que tinha escrito e comecei a pensar que tinha mesmo de começar a fazer por mim e pelo resto do meu futuro: planos. Para sobreviver e depois progredir.

Tenho de fazer aquela pós-graduação. Só não sei como vou integrar mais uma exigência na minha vida. Digo-vos, não é fácil investir na carreira e ser mãe, sobretudo quando se faz isso sozinha. Não estou contente profissionalmente. E tenho de remediar um erro do passado. O meu primeiro casamento fez-me desistir da faculdade no último ano. O segundo, pôr a carreira em segundo plano. Nunca terminei a licenciatura, por uma meia dúzia de cadeiras. Mas eis que veio Bolonha. Posso fazer uma pós-graduação. Só não sei a que custo. E não, não é quanto custa a propina.

Este parece ser o meu problema central – integrar as exigências de ser mãe, inegociáveis e irrenegáveis, com a vontade de ser tanto mais. E tudo parece resumir-se a dois verbos: planear e escolher. Só que há coisas que estão escolhidas, algumas mal escolhidas, e agora tenho mesmo de viver com elas. Às vezes pergunto-me onde sobra espaço para mim.

Tenho uma Mãe que adoptei, a que chamo mesmo a minha Mãe adoptada. E tem realmente sido mais minha Mãe que a verdadeira. É uma amizade muito especial.

Ela conhece-me bem. E goza comigo por causa da minha mania dos planos. Já teve umas tiradas fantásticas à cerca dessa minha mania – ok, há que reconhecer que teve piada... Um dia conto.

O problema dos planos é que são escolhas que raramente se conseguem implementar, concretizar, à risca. Há sempre inesperados, adaptações, atrasos para compensar. Novas escolhas para fazer. E reviravoltas tremendas que nos mandam todo o plano para o lixo - coisas que não podemos controlar, outros que não querem ir connosco. Escolhas que nos são negadas. Confesso que lido mal com isso. Tenho sempre um plano B, um plano C muitas vezes. Mas irrita-me profundamente não conseguir seguir os meus planos, não conseguir o que escolhi.

Fico muito organizadinha, mas perco a espontaneadade e, de certa forma, alguma liberdade. E à medida que o tempo passa, não sei se não comecei a deixar de querer fazer planos simplesmente para não ter de lidar com a frustação de ter de os mudar. Acho que é o mesmo com as relações. O medo que corra mal é tão grande que nem quero tentar. Afinal será esse o plano?... Sem espaço para espontaneadade? Mas é uma escolha, pois é?

Só que não era bem isto que eu queria. Não era este o plano.

E isto fez-me ir destilar um outro escrito de há uns meses, sobre o HTML e os homens. Dizia eu então:

Primeiro criei o blogue, com base num modelo, super-rápido e super-fácil. Depois comecei a mexêr nas cores das letras, nas fontes, a pôr umas imagens, etc., mas tudo simples – é só seguir passos pré-definidos, carregar em botões – brincadeira de crianças.

Agora descobri o HTML........................

Pode-se mexer em quase tudo! Quanto mais se escolhe, menos se acerta, porque mais se tenta, mais se quer. É uma canseira. Pré-visualizo, mexo mais um bocadinho, e acabo sempre a carregar no botão de “anular modificações”.

No fundo, também é assim com os Homens. Só não há o botão de "anular"...


E não há mesmo, e mal sabia eu então que havia de estar hoje a sofrer disso mesmo, porque a viver uma angustiante história de quase-amor, “quase” porque não há botão de “anular” para corrigir um momento insano que hei-de destilar à frente, “quase” porque não se pode realmente estar apaixonada por alguém que mal se conhece, “quase” porque está tão perto e tão longe, “quase” porque é tudo e não é nada.

Mais valia estar calado

Depois de me separar, toda a gente me queria levar a saír e me queria apresentar a amigos. Gente que gosta de mim, são uns queridos, querem animar-me. Eu também queria ir, descobrir os sítios novos que não conheço, e redescobrir outros onde não ía há anos. Mas às vezes a coisa corre mesmo mal.

Uma vez fui com uma das minhas irmãs (não a minha “Mana”) a uma festa num desses sítios onde nunca tinha ido. Apresentou-me a um amigo. Ele era giro, a conversa era gira. Tudo muito promissor até ele dizer (ele é professor) qualquer coisa como que a culpa da indisciplina não era das crianças, mas do facto de virem de “famílias destruturadas”.

A minha irmã: mãe solteira. Eu: mãe divorciada.

Fogo...

Destiladas do meu filho V

Sentimento de culpa

O meu filho andava numa fase de birras parvas e fúrias. Estava sempre a ter de me lembrar que eu sou a Mãe, a adulta, e que não posso podia responder às birras do miúdo com birras de mãe. Mas às vezes era difícil. A certa altura adoptei a estratégia de responder com a mesma frase, no mesmo tom calmo (por fora), mesmo que fosse a centésima vez que a dizia, e depois ignorar.

Até resultava. O meu calmo "Sem gritos" passou a produzir a mesma frase gritada uns segundos antes, com a mesma entoação, mas uma oitava abaixo...

Um dia, ao fim de semanas a pedir-lhe diariamente que me ajudasse de manhã com coisas simples que ele já podia fazer sozinho, no seguimento de uma birra parva e de 15 minutos de choro totalmente ignorado, sentiu-se tão culpado que fez tudo o que lhe pedi!

Só é pena é que sei que o sentimento de culpa dura pouco... E, na verdade, não quero criar um montinho de traumas a carregar culpas para o resto da vida. Isso fica para as outras mulheres da vida dele...

Ai, ai. É difícil. É que eu também fico a remoer os meus próprios sentimentos de culpa...

Destiladas do meu filho IV

O olhar das crianças

Num dia de lágrimas (escondidas): “A Mãe está triste?”

Partiu-me o coração...

“Não, querido! A Mãe está só um bocadinho cansada...” - disfarço eu.

O olhar das crianças chega mesmo à alma, e eles nem sabem o que isso é.

Destiladas do meu filho III

O meu filho é Benfiquista?

De repente, só queria coisas vermelhas, que passou a ser a “côr do Benfica”. Queria a chucha do Benfica (argola vermelha), a camisola do Benfica (camisola vermelha), dizia que o camião novo era do Benfica (num entusiasmo!), etc e tal.

Não sei onde foi buscar isto, que eu até nem ligo ao futebol, e muito menos tenho clube. E ele nem sabe o que é isso de um “clube”, na verdade. Mas dizia-se do Benfica com uma convicção espantosa. E nada o demovia. Mais uma vez, só pode ser genético!

Está-se a ver que vou ter de aprender umas coisas sobre futebol e juntar uns cromos do Benfica em breve... Já me estou mesmo a ver de cachecol ao pescoço a vibrar de emoção num estádio qualquer. Quer dizer, no do Benfica. Ou não estou??

Bom... Depois de andar meses a afirmar-se benfiquista, eis que chega um dia em que o levo comigo a um jantar de amigos num dia de jogo de futebol na televisão. Pergunta-me de que clube são os meus amigos e eu digo-lhe que são do Sporting.

“Ah... mas eu também sou.” E eu: “Ai é? Então não era do Benfica?!”. E ele logo: “Mas é que eu tenho dois clubes... eu também sou do Sporting...”

Chico esperto... Eu explico que isso é que não pode ser – só se pode ter um clube. Ele acha aquilo um bocado estranho mas fica-se.

Chegamos ao jantar e um dos meus amigos (por acaso Sportinguista, mas havia lá dos dois clubes) pergunta-lhe qual é o clube dele.

Sem hesitação, responde que é do Sporting..........

Fiquei-me a rir! O vira-casacas!!!

Destiladas do meu filho II

Instinto de sobrevivência

O meu filho caiu. Nada de novo – com aquela energia toda, passa a vida aos tombos, às cabeçadas, etc. Mas desta vez, vira-se para mim e diz: “nunca mais quero voltar a esta casa nova” (que foi a forma de explicar a mudança de casa com o divórcio). À minha pergunta de porquê responde: “porque esta casa está sempre a fazer dói-dói a mim!”.

Pois é – não queremos voltar aos sítios que nos magoam. Não posso condená-lo. É o instinto da sobrevivência.

Claro que, no meu papel de mãe, lhe digo que não é a casa, é ele que se põe a jeito...

Segundos depois na minha alma: autch...

Destiladas do meu filho I

Faz-se homem

O meu filho a ir à casa de banho sozinho. Sabe os passos que tem de dar. Mas a coisa não corre sempre a 100%.

Um dia de manhã, eu para ele - "esqueceu-se de puxar o autocolismo!"

Uns cinco segundos depois, tom melodioso: "Mas baixei as tampas, mãe..."

Tão pequenito e já um homem em potência! Tem de ser genético.

Música para lavar a alma

Gosto muito de música. Tinha uma boa colecção de CDs mas perdi muitos deles com o meu primeiro divórcio. Depois disso, não sei porquê, deu-me para não comprar CDs. A maior parte dos que tenho hoje foram-me oferecidos. Durante o meu segundo casamento, afastei-me da minha música, porque ele não gostava do que eu ouvia e eu detestava o que ele me queria impingir.Depois, dei por mim outra vez à procura da música. A aproveitar os dias em que o miúdo está com o pai para ouvir a minha música. E em cada CD que pego descubro qualquer coisa. E então ouço até à exaustão. Comecei a comprar CDs outra vez, comprei um iPod.

Num dos CDs novos que comprei, encontrei um poema extraordinário. A música é linda, na voz de Maria Creuza e Vinicius, interrompida, ou melhor, enriquecida, pelo declamar deste poema que é TUDO o que se pode dizer, o que se pode querer, do Amor. Chama-se Soneto da Fidelidade. E, o mais espantoso deste poema que sei de cor e nunca hei-de esquecer, é que se atravessou inesperadamente no meu caminho e um dia, meses depois, me ligou de uma forma especial a um alguém especial também, que eu vi sentir com estas palavras a mesma intensidade que eu sinto.

"De tudo, ao meu amor eu seria atento
antes. E com tal zelo, e sempre, e tanto,
Que mesmo em face do maior encanto,
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto,
E rir meu riso e derramar meu pranto,
Ao seu pesar, ao seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
quem sabe a morte, angústia de quem vive
quem sabe a solidão, o fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama,
Mas que seja infinito enquanto dure"

Chorei com isto. É tão bonito. Queria encontrar um Amor assim. Só assim.

Pois, também gosto muito de poesia e é uma das coisas de que gosto na música. Leio bastante e escrevo alguma (aqui não, prometo, só a que outros escreveram...). Dos portugueses, o favorito é sem dúvida Fernando Pessoa, tanto os poemas como a prosa. Mas alguns dos melhores poemas que encontrei até hoje foram escritos por Maya Angelou. Que pena que só a descobri tão tarde... Mas estou a recuperar depressa! Encomendei um livro dela e até paguei uma fortuna pelo envio, só porque não aguentava esperar 8 a 16 dias úteis! Está até hoje na minha mesa de cabeceira, e de vez em quando mergulho numas tantas páginas. Também faço o mesmo com a Antologia Poética de Vinicius de Morais.

Não é música, mas sabe ao mesmo.

A minha Mana

De todos os estragos que fiz na vida, resto eu hoje. E eu hoje, já não me conhecia. Estava presa lá atrás, noutros eus que fui em tempos. De repente, comecei a olhar de novo para mim. É um espanto a descoberta, mas um susto também. Há fantasmas de nós e dos outros que passaram na nossa vida. É difícil perceber quais os que temos de calar, é difícil encarar.

Tenho uma grande Amiga. Assim tão grande, que chamo de minha Mana. Começou em jeito de brincadeira, mas agora é muito a sério. Ela entrou na minha vida de repente, inesperadamente, mas de uma forma estranhamente natural. E tem sido um apoio inacreditável, uma força imensa – e uma psicanálise baratinha... Preciosa. E há-de ser para sempre, porque é um sentimento do mais fundo do meu coração. E eu simplesmente sei que ela vai lá estar sempre, e eu para ela.

Um dia, finalmente, consegui contar-lhe sobre uma coisa muito difícil do meu passado. Abordamos o assunto ao de leve muitas vezes, mas chegava sempre um ponto em que não conseguia falar mais. Era mesmo difícil. É ainda difícil, mas agora melhor. Porque um dia contei-lhe tudo e de repente fiquei eu própria diante daqueles sentimentos, daquelas memórias trágicas, que quase me consumiram. Foi muito duro, viver e contar. Mas vivi para contar. De repente até soube bem pensar assim. Mas ainda não escrevo sobre isto.

E ela perguntou-me: qual é a palavra? Ou seja, o que é que este bocado de passado tem para me prender ainda assim, tanto que não consigo falar?

Bolas, bolas, que ela é boa.

Sinopse da minha história – para se entender um pouco do que hei de escrever à frente...

Era uma vez uma Princesa. Ela parecia a antítese das Princesas, rebelde e geniosa, mas no fundo, na verdade, era uma menina frágil e doce, que só queria encontrar o Amor. Um dia acordou e estava apaixonada. Ele era o seu Príncipe, o seu encanto. Era um Amor de paixão, devastador, total. Era mágico. Mas de tanta paixão não viu, não quis ver, que aquele homem e aquela relação eram um engano. Um dia casou, cheia de esperança, cheia de Amor. Depois de uns anos de tormento, acabou num desespero tal que quase se perdeu. Mas acordou e conseguiu fugir a tempo. Finalmente encarou a verdade: não merecia aquela indignidade. Deixou-o, perdeu o Amor, e acabou a sentir-se um trapo, um farrapo que levou muito tempo a recuperar-se.

Depois foi Princesa outra vez. Mas não, desta vez não queria o conto de fadas. Nada disso. Agora ela era pragmática, crescida, escaldada da desilusão e do sofrimento. Ele não era nenhum príncipe, mas afinal, pensava ela, de que me serve um príncipe? Não, não. Eu preciso é de alguém prático que tome conta de mim, que me deixe espaço e não me exija muito em troca. Que esteja ali, pronto, mas que não se chegue muito perto. No fundo era um amigo, um bom amigo, que parecia um rochedo que havia de ali estar para sempre, assim uma espécie de seguro de velhice. Parecia certo.

E a Princesa queria ser mãe. Não – queria uma família. E uma família precisa de estabilidade, de segurança e de sensatez. Não de loucuras de Amor e paixões ardentes. Ela não queria casar, mas para ele era fundamental. Muita discussão (sem gritos, claro, tudo muito civilizado), e o relógio a tictar, e ela a pensar que tenho de me despachar, estou a chegar aos 30. E depois a concluír que não podia esperar mais, que aquilo era quanto-baste, que aquilo até funcionava, e porque não assinar o raio do papel.

Pois é, mas tudo tão certo, tão lógico, tão seguro, que a falta de chama acabou por consumi-la, agora de uma maneira diferente. E afinal o rochedo era de areia, e a ela é que se exigia a força de segurar as pontas. E lá foi a Princesa outra vez ao tapete. Derrotada. Isto também não serve, não chega. E, pior que tudo, lá foi a família que ela queria, agora mãe, mas sem lar para o filho, a carregar a culpa do mal que lhe fazia, a culpa de ter tomado a decisão errada, não agora, mas lá atrás. E convenhamos, não adianta mesmo chorar sobre o leite derramado. O erro lá atrás não se desfaz.

E agora? Agora a Princesa às vezes chora, quando pensa no que deixou para trás e nas dificuldades que tem de encarar, de que não pode fugir. Às vezes está feliz, quando pensa que apesar de tudo está viva, e ainda tem muito para dar, e está a redescobrir-se e a gostar do que vai vendo. Mas tem dias. Às vezes não gosta do que vê e consome-se a pensar no que fazer para mudar as coisas. Está perdida e sente-se sozinha, tremendamente impotente perante o atropelo da vida, totalmente incompetente para fazer melhor.

Dois divórcios aos 35 é demais. Quem não me conheça, o que vai pensar?? Parece coisa de alguém com problemas, problemas graves, ou de alguém que encara o casamento, e o divórcio, com uma certa leviandade. Mas ela não é assim. O fracasso dos dois casamentos é o maior tormento que tem. Se sente que tem desculpa de peso para o primeiro, também sente que tem culpa de peso para o segundo. E vice-versa.

Teve o amor de paixão escaldante e o amor-amizade morno. Nenhum resultou. Mas das duas vezes acreditou que ía resultar. Da primeira vez mais instintivamente, da segunda mais racionalmente. Mas não foram decisões precipitadas ou levianas. E foram levadas muito a sério, com verdadeiro esforço de construção de uma história bonita, de uma família feliz. Chegar à conclusão de que não se pode fazer mais, de que aquela relação não tem sustento, que nos faz mal, que nos está a destruír, é muito duro. Tomar a decisão é um processo longo e cruel. E chegar à verbalização dessa decisão é uma agonia.

Penou e penou a Princesa. E depois, apesar de uma leveza de espírito por ter finalmente conseguido o divórcio (porque isto no nosso país é preciso lutar para uma pessoa se divorciar), também houve uma tristeza que a assolou de repente e uma angústia de não saber o que a espera, para onde a leva a vida. Nos dias de lágrimas é um susto pensar no que a vida pode esconder. Nas surpresas que ainda nos pode reservar. No mal que ainda nos pode fazer.

E a Princesa, que da primeira vez em que se recuperou, embora desencantada, achou que era o máximo, que tinha uma força, ah valente!, e um insight único sobre o que devia procurar para ser feliz, agora é uma Princesa que sente não há hipótese, que isto das relações humanas é uma merda, e isto do Amor é uma treta, e não há psicanálise que nos valha. E agora sente esses dois fracassos como uma fragilidade e não como uma vantagem, como um decreto, uma sentença final, não como uma nova oportunidade.

O futuro? Que grande incógnita. Agora sim, pela primeira vez. Porque antes, cheia da irreverência e da arrogância da juventude, achava que sabia e podia tudo, que não ía errar, que nada ía falhar. Depois, no rescaldo de acordar dolorosamente para a vida, mas orgulhosa das cicatrizes e das rugas que achava que, afinal, lhe davam carácter, achava que estava muito à frente e sabia muito bem o que fazer – a mim não me enganam mais!

Mas nada disso. Enganou-me, enganei-me, e bem. E agora não há a magia da ignorância juvenil, nem a aparente solidez da maturidade de quem chega os 30. Agora sim, há um vazio. E o relógio tictou, e os anos passaram, e eu não sei quem sou.

(E vocês também não – o que é um verdadeiro consolo!)

Primeira

Tenho um blogue que é quase um diário, restrito apenas às duas pessoas que realmente me conhecem por inteiro e com quem partilho TUDO. Serve assim de psicanálise, é onde faço o meu exercício regular de catarse, outras vezes umas incursões ao passado, outras vezes a verbalização de uns sonhos, uns futuros. Umas divagações mais ou menos filosóficas, mais ou menos tristes, mais ou menos longas, conforme vai o estado da minha alma e o tempo que arranjo.

Decidi criar este segundo blogue para onde vou passar algumas coisas do original, muitas com as devidas adaptações para integrarem a esfera do público, ainda que sob o anonimato que mantenho. Mas resumidas, menos pessoais e menos óbvias, deixando lá os nomes, as datas, as pistas de identificação e os meus verdadeiros segredos. Muito do que já lá está, e muito do que para lá caminha, quero partilhar mais abertamente - são mais as divagações filosóficas e abstractas, ou o sumo não descritivo do que vou escrevendo no blogue que é o meu diário. No fundo, este blogue será um destilar do primeiro e por isso vou chamar-lhe “Destilado”.

Outros devaneios menos profundos também hão de vir aqui parar...